'Nem dinheiro pro pão': 55% do BR enfrenta insegurança alimentar
Relatório de 106 entidades revela que mais de 80% das metas do governo federal estão em retrocesso, estagnadas ou ameaçadas
Brasil|Joyce Ribeiro, do R7
O Relatório Luz 2021 sobre a Agenda 2030, realizado por 57 organizações não governamentais, entidades e fóruns da sociedade civil, aponta que o Brasil regrediu no cumprimento de políticas públicas de áreas como pobreza, segurança alimentar, saúde, educação e meio ambiente. O documento indica que mais de 80% dos indicadores do governo federal estão em retrocesso, estagnados ou ameaçados.
O país voltou ao Mapa da Fome, risco que já havia sido detectado em 2017, ano da primeira edição do relatório, que é elaborado por 106 especialistas com base em dados oficiais ou ainda em estudos e pesquisas acadêmicas. O objetivo é analisar a implementação dos 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável).
"Havia fortes sinais de retrocesso na erradicação da pobreza. A insegurança alimentar grave, que é a fome, chega a 19 milhões de pessoas. Em 2017, eram 10,3 milhões, segundo IBGE. Um crescimento muito alto em um período curto de tempo. É um sinal de alerta. Já era um número elevado e ficamos bastante preocupados com essa marcha à ré", afirma Francisco Menezes, que é assessor de políticas da ActionAid.
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Tem mais de um mês que não comemos carne%2C só arroz%2C feijão e ovo. Nem dinheiro pro pão às vezes eu tenho
De acordo com a FAO (Food and Agriculture Organization) da ONU (Organização das Nações Unidas), a insegurança alimentar se refere ao acesso limitado de uma pessoa ou de uma família à comida. Um dos motivos é a falta de dinheiro. Segundo o relatório Luz, 9% da população brasileira passa fome, outros 11,5% sofrem com insegurança alimentar moderada e 34,7%, leve. Apenas 44,8% dos brasileiros se alimentam bem.
Sandra do Prado, de 49 anos, é moradora de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, e faz faxinas e passa roupa a cada 15 dias. Ela perdeu o emprego formal e tem depressão. O imóvel com quarto, cozinha e banheiro é dividido com o marido e a filha adolescente. O único salário da casa só é suficiente para pagar o aluguel e algumas contas.
"Não durmo, acordo tremendo. Muitas contas na minha cabeça. Quero comprar coisas pra minha filha, mas não tem como. Tem mais de um mês que não comemos carne, só arroz, feijão e ovo. Nem dinheiro pro pão às vezes eu tenho", lamenta a diarista.
O Brasil não está se esforçando para reduzir a desigualdade e mitigar os efeitos da pandemia%2C que são devastadores
A pandemia agravou a situação, mas não é a única responsável. O teto de gastos impactou no cumprimento de programas de governo, a crise política e econômica também contribuíram. Para Francisco Menezes, até mesmo a Reforma Trabalhista criou condições para o crescimento do trabalho informal e do subemprego.
"Com o aumento da pobreza, a proteção social deveria ter sido fortalecida por meio de programas, o que não aconteceu. Esperava-se um crescimento dos programas de transferência de renda. São fatores combinados que levaram a isso. A pandemia fez com que o quadro se acelerasse", ressalta o especialista.
Investimentos para agricultura orgânica desabaram, segundo o relatório. Em 2020, eles foram equivalentes a somente 30% do valor de 2015. Também houve declínio no total de famílias assentadas no PRNA (Programa Nacional de Reforma Agrária) e o aumento do uso de lenha ou carvão para cozinhar alimentos.
Ao longo dos anos, a segurança alimentar vem se deteriorando no Brasil, como aponta o relatório. Em 2004, atingia 64,8% da população, em 2020, apenas 44,8%. A insegurança alimentar grave, considerada fome, ia na contramão, estava em queda desde 2004, mas se aproximou agora do antigo patamar: 9%.
Metas da Agenda 2030
A Agenda 2030 foi aprovada em 2015 por membros da ONU (Organização das Nações Unidas) e dá continuidade às oito metas do milênio e abrange economia, social e meio ambiente. A intenção é responder aos principais problemas do planeta hoje por meio dos 17 ODS.
"Sem comprometimento com a agenda, não conseguiremos atender metas e é muito grave. Não é uma agenda internacional. O Brasil liderou o debate e a pauta está alinhada aos princípios constitucionais, transparência e acesso à Justiça, mas o país não alinha as áreas políticas e há verticalização", ressalta Alessandra Nilo, que é coordenadora geral da ONG Gestos e coordenadora editorial do Relatório Luz.
No relatório, foram analisadas as 169 metas definidas na Agenda 2030. Do total, 92 estão em retrocesso (54,4% do total), 27 estagnadas (16%), 21 ameaçadas (12,4%), 13 têm progresso insuficiente (7,7%) e 1 não se aplica à realidade brasileira (0,6%). Outras 15 metas (8,9%) não foram ranqueadas por falta de dados.
"Ano passado tinham quatro metas com avanço satisfatório, hoje não tem nenhuma. Estamos no retrocesso e com redução de alianças internacionais e de políticas de participação social. Em 82,8% das metas sequer foi executado o orçamento disponível. O Brasil não está se esforçando para reduzir a desigualdade e mitigar os efeitos da pandemia, que são devastadores. As consequências deverão ser sentidas por muito tempo", constata Alessandra Nilo.
Quando não atende à meta%2C o prejuízo é para toda a sociedade. Temos desafios porque não há dados que mostrem que estamos bem
Entre os destaques negativos do relatório estão o crescimento da pobreza, políticas ambientais contrárias ao desenvolvimento sustentável, regressão de políticas promotoras de igualdade e de gênero, redução de orçamentos, além do esvaziamento das políticas de fomento à cultura.
Desde o início do estudo, 2020 é o ano que menos se investiu em programas de redução da pobreza, saúde e educação. Apenas a assistência social teve um aumento expressivo por causa do pagamento do auxílio emergencial.
Saúde
Os indicadores mostram que, mesmo na pandemia, áreas como saúde apresentaram retrocesso. De acordo com o relatório, R$ 22,8 bilhões da dotação orçamentária autorizada em 2020 para o SUS (Sistema Único de Saúde) ficaram sem uso, recurso que poderia ter sido empregado na compra de vacinas, kits de intubação, EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), insumos e leitos para pacientes com covid-19.
Márcia Leão, coordenadora executiva da Parceria Brasileira contra Tuberculose - Stop TB Brasil, ressalta outros problemas identificados. "Houve redução nas equipes de trabalho, deslocamentos e recursos por causa da pandemia. Algumas ações foram suspensas e outras áreas da Saúde deixaram de ser incentivadas, o que gera problemas a longo prazo", enfatiza.
Impacto a longo prazo
Márcia Leão citou o retrocesso até mesmo nas campanhas de vacinação para outras doenças, problema que só será constatado em 2 anos devido à defasagem epidemiológica, também a interrupção de políticas públicas para doenças crônicas, AIDS, aumento de 5% na mortalidade materna, que poderia ser prevenido com o pré-natal, e questões orçamentárias.
"Políticas públicas temos para a maioria das metas, mas houve uma paralisação desde 2019, agravada na pandemia. Já não tem investimentos e houve redução significativa até na aquisição de medicamentos. Se tínhamos R$ 100 milhões e só usamos R$ 80 milhões para determinada área, este será o novo teto para o ano seguinte, um valor ainda menor para a política pública", destaca a especialista.
Existem propostas para reverter a situação do Brasil%2C não é apenas uma questão técnica%2C tem que ter vontade política
As políticas públicas devem andar juntas porque o não cumprimento de uma traz impactos em outras áreas. Por exemplo, se a pessoa não tem o que comer, ela não tem condições de seguir um tratamento de saúde. Segundo o relatório, o número de crianças com altura muito baixa para a idade voltou a subir: 5%.
"Política pública é saúde coletiva. Quando não atende à meta, o prejuízo é para a sociedade como um todo. Temos desafio em todas as metas, não tem dados que mostrem que estamos bem. Os objetivos não têm que ser vistos isoladamente, são ações transversais, que se conversam, com reflexos em outras metas", conclui Márcia Leão.
17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)
1- Erradicar a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares;
2- Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável;
3- Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades;
4- Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos;
5- Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas;
6- Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos;
7- Assegurar acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos;
8- Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente;
9- Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação;
10- Reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles;
11- Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis;
12- Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis;
13- Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos;
14- Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável;
15- Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade;
16- Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis;
17- Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.
Desigualdades
Para Francisco Menezes, a desigualdade no Brasil é crescente: "A desigualdade sempre foi uma marca do país. A base da pirâmide (pobreza) se expandiu, houve aumento da população de rua, e o topo auferiu ganhos. Com o auxílio emergencial de R$ 600 a pobreza foi reduzida, mas com a redução do valor, a situação se agravou e o endividamento das famílias cresceu".
Segundo ele, há hoje uma nova camada de população, que antes flutuava entre a classe média e a pobreza, mas que perdeu totalmente a renda e vive na condição de precariedade extrema. A pandemia também expôs a população marginalizada, que não tem acesso à internet e que não é considerada mão-de-obra qualificada.
De acordo com Alessandra Nilo, já em 2013 foi detectada queda no progresso em relação às desigualdades, mas o cenário piorou nos últimos dois anos.
"Na pandemia, o governo não disponibiliza recursos para onde deveria. É preciso olhar em 360°. Adota políticas que aumentam a austeridade fiscal e ações inócuas para o desemprego. A riqueza está concentrada no sudeste e outras regiões estão abandonadas. Houve aumento do trabalho infantil entre 3 e 12 anos, da violência doméstica e contra as crianças. É uma areia movediça", diz a coordenadora do relatório Luz.
Francisco Menezes complementa: "Há desigualdades regionais, de gênero e étnico-raciais. O perfil de quem é pobre são mulheres solo negras, na maioria. O problema tem cara, são esses os que sofrem mais intensamente. Existem propostas para reverter a situação, não é apenas uma questão técnica, tem que ter vontade política".
Entre as bandeiras de enfrentamento defendidas estão: estabelecimento de uma renda básica, programas de transferência de renda e descongelamento do orçamento para dar continuidade aos programas.
O outro lado
Em nota, o Ministério da Cidadania informou que tem trabalhado no aprimoramento do conjunto de programas sociais do governo federal "com o objetivo de ampliar o alcance das políticas públicas, além de atingir, com maior eficácia, a missão de superar a pobreza e minimizar os efeitos da desigualdade socioeconômica no país".
O ministério destacou a criação do Auxílio Brasil, que integra em um só programa várias políticas públicas de assistência social, saúde, educação, emprego e renda. Entre elas está o Alimenta Brasil, que pretende incentivar a agricultura familiar, promover a inclusão econômica e social e o acesso à alimentação para pessoas em situação de insegurança alimentar.
A pasta disse também trabalhar na modernização dos Bancos de Alimentos, públicos e privados. A ideia é simplificar processos, incentivar mais doações e evitar desperdícios.
Foi estruturada a Iniciativa Brasil Fraterno, que incorpora as ações voltadas para aquisição e distribuição de cestas de alimentos a quem precisa. A rede tem a participação de setores da iniciativa privada, como o Sistema S e o agronegócio, e atende municípios que decretam calamidade pública. Este ano, foram distribuídos quase dois milhões de cestas em todo Brasil para mais de 850 mil famílias.
Em junho, foi reconstituída, por meio de decreto, a CAISAN (Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional). Nove ministros integram o colegiado "que tem por objetivo promover a integração da administração pública, viabilizando a intersetorialidade das políticas sociais relacionadas ao tema, entre as quais as iniciativas de combate às perdas e ao desperdício de alimentos".
Segundo o ministério, foi ampliada a rede de proteção à população mais vulnerável do país e reforçado o SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Em 2020, foram investidos mais de R$ 365 bilhões em políticas socioassistenciais, que vão desde a primeira infância até a terceira idade.
Iniciativas como o Bolsa Família, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e o auxílio emergencial reduziram em 80% a extrema pobreza no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas.
Ainda de acordo com a pasta, 68,3 milhões de pessoas foram contempladas em 2020 pelo auxílio emergencial, num repasse de R$ 295 bilhões. Também o FMI (Fundo Monetário Internacional) apontou que até 23 milhões de cidadãos deixaram de entrar na extrema pobreza no auge da pandemia e que, sem o benefício, o percentual teria aumentado de 6,7% para 14,6%.
Até o momento, 39,3 milhões de famílias de maior vulnerabilidade receberam o benefício este ano, totalizando R$ 35 bilhões. O governo federal ressaltou ainda que o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família é de 14,65 milhões, o que seria a maior média da história do programa.
O ministério contesta a informação de que o Brasil voltou ao Mapa da Fome e usa dados do relatório da FAO sobre segurança alimentar e nutrição no mundo, realizado em 2020, para justificar: "O país se manteve fora do Mapa, ao permanecer em nível abaixo de 2,5% da população de subalimentados".