Sonhar com filharada... é o coelhinho Com gente teimosa, na cabeça dá burrinho E com rapaz todo enfeitado O resultado, pessoal,... é pavão ou é veado Avenida Presidente Vargas, centro do Rio de Janeiro, noite de 29 de fevereiro, quinto domingo daquele mês no ano bissexto de 1976. Com o divertido enredo Sonhar com Rei dá Leão, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor, de Nilópolis, coloca crianças, jovens e adultos para cantar o jogo do bicho sem meias palavras, na primeira homenagem cultural pública de grande dimensão à atividade e ao seu universo (leia reportagem dessa série sobre Castor de Andrade e seu império aqui e sobre a Scuderie Le Cocq/Esquadrão da Morte aqui). Surpreende jurados, jornalistas e público com um desfile encantador e fatura, com alguma folga, seu primeiro título na elite do principal desfile carnavalesco do mundo. Para ficar no universo zoológico, diz o ditado que em festa de inhambu jacu não entra – e vice-versa. Mas, para espanto de muitos, a Beija-Flor resolveu desafiar, entrar e, mais ainda, botar poeira de pontos sobre as gigantes do carnaval carioca. Seis acima da Mangueira e Mocidade de Padre Miguel, 14 além da terceira colocada, a Portela, e 16 de distância do Salgueiro. Nos dias seguintes ao desfile, crianças repetiam animadas o refrão do lúdico samba-enredo, muitas vezes sem entender a relação feita na letra entre os dois bichos e o rapaz todo enfeitado. E, em boa parte dos casos, também sem ter a dúvida esclarecida pelos adultos. O enredo ousado, a atitude desafiadora diante das grandes escolas e o desfile cheio de brilho em 1976, oito anos antes da inauguração do Sambódromo, incluíram no time das grandes a azul e branca de Nilópolis, a Princesinha da Baixada Fluminense, com seus 162 mil habitantes. Um dos municípios com menor área territorial do País (apenas 19 quilômetros quadrados), cravado numa das regiões mais irregulares e marcadas por bolsões de carência e violência do Estado do Rio e do País.Beija-Flor projeta seu trio de ouro: Joãosinho Trinta, Neguinho e Anísio E consolidaram definitivamente a fama de três personagens ligadas à escola que, a partir da conquista, passaram a ser presença certa em todas em conversas e ações com os temas samba, futebol ou a tabelinha entre as duas coisas: Joãosinho Trinta, Neguinho da Beija-Flor e Anísio Abraão David. O maranhense João Clemente Jorge Trinta, o Joãosinho Trinta, carnavalesco deste e outros quatro dos treze títulos seguintes da Beija-Flor nos desfiles fluminenses, morto em dezembro de 2011 aos 78 anos, foi o maior gênio criador da história do carnaval. Discípulo de outro mestre da folia, o diretor Fernando Pamplona, teve conquistas anteriores no Salgueiro, mas foi em Nilópolis que viu seu talento explodir e o transformar numa quase unanimidade. O nilopolitano Luiz Antônio Feliciano Marcondes, agora Luiz Antônio Feliciano Neguinho da Beija-Flor Marcondes no registro, 70 anos, o puxador do samba, firmou-se como um dos grandes intérpretes da MPB nas últimas décadas e a voz de sua escola, tendo à frente o indefectível grito de guerra “oooooolha a Beija-Flor aí, geeeeeente”. E, fechando o trio, o carioca Aniz Abraão David, o Anísio, 82 anos, todo-poderoso do bicho em Nilópolis e nas cidades vizinhas Mesquita e Queimados, ex-presidente da Liga Independente das Escolas de Samba, a Liesa, como Castor de Andrade (leia reportagem desta série sobre ele aqui), ex-presidente executivo e atual de honra da Beija-Flor. A coesão e os benefícios mútuos, na dobradinha entre Anísio e sua escola, talvez seja a mais coesa na parceria entre samba e futebol, a ponto de o nome da escola ter virado sobrenome informal do contraventor: Anísio da Beija-Flor. Em Nilópolis, seu reino particular, ele manda no bicho e sua família, na política e no restante da cidade. Não deixa faltar nada à escola e, em troca, recebe apoio e carinho popular para tocar as apostas sem restrições e inimigos significativos. Anísio é um dos nove filhos (sete homens e duas mulheres) de uma família cristã de origem libanesa. Um dos irmãos, Farid Abrão David, é o atual prefeito de Nilópolis – seu antecessor foi o sobrinho Sérgio, filho de Simão Sessim, que teve dez mandatos consecutivos de deputado federal. Ricardo Abraão, outro sobrinho de Anísio, foi deputado estadual no Estado do Rio. Um irmão falecido, Jorge Sessim David, foi deputado e prefeito. E Abrahão David Neto, vereador em Nilópolis em segundo mandato, é filho de Miguel Abraão, outro irmão morto do bicheiro.A conta do passado e das relações polêmicas (leia reportagem sobre a Scuderie Le Cocq, que deu origem ao Esquadrão da Morte carioca, nesta série aqui), acabou chegando. Anísio foi considerado culpado pela juíza Denise Frossard, em 1993, por envolvimento com o jogo do Bicho, juntamente com outros 13 banqueiros do bicho, entre eles Castor de Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães. O grupo foi acusado de estar por trás de pelo menos 53 mortes. Cada um pegou uma pena de seis anos, a sentença máxima por extorsão, mas em dezembro de 1996 todos receberam liberdade condicional ou clemência e voltaram para casa. 'Humilde residência' de dois mil metros quadrados e festinha de R$ 1 milhão Em dezembro de 2011, Anísio e outras 83 pessoas foram indiciadas pela Operação Dedo de Deus. Condenado a 48 anos de prisão de prisão em 2012 pela Justiça Federal, cumpre, em função da saúde frágil, pena domiciliar em seu latifúndio particular na esquina da Avenida Atlântica com Rua Hilário de Gouveia, em Copacabana, uma cobertura tríplex de dois mil metros quadrados, com quarto blindado, comprada do formador do conglomerado das Organizações Globo, Roberto Marinho, morto em agosto de 2003 aos 98 anos. Anos atrás, quando o bicheiro voltou à alça de mira da polícia e da Justiça por causa de um novo aperto de cerco ao bicho, Neguinho da Beija-Flor declarou em defesa do amigo: "Não sou homossexual, mas costumo dizer que o Anísio é o homem da minha vida." O banqueiro de Nilópolis não é muito fã de entrevistas longas. Mas nem por isso deixa de curtir os bons momentos na vida. Para comemorar seus 80 anos, em 2017, fechou o Museu de Arte Moderna do Rio (MAM), no Parque do Flamengo, para uma festinha de 400 talheres e R$ 1 milhão de custo assinada pelo cerimonialista Roberto Cohen. Lagosta, rosbife de salmão, bacalhau e vitela fizeram parte do bufê. Entre as bebidas, uísque, gim e cervejas nacionais e importadas. Anísio chegou antes e recebeu pessoalmente todos os convidados, entre eles os atores Edson Celulari e Cláudia Raia, o radialista Antônio Carlos, o carnavalesco Milton Cunha, os cantores Agnaldo Timóteo e Alcione, o diretor social da Liesa, Jorge Perlingeiro. E, claro, Neguinho da Beija-Flor. Alcione iniciou os trabalhos cantando o clássico As Rosas Não Falam, de Cartola. A Beija-Flor de Anísio tem hoje 14 títulos do Carnaval carioca. Apesar de bem mais nova na disputa do que a maioria das concorrentes tradicionais, ocupa o terceiro lugar no ranking de títulos, atrás apenas da líder Portela e da vice-líder Mangueira. Neguinho da Beija-Flor segue sua carreira de cantor e sambista de sucesso, com apoio e carinho da cota garantida de fãs após a recente batalha para vencer o câncer. E Aniz Abraão David, o Anísio da Beija-Flor, continua, tranquilo, a reinar em sua escola e em sua Nilópolis.