O coração de Margarida amoleceu e fez os olhos enxergarem a filha no dia 19 de janeiro de 1982, data da morte de Elis Regina, sua artista predileta. A filha, Débora Seabra, contava apenas com seis meses e quatro dias de vida. A advogada recorda: — Chorei muito, demais, aos cântaros, a morte da Elis. Aí, de uma hora para outra, percebi que lamentava a ausência de alguém amado que não estaria mais comigo enquanto resistia a dar e receber afeto de quem ainda poderia ter toda uma vida ao meu lado. A partir daquele ponto minha relação com Belinha mudou de forma visceral, radical, revolucionária. Dos seis meses aos dez anos, Belinha foi levada entre quatro e seis vezes por ano para cumprir programas de tratamentos de estimulação precoce de seus potenciais na Clínica de Reabilitação Especializada, em São Paulo.Leia a história de vida e superação de Débora Seabra aqui Passavam temporadas na cidade, quase todas elas com o incentivo do padrinho Henfil, amigo da família que havia morado em Natal e enfrentava firmes sessões de fisioterapia para amenizar os efeitos da hemofilia, doença genética enfrentada por ele e seus irmãos, o músico Francisco Mário, o Chico Mário, e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Como ainda não havia orientação médica do tipo em Natal, o casal gravava as atividades em São Paulo, repetia em casa e repassava as lições aos casais com filhos na mesma situação. Pouco depois do nascimento de Débora, Margarida estava entre as mães e pais de filhos Down que deram depoimento para um livro sobre inclusão da jornalista Cláudia Werneck (mãe da atriz e humorista Tatá Werneck) e um programa de televisão dedicado ao assunto.Tecnologia permite que alunos com doenças graves tenham aula fora da escola Nas duas ocasiões, a advogada, com a sinceridade habitual, revelou o que sentiu na ocasião do nascimento de Belinha, a exemplo do que faz agora nesta reportagem: os momentos em que desejou a morte da filha. Pouco antes de Débora fazer dez anos, Margarida, há muito tempo distante daquele pensamento e temerosa de que a filha descobrisse as declarações sozinha ou com a ajuda de alguém, resolveu ela mesma abrir o jogo sobre o passado: — Chamei Belinha e contei tudo. Ao acabar de ouvir, ela me abraçou e choramos juntas. Perguntei a ela: hoje você me ama e se sente amada por mim? Ela disse que sim. Emendei: pois então isso é o que importa, porque você, seu irmão e o papai são os meus amores supremos, a minha vida, a minha razão de viver.Portugal, Argentina e na ONU, em Nova York Um dos prazeres de Belinha é viajar. Esteve recentemente em Portugal, na Argentina, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Diz ter “adorado os quatro lugares”. Talvez por efeito da dispersão típica das pessoas com a síndrome, esqueceu-se de citar Nova York, visitada em março de 2014 para dar uma palestra sobre inclusão e aspectos da sua vida pessoal e profissional na Organização das Nações Unidas, a ONU. Ao final, foi aplaudida de pé e com ênfase por todos.A Culpa É das Estrelas: voluntários da vida real garantem que os grupos de apoio fazem “milagres” Leia mais sobre Educação no R7 Débora teve dois namorados na adolescência, ambos com a síndrome. Agora está sozinha. Na maior parte do tempo leva a situação “numa boa”, como costuma dizer. Mas às vezes reclama com a mãe a falta de alguém ao lado. Margarida não perde tempo: — Meu amor: nem adianta reclamar. Primeiro, porque você é privilegiada: já teve dois quando um monte de menina por aí ainda não conseguiu nenhum. Em segundo lugar, namorado não vende no empório da esquina. Se vendesse, eu compraria aquele mais lindo, mais perfeito, absolutamente irretocável, só para a Belinha... Margarida mudou a vida de Belinha — que revolucionou a vida de Margarida.