“Nunca vimos tantas mulheres jovens publicando livros”, diz Aline Bei sobre o mercado editorial brasileiro
Autora do fenômeno “O Peso do Pássaro Morto” aborda o aumento da presença de mulheres no setor e é otimista sobre o futuro da produção literária feminina
Entrevista|Cecília Marin, do R7*

Com o cabelo preso em um coque, fone branco e um sorriso meigo, Aline Bei começa a entrevista animada. Ela conta sobre o aumento no número de mulheres publicando livros, um fenômeno que não se restringe somente ao Brasil, mas a diversos países na América Latina.
Aline Bei também fala sobre seu processo de escrita, que se dá pelas manhãs, com música clássica tocando de fundo. “São minhas horas mais descansadas, mais despertas e, por outro lado, também são horas que ainda estou com a mesma energia da cama, do sonho, que é um estado de abertura que me interessa”, revela.
Formada em Letras pela PUC e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena, Aline sempre amou ler e, na faculdade, entregou-se para a escrita. Com dois livros publicados, “O Peso do Pássaro Morto” (2017), vencedor do prêmio São Paulo de Literatura na categoria para autores de romances com menos de 40 anos, e “A pequena coreografia do adeus” (2021), finalista do prêmio Jabuti em 2022, Bei viveu, na pele, o processo para ter suas obras publicadas, o que, na maioria das vezes, é mais nebuloso para mulheres.
Uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, sob a coordenação de Regina Dalcastagnè, pesquisadora e escritora, mostrou que, entre 258 romances publicados de 1990 a 2004, 72,7% dos autores eram homens.
De 2019 para 2021, segundo a plataforma de autopublicação Clube de Autores, houve um salto de 10% no número de escritoras, chegando a 44% do total de autores. “Eu sinto que é um momento diferente do que a gente vivia há 10 anos, por exemplo. Algumas mudanças essenciais muito importantes estão acontecendo”, diz Aline Bei, confiante.
Com tom de voz calmo, doce e uma facilidade impressionante de expressar seus pensamentos não só por meio da escrita, a paulistana de 36 anos conversou com o R7 por chamada de vídeo.
Aline Bei ainda comenta sobre como a atuação influencia seu modo de escrever, os caminhos percorridos por mulheres que almejam ter seus livros publicados e a importância de oficinas em grupo. “A escrita não precisa ser tão sozinha quanto a gente imagina que ela é”, comenta.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
R7 - Quando você começou a escrever?
Aline Bei - A minha vontade de escrever começou na minha fase de jovem mulher, aos 21 anos, na Faculdade de Letras.
R7 - Quando criança, você lia muito?
Aline Bei - Sim, eu sempre amei ler! Eu adorava frequentar a biblioteca da minha escola também, porque eu não tinha livros em casa, então esse era o espaço onde eu podia escolher os livros que eu queria ler. Eu lia muito no intervalo e também alugava muitos livros e levava para casa para ler ou pedia para minha mãe ler para mim. Demorou um bom tempo até que eu tivesse meus próprios livros. Esse lugar na biblioteca, esse espaço coletivo, foi fundamental para minha formação de escritora e de leitora também.
R7 - Antes de ser escritora, você é atriz. Como a sua escrita é influenciada pela atuação?
Aline Bei - Para mim, a escrita é muito influenciada pela minha experiência teatral. Sinto que a minha palavra é muito corporificada na folha. A minha própria folha tem uma ideia de palco, mais do que de folha de livro. Cada folha que a gente vira dentro de um livro, tem uma função narrativa e não é neutra. Trabalho também com a expressividade desta folha, o modo como esse virar de página pode trazer um ritmo para leitura, um suspense ou envolvimento que precisa ser calculado de alguma forma pela escritora. A minha palavra também deseja uma plasticidade que acho que vem do meu amor pela poesia concreta, mas também vem desse corpo que já esteve no palco. Se um ator, de repente, move um músculo de forma consciente para aquele personagem, isso vai ser lido pelo público também. Então penso: “como a minha palavra pode ter também essa expressividade?”. E aí, de repente, isolando, trazendo uma quebra de frase ou aumentando o espaçamento entre elas, diminuindo letras, usando alguns recursos formais, eu consigo, talvez, tentar fazer com que o meu leitor experimente essa expressividade que tento alcançar na escrita.

R7 - Há relatos de escritoras que tiveram que usar um pseudônimo masculino para publicar suas obras, como as irmãs Brontë, uma vez que a escrita feminina era vista como secundária. Você acha que, hoje, as pessoas enxergam a escrita feminina tão importante quanto a masculina?
Aline Bei - Acho que a gente está num processo muito bonito aqui no Brasil e na América Latina de reconhecimento das grandes autoras que temos e sempre tivemos, e também uma maior diversidade na publicação dessas vozes que chegam para o grande público. Então a gente tem autoras publicando por grandes editoras, publicando fora do Brasil. Além de serem escritoras, tem também muitas editoras, revisoras de texto, preparadoras… e toda essa cadeia é muito importante ser gerida por mulheres. Porque esse olhar vai ser mais atento para a narrativa que é escrita por uma mulher. Acho que essa diversidade, essa complexidade de voz, tem que, claro, aumentar cada vez mais. A gente nunca viu tanta mulher jovem publicando antes no nosso país.
R7 - Como você enxerga, hoje, o mercado editorial para mulheres?
Aline Bei - Tem uma abertura maior para narrativa feita por mulheres. Tem mais mulheres editoras, mais mulheres revisoras, mais mulheres à frente de projetos literários, com um olhar e uma curadoria muito cuidadosa. Claro que tudo isso precisa se potencializar ainda mais, mas sinto que a gente está num caminho interessante, que essa equação precisa ficar ainda mais equilibrada, mas que a gente está vivendo um momento decisivo para essa abertura. E acho que o público leitor, o público das leitoras, tem se tornado mais consciente das suas leituras. A gente não tá mais lendo só o que chega para a gente, né? Estamos, também, questionando se isso que chega carrega a diversidade da produção e a complexidade da produção da escrita que está sendo feita hoje.
R7 - O prêmio Jabuti é uma das mais prestigiadas premiações literárias do Brasil. Dos últimos 23 vencedores na categoria “Romance/Romance Literário”, apenas três são mulheres. Já em 2022, 13 das 20 categorias foram vencidas por mulheres. Você acha que as mulheres estão ganhando mais destaque na academia?
Aline Bei - Tenho impressão que a academia é sempre a última a acordar, a ser despertada para o que está acontecendo. Então a gente tem uma espécie de efeito cascata. A gente começa, talvez, com um público leitor, mais atento à diversidade, os livreiros, as feiras literárias e a mídia e, aos poucos, isso também vai se infiltrando na curadoria dos prêmios na Academia de Letras. Acho que a questão é ainda mais estrutural. Tudo isso vai mudando de uma forma lenta.
A gente precisa sempre aprofundar e transformar essa estrutura de uma forma ativa, contestadora e muito atenta
R7 - Você acredita que o caminho a ser percorrido por uma mulher que busca publicar seus livros é mais difícil do que para os homens?
Aline Bei - Aqui eu penso no ensaio da Betina González, a escritora argentina que publicou recentemente, aqui no Brasil, um livro chamado “A obrigação de ser genial”. É um livro maravilhoso, recomendo muito para quem escreve e para quem gosta de ler. Ela fala dessa questão da mulher ainda estar num lugar em que, quando ela é publicada, quando ela chega ao público, ela precisa ser genial. A gente não se permite produzir no médio. Os livros medíocres, por exemplo, no sentido mesmo do “médio”, que saem, às vezes, por tantos escritores de uma forma tão natural. Mas, para as mulheres, é necessário que se seja genial para justificar essa atividade da escrita, que é uma atividade ainda muito pouco compreendida socialmente. E ela [Betina González] diz de uma forma brilhante no ensaio que, na verdade, isso é mais uma forma e talvez a forma mais agressiva de você censurar e isolar as mulheres. Porque aí, então, a “mulher genial” está sozinha e sem nenhuma companhia, como ela deveria estar, sendo a única genial. Então ela é uma exceção que confirma a regra. É superlegal acessar isso para a gente pensar todas essas complexidades. Acho que ela tem muita razão.

R7 - Nos seus livros, você coloca em evidência as histórias de mulheres. Você escreve para mulheres?
Aline Bei - Escrevo para as pessoas. A literatura não é só um espelhamento, ela também abre portas e janelas e, a partir de um recorte de gênero, a gente pode compreender tanto sobre nós. Escrevo para as pessoas que gostariam de ler uma história que vá de acordo com as coisas que escrevo e pesquiso.
Não acho que só porque uma mulher é protagonista de um livro que a gente escreve para mulheres
R7 - Você acredita que mulheres buscam ler livros escritos por outras mulheres?
Aline Bei - Acho que a gente está com um interesse maior em conhecer a literatura das mulheres, e muitas delas têm protagonistas mulheres no centro. Então sinto que sim, sinto que esse interesse tem aumentado.
R7 - Virginia Woolf fala em seu ensaio “Um teto todo seu” sobre a necessidade de ter “um teto todo seu” e dinheiro para conseguir escrever. Hoje, para você, essas ainda são as mesmas condições?
Aline Bei - Acho que a condição do silêncio e do isolamento é fundamental para a escrita, mas não só para a escrita, mas para qualquer trabalho intelectual sensível artístico, né? Porque o artista fica entre esses espaços que são coletivos e privados para que ele, inclusive, elabore seus incômodos. Então acho que isso se mantém atual. Agora, como cada artista vai organizar o caos de cada dia e nas condições e peculiaridades de cada vida, esse “espaço todo seu” é muito pessoal, né? Acho que têm artistas que conseguem trabalhar bem no meio de um caos doméstico, conseguem encontrar o seu tempo, como uma Carolina Maria de Jesus que escrevia entre os filhos e entre todos os afazeres que ela tinha, e até mesmo a própria Clarice [Lispector], que às vezes acordava muito mais cedo para ter um momento de solidão, de pensamento. Por isso, acho que esse ensaio continua, nesse quesito, muito atual.
R7 - Qual a importância das oficinas de escrita para mulheres que buscam ter seus livros publicados?
Aline Bei - É fundamental! A oficina de escrita é uma coisa tão importante. Tem um momento nosso em que a gente precisa dessa solidão da escrita para encontrar o nosso livro, a nossa voz, a nossa linguagem, a nossa pesquisa. Mas também há um momento de abertura para a roda, para o coletivo. Acho que o teatro traz um equilíbrio bonito disso, porque o ator é alguém que estuda muito sozinho, para decorar as suas cenas, pesquisas, seu personagem, mas o teatro só acontece em grupo, e nos ensaios o texto cresce muito, as suas descobertas se consolidam. Então quando a gente está em roda, acontece a mesma coisa, a gente tem uma primeira camada de leitores e leitoras ali naquele grupo de estudos que vai nos trazer muito a respeito do que a gente está escrevendo, porque escrever também tem sempre um ponto cego. A gente, às vezes, acha que o nosso texto não está muito bom ou está muito ruim e, na verdade, a gente precisa aprender a se ler de uma forma mais distanciada. Acho que esse grupo vai nos dando essas ferramentas para a gente reconhecer em que ponto da técnica e da escrita a gente realmente está. Eu recomendo muito! Acho que isso [a oficina] só pode fazer bem para a nossa escrita e para a nossa vida.
*Estagiária sob supervisão de Maíra Pracidelli