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Com ofensas e humilhações, Justiça reforça violência contra a mulher

Casos como os de Tatiane Spitzner e Mariana Ferrer trazem à tona despreparo do judiciário para combater a violência de gênero

Cidades|Fabíola Perez, do R7

Tatiane Spitzner e Mariana Ferrer: vítimas de agressores e da Justiça
Tatiane Spitzner e Mariana Ferrer: vítimas de agressores e da Justiça

"Ninguém aciona a Justiça porque quer." A frase da advogada Marina Ruzzi explica que o poder judiciário funciona no país como um recurso acionado quando todos os demais falham. Trata-se de uma instância para mediar conflitos à qual as pessoas recorrem com a expectativa de serem ouvidas e atendidas. Quando isso não acontece, quem precisa de ajuda acaba tendo que provar a advogados, juízes e promotores os motivos pelos quais está ali.

Casos como os de Tatiane Spitzner, encontrada morta no dia 22 de julho de 2018 após cair do 4º andar de um prédio no centro do Paraná, e Mariana Ferrer, humilhada em uma audiência cujo vídeo foi divulgado no dia 3 de novembro do ano passado, mostram que situações como essas ocorrem com frequência com mulheres vítimas de violência doméstica. Nos dois casos, a situação de violência foi revivida e reforçada por operadores do direito. No de Tatiane, durante a simulação de seu enforcamento em frente ao juri, protagonizada pelo advogado de defesa do marido. No de Mariana, em audiência, também por parte do advogado de defesa do abusador.

"O processo da revitimização acontece quando magistrados tratam quem deveria ser protegido de forma violenta”, afirma a advogada. Nesses casos, o judiciário não só deixa de fazer justiça como também colabora para o aumento da violência contra mulheres. 

Em julgamento, o biólogo Luis Felipe Manvailer, marido de Tatiane Spitzner, foi condenado em primeira instância a 31 anos, 9 meses e 18 dias de reclusão por homicídio qualificado. De acordo com o juiz, a vítima vivia um relacionamento abusivo, e o assassinato teve como qualificadores o feminicídio, meio cruel, motivo fútil e fraude processual, uma vez que Manvailer limpou os vestígios de sangue de Tatiane.


Embora tenha ocorrido a condenação, durante o julgamento, o advogado de Manvailer, Cláudio Dalledone Júnior, utilizou uma advogada assistente para encenar um enforcamento. Na simulação, o advogado quase derrubou a assistente. As imagens geraram indignação e revolta. “É chocante a banalização da violência contra a mulher, o vídeo é estarrecedor”, diz Mariana Tripode, advogada, fundadora e diretora da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres. “Num cenário de feminicídio, a cena de outro homem agredir uma colega é um gatilho para qualquer mulher que viveu um tipo de violência”, afirma.

Ele [advogado de Manvailer] ofende a dignidade da colega e de todas as mulheres. Se fosse um homem%2C ele faria essa simulação%3F

(Fabiana Dal’Mas, promotora de Justiça)

Para a promotora de justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, Fabiana Dal’Mas, a atitude do advogado de defesa do réu fere a Convenção Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres), a Convenção Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher) e até mesmo a Constituição Federal. “Ele ofende a dignidade da colega e de todas as mulheres”, diz. “Ela, por sua vez, se torna mais uma vítima da violência que não se vê como tal. Minha pergunta é: se fosse um homem, ele faria essa simulação?”, questiona.


O poder judiciário, assim como a advocacia e as polícias, são instituições que, segundo a promotora, reproduzem a violência de gênero presente na sociedade. “Elas são formadas por pessoas que disseminam o machismo de forma pública e sem medo. Isso porque as estruturas são construídas colocando a mulher em posição de subordinação, permitindo a violência institucional”, explica.

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De acordo com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a Recomendação 79, aprovada em 8 de outubro do ano passado, determina que os Tribunais de Justiça promovam capacitação em direitos fundamentais com perspectiva de gênero a todos os magistrados e magistradas que atuam em juizados ou varas que apliquem a Lei Maria da Penha. “Estamos em uma luta para fazer com que o Judiciário cesse a violência contra a mulher e possa se capacitar para um olhar crítico sobre o gênero”, diz Mariana.


Estamos em uma luta para fazer com que o Judiciário cesse a violência contra a mulher e possa se capacitar para ter um olhar crítico sobre o gênero

(Mariana Tripode, fundadora da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres)

Em muitos casos, no lugar de promover a Justiça, o poder judiciário faz com que muitas mulheres se sintam vítimas pela segunda vez diante dos juízes, advogados ou promotores. “Já ouvi de colegas advogados que em suas defesas falam que a mulher só ingressou com o processo porque é vingativa ou mal amada. A palavra ‘louca’ é a que mais escuto de outros advogados”, afirma a advogada.

Nas delegacias, a advogada relata que, ao acompanhar as clientes, costuma ouvir: ‘o que você estava fazendo naquele local e aquela hora? Se você estivesse em casa não teria sofrido abuso’”. Em casos de violência de gênero, a advogada lembra que não cabe o pedido de guarda compartilhada. Ainda assim, Mariana relata que já presenciou uma cliente questionar a uma juíza se ela não gostaria de ser informada sobre o porque a mulher não queria dividir a guarda. Como resposta, a mulher ouviu da magistrada: ‘não me interessa saber’.

Violência e humilhação

Outro caso que provocou indignação e revolta foi o de Mariana Ferrer, vítima de um estupro em 2018. Trechos de uma audiência realizada por meio de uma vídeoconferência, em que o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu o réu André de Camargo Aranha pelo crime, vieram a público revelando como o advogado tratou Mariana.

“Em nenhum momento ela foi tratada como vítima”, diz Fabiana. Segundo a promotora, não existe uma formação jurídica baseada na desconstrução do machismo e da violência de gênero. “Há apenas uma reprodução da violência. As mulheres sempre foram confinadas à esfera privada e a partir do momento que elas saem e ocupam espaços públicos há um conflito de poderes porque isso não é aceito.”

Na época, o caso se tornou polêmico porque foi associado ao termo "estupro culposo". A expressão, porém, não está presente nas páginas da sentença nem nas conclusões do promotor de Justiça, Thiago Carriço de Oliveira. O Ministério Público afirmou que não seria "razoável presumir que o réu soubesse ou que deveria saber que a vítima não desejava a relação."

Eu tô implorando por respeito%2C no mínimo. Nem os acusados%2C nem os assassinos são tratados da forma como eu estou sendo tratada.

(Mariana Ferrer, vítima de estupro)

Além disso, o vídeo provocou indignação pelo fato de a jovem aparecer abalada diante das afirmações do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho. Entre outras falas, ele diz: "Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lágrima de crocodilo". Na sequência, a jovem diz: "Eu tô implorando por respeito, no mínimo. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma como eu estou sendo tratada."

Vídeo de audiência de Mariana Ferrer
Vídeo de audiência de Mariana Ferrer

A forma como a audiência foi conduzida gerou críticas por parte do STF (Supremo Tribunal Federal). "As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras", disse o ministro Gilmar Mendes. "O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação." A advogada Marina Ruzzi explica que os casos de violência sexual são episódios em que o machismo se torna ainda mais evidente. “Existe uma ideia de que 'mulheres direitas' não sofrem esse tipo de violência”, diz.

Para se ter ideia do entendimento da Justiça sobre vítimas de violência sexual, até 2005, o Código Penal estabelecia que, se uma mulher violentada se casasse com o estuprador, ele não seria mais passível de punição. “O delito sexual tinha a pretensão de proteger a honra da mulher e não sua dignidade sexual”, explica a advogada. “Esse entendimento legitimava, por exemplo, casos de estupro marital, relações sexuais não consentidas entre pessoas casadas.”

Casos Eloá Cristina e Ângela Diniz

A morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, o feminicídio, só se tornou crime em 2015. Antes disso, Marina lembra que havia a argumentação que poderia ser adotada por parte da defesa do agressor de legítima defesa da honra. “Isso significava dizer que mediante uma injusta provocação da vítima, o agressor perdeu a linha”, explica Marina. “Pensando na família de uma mulher assassinada poucas coisas são piores do que reviver a cena que levou à morte em um tribunal”, afirma a advogada em relação à simulação do advogado do assassino de Tatiane Spitzner.

Leia também: Feminicídio na pandemia: 'a casa é o lugar mais perigoso para mulheres'

A naturalização da violência de gênero não é recente. Em casos como o de Eloá Cristina, o mais longo sequestro em cárcere privado registrado pela polícia de São Paulo, seguido de feminicídio, teve repercussão nacional e internacional. Em outubro de 2008, Lindemberg Fernandes Alves, de 22 anos na época, invadiu a casa da ex-namorada, de 15 anos, no bairro de Jardim Santo André. Depois de cem horas de cárcere privado, Eloá deixou o local e foi levada a um hospital, onde morreu em decorrência dos dois tiros que levou. “Foram incontáveis os erros por parte da polícia. Ele era completamente humanizado pela imprensa e pela justiça.”

O caso de Angela Diniz, morta em dezembro de 1976, na Praia dos Ossos, no Rio de Janeiro também revela uma abordagem machista por parte da justiça. O julgamento do agressor Doca Street teve como foco a moral sexual feminina. Condenado a dois anos, o agressor foi rapidamente solto, o que provocou protestos sob o lema "quem ama não mata", gerando um novo julgamento, no qual ele foi condenado a 15 anos de prisão.

“É um caso muito paradigmático. A estratégia de julgar moralmente a vítima e inverter os papeis dá certo e continua existindo. Não superamos esse paradigma, mas estamos tentando.” Nesse sentido, a lei do feminicídio, explica Mariana, obriga o júri a observar o critério do gênero nas decisões. “Isso tem modificado um pouco o sistema, mas é uma mudança lenta.”

Advocacia para mulheres

Em maio de 2016, junto com a sócia Ana Paula Braga, a advogada Marina Ruzzi criou o 1º escritório de advocacia para mulheres do país. Na época, segunda ela, o atendimento específico para mulheres vítimas de violência de gênero era oferecido por ONGs. “Havia uma grande demanda porque as violência de gênero aparece das mais diversas formas. Queríamos acolher essas mulheres.”

Segundo ela, quando uma mulher sofre violência física ou psicológica ela precisa abrir diversos processos em áreas diferentes. “Elas precisam tratar a parte criminal, a parte da família, trabalhista e havia uma falta de sintonia entre as narrativas. Com esse atendimento, a rota fica mais simplificada.” As mulheres que procuram este tipo de advocacia buscam acolhimento. “Existem aquelas conscientes do que acontece e querem reconhecimento, pedindo que a gente fale sobre o machismo com corpo jurídico para essas percepções”, diz. Outras, diz Marina, estão menos familiarizadas com esses processos e temem ser vitimizadas pelos profissionais do direito.

Hoje, existe um movimento em todo o país para que os direitos das mulheres sejam cumpridos e sigam as convenções internacionais

Mariana, fundadora da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres, criou o primeiro escritório de advocacia para mulheres do Distrito Federal, em 2017. “Esse movimento era muito pequeno, mas pelas redes sociais, pude conhecer muitas mulheres. Hoje, existe um movimento em todo o país para que os direitos das mulheres sigam as convenções internacionais”, diz. “Sofremos quando nossas clientes não são ouvidas e os direitos fundamentais são violados.”

Hoje, o escritório de Mariana tem cerca de 200 processos de violência de gênero espalhados por todo o país. Com a pandemia, a advogada conta que pode atender clientes em todo o país. Além do escritório, a advogada encabeçou a criação de um curso de capacitação para mulheres advogadas. A primeira edição teve 27 inscritas e a segunda, lançada neste mês, tem previsão de chegar a 120 inscrições. Apesar disso, ela ressalta que a falta de capacidade técnica ainda é um dos principais entraves para o sistema de justiça. “Tivemos muitos avanços como a Lei Maria da Penha, mas isso só aconteceu, de fato, depois que o Brasil foi levado a instâncias internacionais.”

A promotora Fabiana Dal’Mas afirma que as mudanças devem passar pela educação primária, secundária e universitária. Iniciativas como rodas de conversa com o agressor são válidas, mas, segundo ela, revelam falhas anteriores nas políticas de educação. “Em países como a Austrália, existem iniciativas que, ao invés de prever a retirada das vítimas e filhos de dentro de casa em casos de agressão, quem sai é o agressor”, diz. “Então, é preciso ter cuidado com a vítima, avançar nos mecanismos de coleta de depoimento, investir no preparo dos profissionais do direito.”

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