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Canais de denúncia tentam romper subnotificação de violência infantil

Para facilitar registro de violações na pandemia, foram criadas formas de fazer a queixa sem precisar ligar, seja por app ou site

Cidades|Joyce Ribeiro, do R7

Denúncias de violações contra crianças caem na pandemia e preocupam autoridades
Denúncias de violações contra crianças caem na pandemia e preocupam autoridades

Os casos de violência contra crianças e adolescentes cresceram na pandemia, mas caíram as denúncias recebidas pelo Disque 100, segundo o governo federal. O confinamento com os agressores, na maioria familiares das vítimas, dificulta ainda mais a comunicação de ocorrências. Com as escolas fechadas, a subnotificação cresceu.

Para tentar facilitar o registro de denúncias sem a necessidade de uma ligação ou ida à delegacia, foram criadas ferramentas em aplicativos ou internet para registro de agressões. Outra iniciativa foi a implantação de uma senha para agilizar a formalização de denúncias por médicos.

"A pandemia agravou a violência, mas os números não representam isso. A maioria das denúncias vinha das escolas e as crianças estão fora delas. Até 2019, 55% das denúncias no Disque 100 eram de violação de direitos de crianças e adolescentes, mas com a pandemia esse índice caiu assustadoramente", revela Maria Leolina Couto Cunha, diretora do Departamento de Enfrentamento de Violações aos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

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Segundo ela, eram 9.978 denúncias em janeiro de 2020, e em março, no início do confinamento, caiu 24,4%, para 7.541. Os casos de estupro seguiram a mesma tendência. Eram 1.332 em março do ano passado e em dezembro encolheu 68%, passando a 420.


De acordo com o relatório da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, no primeiro semestre deste ano foram registradas 47.416 denúncias contra crianças e adolescentes, o que representa 31% do total. Mas no mesmo período de 2020, o número foi 11,4% maior: houve 53.525 queixas.

O drama real não é aquele maníaco que vai atacar a criança na porta da escola. Ele está dentro de casa

(Iberê Dias, juiz da Vara da Infância)

Em 2021, São Paulo lidera o ranking entre os estados, com 12.490 queixas até junho, seguido por Rio de Janeiro (6.270) e Minas Gerais (6.010). Roraima apresenta o menor número de denúncias: 95. 


No primeiro semestre de 2020, foram registradas 13.380 queixas em São Paulo (6,65% a mais), 6.738 em Minas (10,8% acima) e 6.454 no Rio (2,85% maior).

Na pandemia, crianças estão mais tempo dentro de casa com os agressores
Na pandemia, crianças estão mais tempo dentro de casa com os agressores

Facilitação da denúncia

Para combater a subnotificação, o ministério tentou facilitar o registro da denúncia. Ao ligar no Disque 100, a primeira opção é agora crianças e adolescentes, e foi criado o aplicativo de Direitos Humanos. O objetivo é que as vítimas consigam formalizar as queixas sem necessariamente precisar fazer uma ligação.


"O problema sério é que a violência contra crianças ocorre em ambiente doméstico, 80% dos casos nas casas, e normalmente é cometida por familiares e amigos da vítima. Precisamos vencer a subnotificação e a barreira da vergonha", afirma o juiz da Vara da Infância Protetiva de Guarulhos, Iberê Dias, que também é membro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana).

Apenas 10% dos casos de violência sexual contra crianças são registrados. Em muitos casos, segundo o juiz, avôs, pais e padrastos são os abusadores, mas a mãe não dá ouvidos aos filhos.

"O drama real não é aquele maníaco que vai atacar a criança na porta da escola. Ele está dentro de casa. A mãe culpabiliza a criança dizendo 'é claro que mexeu com você, olha essa roupa'. É muito raro que as crianças mintam sobre temas como sexo, que elas não têm conhecimento. Não acreditar é cômodo e perverso. Temos que romper com esse ciclo", enfatiza Iberê Dias.

Isso é a ponta do iceberg. Apenas 10% dos casos de abuso contra crianças são comunicados. Há uma subnotificação absurda

(Maria Leolina, diretora)

Uma conselheira tutelar de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, que prefere não ser identificada, lembrou que a maioria das denúncias vinham das escolas, mas também de parentes de forma anônima.

"Famílias não aceitam o que está acontecendo, negam o problema e falam que é coisa da cabeça da criança. Na pandemia o que mais recebemos foram conflitos de guarda e insegurança alimentar. Algumas violações já eram subnotificadas, como a sexual, mas agora caíram de todos os tipos", ressalta a conselheira.

Gledson Silva Deziatto é conselheiro tutelar em São Paulo há 10 anos e afirma que as denúncias do Disque 100 não estão chegando às unidades como ocorria no passado. "Para onde está indo? Direto para as delegacias? Polícia não sabe fazer abordagem com crianças e adolescentes. Na pandemia cresceram os casos de agressão e violência doméstica. Em uma semana, pegamos 12 casos", relata.

A diretora do Departamento de Enfrentamento de Violações aos Direitos da Criança e do Adolescente disse que não houve mudança de protocolo no encaminhamento das denúncias do Disque 100 e que, por causa da subnotificação, há hoje menos repasses aos conselhos tutelares.

Mas houve uma diminuição de óbitos de crianças por agressão. A média anual entre 2012 e 2018 era 10.658 casos. Em 2020, caiu 41%, com 6.283 notificações. "Ainda é alarmante, mas estamos caminhando para a queda. Uma única criança morta já é motivo de preocupação", destaca a diretora Maria Leolina.

Novas ferramentas

Em setembro, o governo federal espera lançar o aplicativo Sabe, voltado a crianças de 6 a 11 anos, e outra versão para adolescentes. A ferramenta terá vídeos educativos sobre os tipos de violência para que as crianças saibam as violações e um botão de pânico para emergências, com direcionamento para equipe especializada.

"Crianças estão acostumadas com tecnologia e celular. É essencial que haja meios adequados de denúncia e que estejam ao alcance das mãos", diz o juiz Iberê Dias. 

Na pandemia, a cada três usuários na internet, um é criança, o que trouxe preocupação para os pais e autoridades. Segundo o governo federal, 750 mil suspeitos buscam se conectar de forma online com crianças em todo o mundo e há um mercado voltado à pedofilia.

Para monitorar as tendências de crimes cibernéticos e fomentar boas práticas de prevenção, foi criado um observatório, que só deve começar a operar em 2022. O custo de implantação da plataforma foi de R$ 2 milhões e a empresa contratada por licitação foi a Universidade Federal do Paraná.

Não fazemos escuta da criança. Todo serviço ela teria de falar a mesma coisa e você fica revitimizando. Ideia é causar menos sofrimento

(conselheira tutelar de São Bernardo)

Também o texto do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) foi recentemente atualizado, com novas notas técnicas e leis, e agora está disponível em libras para pessoas com deficiência auditiva.

Foi assinado ainda um protocolo de intenções com a Marinha, para que o órgão possa atuar com crianças e adolescentes em comunidades ribeirinhas de difícil acesso.

Combate à violência

A negligência reúne o maior número de denúncias. Com a pandemia e o desemprego, ela aumentou porque pode ser resultado da condição financeira da família.

Segundo o relatório da Ouvidoria de Direitos Humanos, no primeiro semestre foram registradas 34.785 denúncias de violência física contra crianças e adolescentes, 34.353 de violência psicológica e 769 patrimonial. 

Com relação aos direitos sociais, houve 1.413 queixas por alimentação, 579 por educação, 532 de segurança e 3.431 violações de proteção à infância. 

Escolas percebem hematomas ou mudanças de comportamento
Escolas percebem hematomas ou mudanças de comportamento

"Violência psicológica é a maioria dos casos na Vara da Infância: o abandono e descuido afetivo. Tem também a violência física. Em geral, a violência sexual vem através de outras queixas já registradas. É raro que seja a primeira notificação", detalha o juiz Iberê Dias. 

Por serem as vítimas crianças, elas têm prioridade no atendimento, segundo a legislação. Assim que chega a denúncia, ela já é afastada do ambiente familiar e vai para casa de acolhimento ou de parentes ou o agressor sai de casa quando há medida protetiva. 

A criança passa a ter acompanhamento médico, psicológico e em cerca de 70% dos casos volta para a casa da família. Para evitar que tenha de narrar o episódio de violência diversas vezes, a vítima é ouvida uma única vez por meio da escuta especializada.

"Não fazemos escuta da criança. Todo serviço ela teria de falar a mesma coisa e você fica revitimizando. Ideia é causar menos sofrimento", conta a conselheira tutelar.

Problemas no enfrentamento

A pandemia escancarou alguns problemas vividos nos conselhos tutelares, além da falta de estrutura adequada para desempenho das funções, como veículos e computadores modernos, e de funcionários. 

"Sou conselheiro, psicólogo e assistente social. Está errado. Cada um tem seu papel. A demanda só aumenta, às vezes, tiramos do próprio bolso e isso gera um desgaste emocional e físico. Não há investimento em políticas públicas porque não dá visibilidade esse tipo de serviço", relata Gledson Deziatto.

Segundo ele, em caso de abuso, a criança fica depressiva e demora muito tempo para o encaminhamento na área assistencial. Há filas de espera porque faltam funcionários. 

A conselheira tutelar de São Bernardo também reclama: "Somos um órgão encaminhador. Na Saúde, está demorando porque só tem covid. Apenas os casos mais graves são atendidos. Há filas de atendimento na Saúde e Assistência Social. Na Defensoria Pública, agora melhorou, mas chegou a demorar 6 meses".

A conselheira ressaltou também que os inquéritos criminais se arrastam por anos. Ela atende um caso de uma criança que foi vítima em 2016, mudou de cidade para ficar com o pai biológico e até agora ela recebe ligação da delegacia.

"Sinto falta de uma delegacia especializada. Os inquéritos de violência sexual demoram muito, até mais de 4 anos. Se tivesse especializada, este tipo de crime seria priorizado", cobra.

Denúncias de médicos

Entre as iniciativas de reforço às denúncias, foi lançado em parceria com o CFM (Conselho Federal de Medicina) o tridígito 101 para médicos dentro do Disque 100 (Disque Direitos Humanos) e do Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher).

O número funciona como uma senha após a leitura do menu pelo robô que atende as ligações. Quando digitado, é imediatamente encaminhado para um atendimento especializado, sigiloso e, ao final, é gerado um número de protocolo.

Os médicos são, por lei, obrigados a formalizar a queixa de violência contra crianças e adolescentes, mesmo que sejam casos suspeitos detectados em consultas.

"É uma forma de estimular o médico a denunciar quando tem algum receio, uma trava. A maioria das violações ocorre em casa. Como não temos as escolas abertas, os médicos podem nos ajudar. Com o protocolo, ele pode acompanhar o encaminhamento dado àquela notificação e até para se resguardar em caso de acusação", explica a diretora Maria Leolina.

Não comunicar a violência é crime e a multa ao profissional de saúde varia entre 3 e 20 salários mínimos. Chega ao dobro do valor em caso de reincidência.

O tridígito para médicos foi lançado no último dia 13. Agora o Ministério pretende criar uma senha especial para professores. Será preciso informar o código da escola na ligação e haverá uma cartilha com as orientações de como proceder. A expectativa é de que passe a funcionar em agosto.

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