‘Eles não têm voz para gritar’: a veterinária que usou próteses para salvar 10 mil da eutanásia
Sucesso entre amantes de pets e animais silvestres, Maria Angela Panelli conta com as redes sociais para divulgar seu trabalho
Entrevista|André Barbeiro*, do R7
Famosa na internet principalmente pela criação de próteses criativas que salvam a vida de animais silvestres condenados à eutanásia, a veterinária e zootecnista Maria Angela Panelli, de 57 anos, estima que só chegam até ela entre 10% e 20% dos bichos à espera de uma nova chance.
“O resto está sofrendo e não tem voz para gritar”, diz, em entrevista concedida ao R7 por chamada de vídeo de Barretos, no interior paulista, onde mora há mais de uma década. Foi lá que ela começou a ajudar, de forma voluntária, uma lista que já chega a 10 mil vidas.
Com quase 600 mil seguidores no Instagram, Maria Angela conta que começou a usar as “sobras” de tempo entre um atendimento e outro para atender os bichos desenganados que a Polícia Ambiental lhe trazia: aves com a asa quebrada ou sem bico, tartarugas paraplégicas, tamanduás com patas queimadas e muitos animais amputados, como um gavião-carijó sem as patas traseiras.
“Não me conformei e perguntei se poderia utilizar os meus conhecimentos de ortopedia em cães e gatos para tentar salvar a vida desses animais. Eles deixaram e foi aí que tudo começou.”
Nem todos voltam à natureza. A maioria vai para santuários ou reservas ambientais.
Foi nos anos 1990, ainda como zootecnista, que ela começou a trabalhar em uma clínica, em Goiás, para castrar animais de rua. Sua sócia desistiu depois de três meses, porque não queria trabalhar com “bicho sujo”. Maria Angela decidiu, então, cursar veterinária para seguir sua vocação.
Hoje, atende animais do mundo todo, mas sente não ver seu exemplo seguido pelos colegas de profissão. “Muitos me criticam, dizendo que não vão ganhar dinheiro com isso. Enxergo de outra forma, vejo como uma semente.”
Confira os melhores trechos da entrevista com Maria Angela Panelli:
R7 — Como você começou a fazer esse trabalho voluntário com os os animais?
Maria Angela Panelli — Eu tinha um sonho de ajudar esses animais. Cheguei a montar uma clínica com uma veterinária em Goiás, em 2004, mas só funcionou por três meses, porque ela não queria mais mexer com ‘bicho sujo’. Aí, decidi fazer medicina veterinária, me formei, montei minha clínica e comecei a fazer esse trabalho voluntário. Hoje, agradeço àquela veterinária, porque me encontrei muito mais na veterinária do que na zootecnia.
R7 — Como foi que você começou a fazer próteses para os animais resgatados?
Maria Angela — Quando me mudei para Barretos, em 2013, a polícia ambiental começou a me procurar para entregar animais resgatados com problemas, como asa quebrada, sem pata, sem parte do bico, pedindo que eu fizesse eutanásia. Não me conformei com isso e perguntei se poderia utilizar os meus conhecimentos de ortopedia em cães e gatos para tentar salvar a vida desses animais. Eles deixaram e foi aí que tudo começou.
Começamos a publicar nas redes e foram surgindo serviços remunerados. Pessoas do Brasil inteiro me trazem animais. Acho que plantei uma semente e hoje estou colhendo um pouquinho. A força da rede social é notória, né? Em junho, fui fazer um atendimento de uma espécie de maritaca nas Ilhas Maldivas [na Argentina]. O tutor mandou mensagem, pagou todos os custos e ainda me deu três dias de estadia em um resort. Foi maravilhoso.
R7 — Como você conseguiu manter os atendimentos?
Maria Angela — Eu atendia cães e gatos e, como sempre sobra uma ‘gordurinha’ entre os atendimentos, investia essas sobras para tentar salvar esses outros animais. Hoje, resgato todas as espécies, entre elas cães, gatos e coelhos silvestres... Vem tudo para mim. Já atendi onça-parda, veado, primatas de todas as espécies nativas, aves dos mais variados tipos. A maioria delas de bico torto, como araras, calopsitas, maritacas e papagaios.
R7 — No seu Instagram, há histórias dos bichos que receberam as próteses e ficaram superbem depois, mas também tem casos que não deram certo. Tem muito animal que não resiste?
Maria Angela — Infelizmente, existem muitas perdas. Por exemplo: uma coruja-buraqueira, que é a corujinha mais comum que tem no chão. Normalmente, alguém pega o filhote e diz que vai cuidar do bichinho. Quando elas são pequenininhas, são fofinhas. A pessoa leva para casa, cuida uma semana do jeito que ela acha que deve. Aí percebe que a ave começa a ficar quietinha, acuada e vem para mim. Pergunto o que a pessoa deu para comer e ela fala: ‘papinha de fubá’. Uma coruja é extremamente carnívora, se ela ficar comendo papinha de fubá, ela morre, porque não tem nada para ela ali. Então, muitas vezes, chega para mim em um ponto no qual eu não consigo mais salvar.
Muitas vezes, chega para mim em um ponto no qual eu não consigo mais salvar
R7 — Qual foi o caso mais difícil que você já pegou?
Maria Angela — Foi uma onça-parda que provavelmente levou um tiro. Tiramos um projétil do ombro dela. Provavelmente, ela tinha ido até a estrada machucada para tentar comer alguma coisa, mas, por conta da dor, foi atropelada e quebrou a mandíbula. Infelizmente, depois de uma semana, ela morreu por sepse, que é infecção generalizada.
Teve um lobo-guará que também foi bem complicado, mas ele sobreviveu. Ficou uma semana preso em uma armadilha para porcos-do-mato, feita com laço de aço. Ele entrou para comer, o laço pegou o braço dele e ele ficou garroteando uma semana. Quase cortou o osso. Chegou para nós para amputação, mas a gente não amputou, conseguiu recuperar o braço e, depois de três meses, ele foi solto. Animais silvestres são difíceis porque você não consegue fazer curativo. Tem que anestesiar. Como eles não deixam chegar perto, é um pouquinho mais difícil, mas não é impossível.
R7 — Como você pensa nas próteses? Vi que elas são feitas com os mais diversos materiais e que são bem criativas.
Maria Angela — Cada espécie silvestre tem uma anatomia completamente diferente. Cada uma tem uma mordedura, uma oclusão de bico e temos que estudar um pouquinho. Já errei muito, mas existem vários casos que consegui corrigir. Tento seguir a anatomia do animal o máximo possível. Já tentamos usar, por exemplo, próteses de impressora 3D, mas é muito complicado fazer uma peça fixa funcionar em bicos tortos, porque eles têm uma mordida muito forte. A prótese em 3D que mais durou teve 12 dias. Chega uma hora em que ela cai. Por isso, começamos a pensar em outras alternativas. Hoje, cheguei em um modelo bom, feito com tela de titânio, parafusos e resina odontológica, mas ainda acredito que dá para aprimorar.
R7 — O bicho sente alguma dor no processo?
Maria Angela — Ele sente um desconforto. É como colocar um aparelho no dente. É horrível. Geralmente, eles chegam com meses sem bico. Então, já se acostumaram com aquela condição. A dor conseguimos controlar com medicação. É todo um processo, mas eles se adaptam bem e muito rápido.
Primeiro você tem que gostar do bicho, para depois fazer alguma coisa por ele
R7 — Acha que grande parte desses animais não precisaria dessa nova chance se não tivesse sido vítima de falta de preparo ou da negligência do ser humano?
Maria Angela — Sim, e o que mais pega é o crescimento populacional. Os bicos geralmente são fraturados ao bater em um carro ou em outra coisa. Acontece, por exemplo, se é uma área de mata que, de um ano para o outro, transformou-se em um grande condomínio. A ave está acostumada a passar por aquele corredor e, de repente, encontra uma parede. Então, nós somos os culpados e é uma coisa que vai continuar, porque a população cresce e tem que ter casa para todo mundo.
R7 — Temos visto o Mato Grosso do Sul a todo momento declarando estado de emergência por causa das queimadas, além da destruição do bioma do Pantanal. Como as mudanças climáticas impactam a vida desses animais?
Maria Angela — A mudança climática acontece pela negligência humana. Quando ela ocorre no seu tempo natural, os animais têm uma margem para se adaptar. O problema é que, com a interferência do homem, essas mudanças climáticas estão ocorrendo muito bruscamente. E não está dando tempo para esses animais conseguirem se adaptar. Então, eles estão simplesmente sendo exterminados.
R7 — Não tem como mitigar essa situação?
Maria Angela — Sim, com conscientização. Mas é muito complicado atingir as grandes massas. Talvez o certo seria começar a fazer nas escolas. Porque os filhos, levando informação para casa, muitas vezes conseguem convencer o pai ou a mãe a se comportar de uma maneira diferente. Com coisas simples, como saber onde descartar um chiclete. Muitas pessoas tiram da boca e jogam pela janela do carro. As aves vão comer esse chiclete e morrer, porque não conseguem digeri-lo.
R7 — Como chegam esses animais vítimas das mudanças climáticas?
Maria Angela — Recebo muitos queimados, por exemplo. Este ano está até brando, mas tivemos anos em que eram dois ou três por dia. Tem também aqueles mantidos em cativeiro e os alimentados de forma errada. Chegam aqui em uma situação muito mais precária. São mais perdas do que ganhos. Mas temos boas vitórias.
São mais perdas do que ganhos. Mas temos boas vitórias
R7 — Como você trata os queimados, especificamente?
Maria Angela — No ano passado, chegaram vários tamanduás queimados e fizemos todo o processo de tratamento, como se faz em um ser humano. Até utilizamos pele de tilápia.
R7 — Recebeu animais da tragédia no Rio Grande do Sul?
Maria Angela — Não. Fizemos uma campanha para arrecadar ração medicamentosa e mandamos para lá, mas não veio nenhum animal, por causa da distância e de toda a logística necessária.
R7 — De onde mais chegam animais para você?
Maria Angela — Não vêm muitos animais de outras regiões, porque a logística atrapalha. Funciona assim: já vieram animais tutorados do Amazonas, do Sul, de São Paulo, do Rio de Janeiro. Para os animais resgatados, é mais difícil, porque não temos logística e ninguém quer pagar por ela. Então, chega mais de Barretos, de Ribeirão Preto, de São José do Rio Preto... Para os que vêm de São Paulo, resolvi de outra forma. Por conta da quantidade de pedidos, fiz uma parceria e vou algumas vezes para a capital e os atendo.
Meu sonho é que meus colegas [veterinários] estivessem mais empenhados [...] Mas muitos me criticam, dizendo que não vão ganhar dinheiro com isso. Enxergo de outra forma, vejo como uma semente
R7 — Suas postagens no Instagram alcançam em torno de 20 mil curtidas. Um exemplo é o recente caso de um pássaro que teve o bico arrancado por outra ave. Como você avalia a comoção que seus vídeos causam na internet?
Maria Angela — Acho que é interessante, porque dá um choque de realidade nas pessoas, mas infelizmente é passageiro. Elas esquecem rápido e tudo volta ao ciclo ruim normal. Costumo dizer que os animais resgatados que chegam para mim são apenas 20% [dos animais que precisam de ajuda]. Porque, por exemplo, muita gente pega uma ninhada de gatos, coloca no saco e joga do outro lado do muro, no mato, no rio. Isso é muito comum entre as pessoas mais antigas. A gente não vai ver essa morte, uma morte cruel. Só vemos aqueles 10% ou 20% que chegam para nós. O resto está sofrendo e não tem voz para gritar.
Meu sonho é que meus colegas [veterinários] estivessem mais empenhados nessa ação [de ajudar], mas muitos me criticam, dizendo que não vão ganhar dinheiro com isso. Enxergo de outra forma, vejo como uma semente. A rede social me ajuda. Trabalho bastante e consigo ganhar o meu pão, por meio desse trabalho honesto. Faço isso há 14 anos, desde que estou em Barretos. Fizemos uma conta por cima e já devemos ter ajudado uns 10 mil animais, porque praticamente todo dia chega um bicho resgatado. Tem fases no ano, como a seca, que é perigosíssima, em que chegam mais animais, por causa das queimadas.
Infelizmente, os veterinários não se interessam, acham que fazer trabalho voluntário não é legal. Eles não veem lá na frente. Acho que primeiro você tem que gostar do bicho, para depois fazer alguma coisa por ele.
*Sob supervisão de Vivian Masutti