Líderes comunitários lutam para afastar pandemia das favelas
Coronavírus já chegou aos locais e isolamento das pessoas, em meio ao risco da pandemia e fome, ocorre muito em função do trabalho comunitário
Brasil|Eugenio Goussinsky, do R7
Mais do que o burburinho das conversas pela manhã, o grito dos vendedores, as rodadas de sinuca nos bares, hoje, nas favelas em São Paulo, se pode ouvir melhor o canto dos pássaros e o barulho de alguns córregos, ainda que poluídos.
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Não que a movimentação nestes locais, aglomerados de pessoas entre ruelas e corredores, tenha acabado. Meninos descalços ainda andam de bicicleta por entre barracões. Também se ouve o latido distante de cães em busca de comida ou aconchego de alguns que passam.
A pandemia já chegou a esses locais. A ordem, agora, é reverter o quanto antes a situação. O movimento das pessoas existe, está mais tímido. E o isolamento, em meio ao risco do vírus e o da fome, acaba acontecendo muito em função do trabalho comunitário. É nessa hora que a palavra comunidade fala mais alto.
Não só nos momentos de festa e alegria. Tampouco nos batidões. O silêncio e o recolhimento dos que têm poucos recursos diante do perigo são também atos de solidariedade e coragem. Para mostrar que a favela, contra todas as evidências, precisa vencer esse novo desafio imposto pela realidade. E pode.
"Em poucos dias, de repente, meu trabalho dobrou. É uma responsabilidade muito grande para um líder comunitário, nosso papel nesse momento é o de reeducar, orientar e passar a informação para favela sobre os riscos e os cuidados necessários para evitar que nossa comunidade seja atingida. Sabemos que nas favelas é aonde o risco é maior. Se um se contamina, a comunidade se contamina, pois as casas são pequenas e cheias. Tem casa que tem mais de 10 pessoas", afirma Jhones Rodrigues, líder na comunidade Vietnã, no Jabaquara, em São Paulo.
Tentativa de reverter
Mas essa questão relativa aos aglomerados urbanos pode ser revertida, segundo ele. Jhones acompanha de perto as conversas ao seu redor e percebeu que, nem o fato de se tratar de um local praticamente esquecido pelo poder público é capaz de destruir a força interior de seus habitantes. Se a união for mantida, é claro.
"Deixo um recado a todos que passo na rua, para se conscientizarem dos perigos e manterem hábitos de higiene adequados. Acredito que existe a possibilidade de revertermos essa situação, pois unidos somos mais fortes", destaca Jhones.
Segundo a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação), São Paulo é a cidade com maior número de favelas do Brasil, possuindo 1.715 ocupações cadastradas. Elas contêm cerca de 391 mil domicílios e mais de dois milhões de moradores, o que equivalia, em 2018, a 11% da população paulistana.
Considerada a maior favela de São Paulo, Heliópolis tem mais de 200 mil moradores. E a situação por lá também requer muitos cuidados. Segundo o líder comunitário local, Mano OD, 35 anos, do grupo de Rap D'grand'stilo, está difícil manter as pessoas em casa, mas aos poucos elas têm se conscientizado. Como voluntário, tem trabalhado muito para suprir a ausência do poder público, conforme afirma.
"Aqui na comunidade a solidariedade funciona muito bem, todas as principais lideranças comunitárias estão recebendo doações e trabalhando em conjunto, posso citar Cufa Heliópolis, Mover Helipa, D'grand'stilo, Macarrão, Unas, Radio Heliópolis, Editora Heliópolis etc. O poder público não ofertou ações sólidas e diretas até o momento."
Carro de som e informação
Mano OD conta que tudo aconteceu de forma muito rápida. É difícil mudar os hábitos na favela, baseada muito no calor humano entre seus moradores.
"A principal mudança foi sobre evitar contato com outras pessoas, o afeto como abraço um aperto de mão é muito comum entre nós e foi a principal mudança, pegou não só nós mas o mundo desprevenido. O trabalho nosso ficou mais focado na área de saúde e conscientização."
Já há casos de covid-19 em Heliópolis. Apesar de ainda não ter os dados exatos, Mano OD, tenta impedir que o vírus se dissemine, sem deixar de se preocupar com a economia local. Atuando na Associação de Moradores de Heliópolis, ele participa de uma campanha informativa, que percorre a região o dia inteiro.
"Ficar em casa, manter a higiene pessoal muito alerta, quando necessário movimentar o comércio local. Gravamos recentemente um informe e passa o carro de som pela comunidade."
Outra favela de grandes dimensões, a Paraisópolis, é uma das que têm contado com voluntários complementando o trabalho. No fim de março, cerca de 400 moradores da favela de apresentaram como voluntários na entrega de sabão em pedra e álcool em gel para todos os demais moradores da comunidade.
União contra a fome
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A fome, como consequência do isolamento, acaba sendo uma ameaça. E, antes de esperar algo das autoridades, a cearense Maria Lúcia da Silva, líder comunitária, da Associação Vila Clara, contou que foi feito às pressas uma espécie de mutirão para receber doações.
"Neste momento, criamos um comitê regional Sul de emergência para o combate à fome na pandemia do coronavirus dentro das comunidades vulneráveis e uma Central de atendimento, recebimento e distribuição de doações às famílias que vivem em áreas vulneráveis e estão passando por uma situação de desespero por falta de alimentos e desempregadas", afirma.
A associação engloba várias favelas da região, entre elas a Vila Clara, a do Vietnã, a Alba, Rocinha e Beira-Rio, que totalizam cerca de 240 pessoas. Ela conta que há 8 casos de covid-19, com duas mortes. O total de suspeitos de terem a doença já ultrapassa 90.
Maria está na chamada população de risco, mais vulnerável ao novo coronavírus. Aos 57 anos, fez tratamento contra um câncer de mama, além de ser diabética e hipertensa. Nem por isso está deixando de trabalhar intensamente para afastar a covid-19 das pessoas. Um trabalho feito, ao mesmo tempo, com boa vontade e medo.
"Trabalho dobrado, sou voluntária, estou gastando do meu bolso sem ter. Mas me mantenho sempre protegida e me cuidando, faço parte da população de risco, tenho medo mas peço sempre proteção para Deus", completa, enquanto ajuda o seu semelhante e passa álcool em gel nas mãos. É o que pessoas como ela, Mano Od e Jhones podem fazer.
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