Oficialmente, o trabalho escravo foi abolido do país, na forma da lei, em maio de 1888, tornando o Brasil o último país das Américas a abolir a prática. Porém, 136 anos depois, o combate ao trabalho degradante, jornadas exaustivas e restrição da liberdade continua a apresentar novos desafios. No Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, celebrado nesta terça-feira (28), dados do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) mostram que, desde 1995, o país já resgatou 65 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão. “A cultura do abuso de vulnerabilidades também se apresenta como um grave desafio no enfrentamento ao trabalho análogo ao de escravo. O fenômeno do trabalho escravo contemporâneo está intimamente ligado ao conceito de abuso de vulnerabilidade. Não por outro motivo, a maioria das vítimas são pessoas altamente vulneráveis, seja do ponto de vista econômico ou social”, afirmou o MTE.O especialista em direito do trabalho Gilson de Souza explica que a legislação considera trabalho análogo à escravidão aquelas situações em que o trabalhador é submetido a condições que violam sua dignidade e liberdade.Os principais aspectos que caracterizam essa forma de exploração incluem:“Esses critérios são utilizados para identificar e combater práticas de exploração laboral, e a legislação brasileira, em especial o artigo 149 do Código Penal, prevê penalidades para aqueles que mantêm trabalhadores nessas condições”, afirmou o especialista.A partir de 1995, o país começou a receber inúmeras denúncias de superexploração do trabalho e, assim, reconheceu a persistência do trabalho escravo em território nacional, passando a organizar seu combate. Com isso, foi criado o GEFM (Grupo Especial de Fiscalização Móvel), visando apurar as denúncias em todo o território nacional. O grupo é formado por auditores-fiscais do trabalho, cujas operações contam com a atuação interinstitucional, principalmente de membros do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União e das Polícias Federal e Rodoviária Federal.A data de hoje também não foi escolhida por acaso — ela faz referência ao episódio em que três auditores de trabalho e um motorista foram assassinados durante uma averiguação de denúncias em fazendas de Unaí (MG), em 2004.Segundo o MTE, em geral, os trabalhadores e trabalhadoras resgatados de trabalho em condições análogas à escravidão são pobres, negros ou pardos, com baixo grau de instrução e provenientes de regiões com escassas oportunidades de inserção no mercado de trabalho. O baixo nível educacional resulta na falta de conhecimento dos trabalhadores sobre seus direitos e de como acessar a Justiça, o que os torna mais vulneráveis, sendo essa uma das principais causas do ciclo vicioso de opressão que ainda persiste no Brasil no século 21.“Questões de gênero são marcadamente presentes no caso do trabalho análogo ao escravo doméstico, onde predominam as vítimas femininas”, afirmou o MTE.Os empregadores escravagistas se utilizam justamente dessa situação de necessidade para inserir e “normalizar” cláusulas abusivas nos contratos de trabalho, como a remuneração irrisória por tarefa ou tempo; o salário prometido e não honrado; a transferência de custos que deveriam ser suportados pelo empregador, como os relativos a instrumentos e insumos de trabalho; a completa ausência de cobertura previdenciária; e as condições insustentáveis, sob o ponto de vista da saúde e da segurança, de alojamento, alimentação, hidratação e satisfação das necessidades fisiológicas.As autoridades afirmam que as leis trabalhistas também abrangem as vítimas estrangeiras, situação que tem se tornado cada vez mais comum. “É crucial informar que os trabalhadores não nacionais possuem os mesmos direitos trabalhistas que os obreiros nacionais, não havendo qualquer distinção em função da origem dos trabalhadores ou nacionalidade”, afirmou o MTE.Souza ressalta que estrangeiros podem, inclusive, denunciar casos suspeitos de trabalho análogo à escravidão. “A legislação brasileira não faz distinção entre cidadãos brasileiros e estrangeiros quando se trata de denunciar situações de trabalho análogo à escravidão. Qualquer pessoa que tenha conhecimento de tais práticas pode fazer uma denúncia, independentemente de sua nacionalidade”, afirma.O procurador do Trabalho Luciano Aragão Santos afirma que os estrangeiros que forem encontrados em casos nesta violação podem ter uma situação migratória facilitada. “Eles têm assegurado toda uma garantia de direitos, uma série de medidas protetivas para que seus direitos sejam integralmente reparados. Inclusive, uma situação migratória facilitada, em que pese, existe a possibilidade desses migrante estar em uma situação irregular, mas em razão da violação, há uma facilidade na regularização de sua condição migratória”, diz. Santos ressalta que um dos desafios é a falta de informação nas denúncias recebidas, como o nome do local ou pontos próximos. “O Ministério Público do Trabalho, inclusive, possui um projeto de capacitação da rede de atendimento, que busca trabalhar justamente em parceria com a assistência social para que as vulnerabilidades que tornam aquela trabalhadora ou trabalhador alvos fáceis sejam minimizadas”, explica.Para o ministério, o fenômeno do trabalho escravo contemporâneo está ligado ao conceito de abuso de vulnerabilidade. “Os empregadores escravagistas se utilizam justamente dessa situação de necessidade para inserir e ‘normalizar’ cláusulas abusivas nos contratos de trabalho, como a remuneração irrisória por tarefa ou tempo; o salário prometido e não honrado; a transferência de custos que deveriam ser suportados pelo empregador, como os relativos a instrumentos e insumos de trabalho; a completa ausência de cobertura previdenciária; e as condições insustentáveis, do ponto de vista da saúde e da segurança, de alojamento, alimentação, hidratação e satisfação das necessidades fisiológicas”, completou.O principal meio de denúncia desse tipo de crime é o Sistema Ipê, um canal exclusivo de denúncias de trabalho análogo à escravidão, criado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho.ACESSE AQUI O SISTEMA IPÊEste sistema é considerado um marco no enfrentamento do problema no país, uma vez que as denúncias são recebidas diretamente pela Coordenação, que realiza a triagem e qualificação. Havendo indícios de trabalho análogo à escravidão, as informações são repassadas imediatamente para os responsáveis.A legislação brasileira prevê mecanismos de acolhimento e proteção para as vítimas de trabalho escravo. Algumas das principais formas de acolhimento incluem:Em 2004, três auditores fiscais e um motorista do Ministério Público do Trabalho foram executados na cidade de Unaí, Entorno do Distrito Federal. O alvo dos assassinos era Nelson José da Silva, responsável pelas fiscalizações da região. As outras três vítimas eram os fiscais Erastóstenes de Almeida Gonçalves e João Batista Soares Lage e o motorista Ailton Pereira de Oliveira.O trabalho dos fiscais era checar denúncias de pessoas em situação análoga à escravidão nas fazendas do município. Os três auditores fiscais morreram na hora, mas o motorista conseguiu dirigir e pedir socorro. Ailton foi levado para o hospital, mas morreu antes de dar entrada na unidade.O Ministério Público Federal apontou nove envolvidos no crime; Erinaldo e Rogério, os pistoleiros; Willian, motorista dos bandidos; Humberto, responsável por apagar os rastros da quadrilha, esses contratados por Chico Pinheiro, fazendeiro conhecido por agenciar matadores de aluguel; a pedido de Zezinho e Hugo, empresários do setor de cereais, que intermediaram o crime. Os assassinatos foram a mando de Norberto e Antério Mânica, “os reis do feijão”.Norberto só foi preso no início deste ano, após 21 anos do crime. Em 2023, ele foi condenado a 64 anos de prisão pelos crimes de homicídio qualificado e formação de quadrilha. Ele foi encontrado em Nova Petrópolis, cidade da serra gaúcha.