Denúncias de violação contra crianças aumentam mais de 50% no Brasil em um ano
Somente em 2022, o Disque 100 registrou 99.153 denúncias, incluindo física, psíquica e sexual; em 2021, o número foi de 53.146
Cidades|Letícia Dauer, do R7
O Dia Internacional das Crianças Vítimas de Agressão, que cai neste domingo (4), foi criado pelas Nações Unidas para alertar sobre a situação de vulnerabilidade a que este público está submetido. No Brasil, as denúncias de violência infantil registraram aumento de 53% em apenas um ano. Os dados foram disponibilizados pelo Disque 100, do MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania). Cada denúncia pode reunir mais de um tipo de violação, de acordo com a pasta.
Em 2022, o serviço do governo federal recebeu mais de 99 mil denúncias, que apontam para cerca de 515 mil violações de direitos como violência física, maus-tratos, negligência, tortura psicológica, abandono e até abuso sexual, segundo levantamento realizado pelo R7. Enquanto, em 2021, a pasta contabilizou mais de 53 mil denúncias com aproximadamente 228 mil violações. O número pode ser ainda maior, pois há muitos casos subnotificados.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, a redução das quarentenas trazidas pela pandemia, a disseminação do discurso de ódio, a crise econômica-social, a maior conscientização da população para a realização de denúncias e o uso da violência como ferramenta de disciplina e educação são os fatores que justificam o crescimento expressivo do número de violações de direitos contra pessoas entre 0 e 11 anos.
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De acordo com Márcia Cristina de Oliveira, articuladora da Rede Não Bata, Eduque, muitos adultos associam a disciplina com a violência e a agressão, por isso defendem as “palmadas pedagógicas”.
"As crianças são vistas como propriedades pelos pais, e não como cidadãos. As pessoas ainda falam: o filho é meu, e eu faço o que eu quiser. É um pensamento que precisamos romper. É uma forma muito discriminatória de olhar as crianças, que são as pessoas mais frágeis na sociedade", afirma.
Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, diz que esse comportamento é explicado pela tradição da violência na sociedade brasileira.
"Muitos pais e mães foram alvos de violência durante a infância, adolescência e juventude e replicam a forma com que foram tratados. Temos essa tradição em toda a história brasileira mesmo após quase 33 anos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Ainda não conseguimos romper o ciclo de violência", aponta o advogado.
A articuladora da Rede Não Bata, Eduque também defende que a disciplina não deve ser vinculada à violência física ou psicológica, mas, sim, ao diálogo, respeito, amor, afeto, além do estabelecimento de uma rotina para a criança. Ela também salienta que o processo de construção da disciplina é diário, por isso o reconhecimento dos pais ou responsáveis como autoridades leva um certo tempo.
"A criança é frágil, é cidadã e não é uma coisa. Se a gente não aceita violência contra mulheres, idosos e animais, por que em alguma medida ainda aceitamos violência contra crianças?", questiona Oliveira.
Insegurança no lar
Os dados do Disque 100 revelam que as mães e os pais são considerados responsáveis por mais de 70% das violações contra as crianças (372.794). Enquanto, a casa onde moram a vítima e o agressor é apontada como cenário de violência em 69% dos casos (356.577).
O ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente afirma que a maioria das denúncias recebidas pelo Disque 100 são de negligência, porém nem sempre os pais podem ser culpabilizados pela situação de vulnerabilidade dos filhos. Geralmente, as famílias estão desamparadas e enfrentam a ausência de programas sociais.
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"Muitas mães são abandonadas pelos pais das crianças e não recebem pensão alimentícia. Para sustentar os filhos, as mulheres os deixam sozinhos em casa para conseguir trabalhar. Depois são acusadas de abandono de incapaz e maus-tratos. Entretanto, isso ocorre pela falta de serviços sociais, vaga em escolas e creches e de programas que possam garantir a subsistência às famílias", alega o advogado.
Pandemia
O aumento de violações contra crianças entre os anos de 2022 e 2021 também está vinculado à retomada das atividades presenciais, principalmente as escolares, após a pandemia de Covid-19. "Nós devemos levar em consideração o papel fundamental dos educadores e das escolas para descoberta dos casos que tenha ocorrido anteriormente, com destaque para o período em que as crianças ficaram confinadas", afirma Alves.
A pandemia ainda acentuou a crise econômica-social no país. Muitas famílias perderam o emprego e a renda fixa e foram privadas da rede de apoio familiar e escolar. "Não ter comida no prato. Não ter lugar para morar. Todos esses fatores foram agravados durante a pandemia, o que mexe com as pessoas e provoca a violência, além de levar ao abuso de drogas e álcool", diz Marcia Oliveira.
Conscientização
Para os especialistas ouvidos pelo R7, a população tem se conscientizado mais sobre a necessidade de denunciar casos de violência em razão de campanhas organizadas por entidades da sociedade civil, pelos meios de comunicação e pelo próprio governo federal, especialmente em 2022.
De acordo com Ariel de Castro, a ampla repercussão de alguns casos - como do menino de 11 anos que foi acorrentado pelas mãos e pés em um barril e do menino Henry Borel - também ajudaram a estimular maior sensibilização e despertar a consciência das pessoas para casos de maus-tratos e violência infantil.
No ano passado, a Lei 14.344/22, batizada de Lei Henry Borel, ainda foi sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro. O texto estabelece medidas protetivas específicas para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar e considera crime hediondo o assassinato de menores de 14 anos.
Como denunciar?
Coordenado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humano, o Disque 100 é um serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos, que funciona 24 horas, todos os dias da semana, inclusive nos fins de semana e feriados. A ligação é gratuita e sigilosa.
De acordo com o MDHC, o serviço pode ser considerado como “pronto socorro” dos direitos humanos e atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante.
O denunciante ainda pode procurar outros canais como o aplicativo Direitos Humanos, o Telegram e o WhatsApp, no número (61) 99611-0100.