'É preciso separar jurídico e moral no caso Bruno', diz membro da OAB
Presidente de comissão diz que propostas recebidas pelo goleiro, mesmo após condenação por feminicídio, revelam machismo mas são legais
Brasil|Eugenio Goussinsky, do R7
Em 4 de junho de 2010, a jovem Eliza Samudio, de 25 anos, viajou para um sítio de Esmeraldas, em Minas Gerais, e nunca mais foi vista. No dia 5 de junho, o ex-goleiro Bruno Fernandes fazia sua última partida pelo Flamengo, em derrota por 2 a 1 para o Goiás.
Desde então, de goleiro de uma das equipes mais populares do país, ele se tornou réu e, em 7 de julho de 2010, prisioneiro, acusado de ser o mandante do assassinato de Eliza, contrariado pelo fato dela ter engravidado. Antes do assassinato, ela foi mantida em cárcere privado no local, para onde tinha ido na tentativa de chegar a um entendimento com o goleiro.
Passados 10 anos deste crime hediondo, o feminicídio que levou à condenação de mais de 20 anos de Bruno e de outros envolvidos, não impediu o goleiro de receber propostas para retornar ao futebol. Principalmente após julho de 2019, quando o Tribunal de Justiça de Minas Gerais lhe concedeu progressão para o regime semiaberto.
Para a advogada Priscila Pamela dos Santos, presidenta da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), é necessário separar o aspecto jurídico do moral neste caso.
Desde que foi condenado, notícias de que clubes como Montes Claros, Boa Esporte, Fluminense de Feira de Santa, Tupi, Poços de Caldas e Operário do Mato Grosso se interessaram pela contratação do jogador foram constantes.
Muitas dessas conversas, principalmente com o Boa Esporte, realmente aconteceram. Priscila considera que o fato de buscarem o Bruno pode estar relacionado à aptidão dele como goleiro e aos benefícios financeiros que o clube pode ter com essa contratação.
"Isso não é ilegal. Ele praticou um crime e cumpriu a pena imposta pelo Poder Judiciário e está apto a retornar, gradativamente, como prevê a Lei das Execuções Penais, ao seio social. Portanto, a busca dos clubes pela contratação do profissional é legítima. Se é moralmente reprovável ou não, esse é outro ponto. O importante é não confundirmos as esferas. O crime pelo qual foi condenado é muito grave, mas em termos legais, ele já cumpriu o tempo imposto. Precisamos respeitar as leis e as instituições, senão caminharemos para a barbárie", observa.
Do ponto de vista moral, no entanto, Priscila considera que essa busca pelo goleiro tem relações com o machismo enraizado na sociedade brasileira.
"O machismo é elemento que estrutura a nossa sociedade patriarcal, por isso o número inaceitável de crimes contra a mulher. Vejo o machismo presente também na contratação do goleiro, e aqui vale lembrar que saímos da esfera jurídica para adentrar em esferas da ética, da moral e das estruturas sociais", ressalta.
Ela aponta que, no caso de crimes cometidos por mulheres, o julgamento costuma ser muito mais severo, por parte da sociedade.
"Tem-se que os julgamentos realizados contra mulheres condenadas pela prática de alguma conduta criminosa facilmente ultrapassam os limites jurídicos. Condenam-a a rótulos de má mãe, de má esposa, de desleal, tanto que o percentual de visitas feitas para mulheres presas não se compara ao dos homens presos", ressalta.
Para a advogada, as decisões da Justiça, a não ser que sejam alteradas posteriormente, são soberanas. Priscila considera que as condenações dos envolvidos levaram em conta a participação de cada um no cárcere privado e no assassinato de Eliza, mesmo sem o corpo de vítima ter sido encontrado e existindo versões conflitantes sobre o real papel de Bruno no assassinato.
"Quando trabalhamos com conceitos de justiça precisamos ter em mente o que diz a lei. Se a pena aplicada foi ou não justa, caberia às partes do processo contestar. Uma vez findo o processo e definida a pena ela precisa ser vista como a mais acertada, já que proferida por autoridade competente", completa.
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