África do Sul se despede de Mandela convivendo com racismo, desigualdade e violência
Metade da população do país ainda vive abaixo da linha da pobreza
Internacional|Do R7
Mais do que o hino nacional com seus cinco idiomas ou a bandeira com suas seis cores, Nelson Mandela simboliza para os sul-africanos a unidade e o orgulho de um país que sonhava com uma sociedade multirracial modelo. Mas o país, que agora se despede de seu maior líder, está longe de ser um modelo e continua atingido por severas dificuldades econômicas e sociais.
Como sinal deste desencanto, o jornal local Soweta considerava no início de junho — quando o líder ainda estava internado — que os sul-africanos fariam bem em rezar não apenas "pela recuperação de Mandela", mas também pelo destino do país inteiro.
"Enquanto rezamos pela recuperação de Mandela, também devemos rezar por nós mesmos, uma nação que, moralmente, perdeu sua bússola", escreveu o jornal em seu editorial, ressaltando que o herói da luta contra o apartheid não sacrificou 27 anos de sua vida na prisão para que a "África do Sul se caracterizasse pela corrupção, pelo racismo, pela criminalidade e pela violência".
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A África do Sul, governada há quase 20 anos pelo partido de Mandela, o Congresso Nacional Africano (ANC), suprimiu as barreiras raciais e conseguiu fazer emergir uma classe média urbana multirracial, capaz de pagar escolas de qualidade para seus filhos.
Mas, desde 2009, o crescimento econômico se estancou, as tensões sociais se acumulam, muitas vezes acompanhadas por episódios de violência que atingem os sindicatos tradicionais, entre outros do setor minerador, palco no fim de 2012 de uma onda de greves selvagens que deixou 60 mortos e acelerou a depreciação da moeda.
"Parte de nosso sentimento de pânico se deve a esta questão: o que morre com Mandela? O que [Mandela] simboliza está morto há tempos...”, filosofava outro editorial local no Times, também no início de junho.
A África do Sul é o país mais rico do continente africano, mas conta com mais da metade da população vivendo abaixo da linha da pobreza (52%). Além disso, 62% das famílias negras e 33% das mestiças são pobres.
O desemprego é crônico, entre outros, nas Províncias rurais como Cabo Oriental, a região natal de Nelson Mandela, onde a maioria dos habitantes depende todos os meses de algumas centenas de rands procedentes de ajudas para os idosos ou para as crianças.
Muitos problemas são herança da política de exclusão econômica praticada pela minoria branca sob a tutela britânica, e sob o apartheid, a partir de 1948.
"Mas não todos", ressalta o jornal econômico Business Day.
O ensino público, considerado por Mandela a chave do desenvolvimento de seu povo, é um fracasso manifesto da gestão da ANC, apesar de um grande orçamento estatal.
"Mandela choraria se soubesse o que ocorre nas escolas", afirmou em 2012 o arcebispo Desmond Tutu, outro herói da luta contra o apartheid, que não pensa em voltar a votar no ANC.
Assim como Tutu, cada vez mais observadores, incluindo antigos companheiros de luta, já não hesitam em criticar o partido de Mandela para denunciar seu estado de abandono e inclusive colocar em xeque se seus sucessores são verdadeiros democratas.
"Se tivéssemos tido a felicidade de ter Mandela por dois mandatos, teríamos tido mais sorte porque é um democrata comprometido", afirmou no início de junho Mamphela Ramphele, uma figura da luta antiapartheid que foi diretora do Banco Mundial e que lançou seu próprio partido de oposição.
"É tempo de renomear nosso país", propôs recentemente um publicitário de sucesso, Muzi Kuzwayo, que sugeriu "um nome que unirá a maioria de nós: a Mandelia".
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