Há 30 anos, o Brasil anunciava um novo projeto para estabilizar a economia nacional após um longo período que ficou marcado pela inflação elevada que corroía o poder de compra da sociedade e causava incerteza. O programa inicialmente foi visto com desconfiança devido ao fracasso de planos anteriores, que apostaram em medidas como o congelamento de preços e salários e o confisco de parte da poupança da população, mas no final só agravaram a recessão econômica do país.Para fazer diferente e não repetir os mesmos erros, o governo decidiu investir em uma abordagem mais abrangente e estruturada, que focou soluções em longo prazo. A investida começou com a criação de uma moeda virtual para estabilizar preços e salários, a URV (Unidade Real de Valor), o que evitou que o país tivesse de lidar mais uma vez com impactos mais severos devido à alteração brusca nos rumos da política monetária. Depois, a URV foi convertida no real, a atual moeda.A entrada em circulação do real em 1º de julho de 1994 transformou o cenário de inflação, que chegou a atingir 4.922% no acumulado em doze meses até junho de 1994, às vésperas do lançamento da nova moeda. A inflação, que terminou 1994 em 916%, caiu drasticamente para 22% em 1995.“Além desse fator de uma expectativa, de um medo permanente, de uma ansiedade permanente, o fato é que a inflação – e aqui eu vou usar um jargão, mas é um jargão verdadeiro – é o imposto mais perverso que recai sobretudo sobre os pobres. Por que ela é imposto? Primeiro porque ela é um imposto silencioso. A lei tal e a alíquota tal recaem sobre essa base tributária. E é um processo econômico que vai corroendo o poder de compra das pessoas. Então, é como se fosse um imposto. E não dava nada em troca”, comenta o cientista político e diretor-executivo da Fundação FHC, Sergio Fausto.Desde então, mesmo diante de crises internacionais e internas que desafiaram a estabilização econômica, a inflação acumulada em 12 meses ultrapassou 9% apenas em raras ocasiões. Para efeito de comparação, a inflação em 2023 foi de 4,6%.“Temos muito o que comemorar. Ao mesmo tempo, temos muito ainda que caminhar em termos de reforma para que o Brasil possa lidar com problemas fundamentais e responda a perguntas básicas como por que o Brasil cresce pouco e por que é tão difícil fazer reformas no país”, frisa Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda e um dos principais arquitetos do Plano Real.O real se tornou a moeda mais longeva do Brasil, e sua criação trouxe um ciclo de confiança e previsibilidade ao país, amenizando os efeitos da hiperinflação entre as décadas de 1980 e 1990. Se antes os brasileiros tinham dificuldade para planejar o futuro e manter o valor de salários e poupanças, com a nova moeda o país conseguiu estabilizar a política fiscal e facilitar a organização financeira das famílias.Graças ao Plano Real, o país criou um ambiente mais favorável para o desenvolvimento econômico e social. O Plano Real conduziu o Brasil a diminuir os índices de pobreza e melhorar a qualidade de vida da população. Com a estabilidade econômica viabilizada pela nova moeda, o país atraiu investimentos e gerou empregos, bem como conseguiu lançar programas sociais de forma mais eficiente, visto que houve maior controle sobre as finanças públicas.A partir das tentativas frustradas de controlar os índices inflacionários do país, a equipe do ministério da Fazenda do então presidente Itamar Franco, em 1993, começou a analisar o cenário e as tentativas anteriores para elaborar um plano que transformaria a realidade do país. Quem ficou a cargo dessa missão foi o ministro da Fazenda à época, Fernando Henrique Cardoso, o terceiro a ocupar o cargo durante o governo Itamar.Segundo Sergio Fausto, uma das principais características dessa nova investida foi a transparência, ou seja, comunicar o que ia acontecer e quando. Ele lembra das disputas judiciais e até mesmo um movimento de aumento nos preços para se “prevenir” do congelamento de preços.“Tem a ver com a democracia. E com a ideia de: ‘Eu não vou te dar um susto, eu não vou te pregar uma surpresa, não tem uma pegadinha’. Porque todas essas coisas que se faziam antes, iam parar nos tribunais. A empresa que ficou com o preço defasado e teve prejuízo, o servidor que ficou com o salário atrasado.”Especialista em direito bancário e ex-procurador do Banco Central, Fabiano Jantalia diz que as fases estruturadas fizeram com que a iniciativa agisse em diversos aspectos.“Qual foi a grande sacada do Plano Real? Foi não fazer um movimento abrupto, foi fazer um movimento que não só atacasse as questões da inflação do dia-a-dia, mas as causas estruturais. Ele trouxe soluções para a gestão de contas públicas, para mais responsabilidade, que depois vamos desembocar na Lei de Responsabilidade Fiscal”, destaca.Pedro Malan afirma que o sucesso na elaboração e implementação do plano que pôs fim à hiperinflação no Brasil foi fruto de uma década de discussões acadêmicas e diversas tentativas de estabilização econômica, incluindo os planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor.“Foi, pelo menos, uma década de discussões acadêmicas entre economistas, em particular no Departamento de Economia da PUC [Pontifícia Universidade Católica], a partir da criação do seu mestrado em 1978/79 até o início dos anos 1980/1990, que essa discussão teve lugar intensa sobre como lidar com os problemas de uma inflação alta, crônica e crescente que fez com que nós fossemos o país com maior alta de inflação acumulada desde o início dos anos 1960 até o início dos anos 1990″, destaca.“Era necessário fazer algo com certa urgência. E teve um aprendizado também nos anos anteriores, com o Cruzado 1, o Cruzado 2, o Plano Bresser, o Plano Verão, o Collor 1, Collor 2. Então, houve antecedentes de pelo menos uma década de discussões entre economistas e com a sociedade, acompanhados pela imprensa, e também as experiências e aprendizados com as tentativas de estabilização pré-Real. Não foi uma coisa que veio da mente, uma sacada brilhante ou espécie de milagre”, completa.Lançados em 1986, visavam estabilizar a economia brasileira através da troca do cruzeiro pelo cruzado, corte de três zeros na moeda, congelamento de preços e da taxa de câmbio, e mecanismos como o “gatilho salarial” e a “tablita” para ajustar salários e dívidas à alta inflação. Inicialmente, o Plano Cruzado I reduziu a inflação e aumentou o poder aquisitivo da população, mas o congelamento de preços causou desequilíbrios financeiros e escassez de produtos.Já o Plano Cruzado II tentou corrigir esses problemas com descongelamento de alguns preços, aumento de impostos e tarifas, mas a valorização artificial do cruzado e o consequente déficit nas reservas internacionais levaram o Brasil a declarar moratória da dívida externa em 1987, com a inflação retornando aos dois dígitos.Lançado em junho de 1987, o plano teve como mote um novo congelamento de preços e a extinção do gatilho salarial. Para promover o superávit comercial e fortalecer as reservas internacionais, a taxa de câmbio oficial foi desvalorizada. Foi criada a Unidade de Referência de Preços (URP) para reajustes de preços e salários. Inicialmente, a inflação mensal caiu de 19,71% em junho para 4,87% em agosto de 1987, mas logo voltou a subir devido à remarcação generalizada de preços e o não cumprimento do congelamento de preços.Foi lançado em janeiro de 1989 e substituiu o Cruzado pelo Cruzado Novo, além disso, foi implementado um novo congelamento de preços para tentar desindexar a economia. Embora inicialmente tenha reduzido a inflação, com o IPCA caindo para 6,82% ao mês em março de 1989, logo enfrentou novo aumento inflacionário, alcançando 17,92% em maio e terminando o ano com uma taxa anual de 1.972,91%.O Plano Collor 1, conhecido como “Brasil Novo”, foi implantado em março de 1990, após a posse de Fernando Collor de Melo, primeiro presidente eleito por voto direto desde o regime militar. Entre as medidas mais controversas estava o confisco de depósitos bancários, com exceção de retiradas limitadas a 50 mil Cruzados Novos por 18 meses. O plano também reintroduziu o Cruzeiro como moeda, sem corte de zeros, e incluiu congelamento de preços e salários. No entanto, não conseguiu conter a inflação, que atingiu 1.621% ao ano em 1990.Com o fracasso do primeiro plano, foi colocado em prática o Plano Collor 2, anunciado em janeiro de 1991, que continuou com congelamento de preços e salários e introduziu mudanças nas contas indexadas de curto prazo e na taxa de referência. Apesar de uma breve contenção inicial da inflação, a taxa mensal acelerou novamente rapidamente, refletindo a instabilidade econômica e política da época.A história da elaboração do Plano Real e da estabilização da economia brasileira é detalhada em um documentário produzido pela equipe do Jornal da Record em comemoração aos 30 anos da elaboração e implementação do plano no país.Em três episódios, personalidades como Fernando Henrique Cardoso, Pérsio Arida, Pedro Malan, Gustavo Franco e Edmar Bacha compartilham os bastidores da trajetória histórica.Os episódios estreiam em 1º de julho no PlayPlus.com, o serviço de streaming multiplataforma da RECORD, oferecendo acesso exclusivo a conteúdos originais e transmissão ao vivo simultânea da emissora.