Barcelona enfrenta crise imobiliária com despejos e medidas urgentes
Desde 2015, quase 10% dos imóveis disponíveis foram adquiridos por investidores ou usados para acomodar turistas; escassez ajudou a subir os preços e muitas opções se tornaram inacessíveis
Internacional|Do R7
Barcelona, Espanha – Em 33 anos, Marga Aguilar nunca atrasou ou deixou de pagar o aluguel do apartamento onde mora, em um prédio de estilo modernista no centro de Barcelona. O dono do imóvel sempre a tratou, e aos outros inquilinos, como se fosse parte da família, e mantinha os valores em um nível razoável.
Não faz muito tempo, porém, ele morreu, e Aguilar levou um choque brutal: um fundo de investimentos neerlandês se interessou em comprar o edifício, chamado Casa de la Papallona porque é coroado pela escultura em mosaico de uma borboleta, com a intenção de transformar as unidades em opções lucrativas para curta temporada. Os inquilinos receberam uma carta de despejo, pedindo que saíssem em um mês. “Minhas pernas viraram geleia, quase caí. Não sabemos para onde ir, e não temos condição de morar em nenhum outro lugar”, disse ela que, aos 62 anos, mora com o pai de 92 desde a pandemia.
A Espanha enfrenta uma crise de moradia já considerada uma das mais graves da Europa. Desde 2015, quase 10% dos imóveis disponíveis foram adquiridos por investidores ou usados para acomodar turistas. Tamanha escassez ajudou a subir os preços com uma rapidez muito maior que o aumento dos salários, fazendo com que muitas opções, de repente, se tornassem inacessíveis para a maioria.
O problema é complexo, e ainda mais grave em Barcelona, que se tornou símbolo do dilema espanhol – e a prova de fogo para os desafios de tentar solucioná-lo. Com a alta temporada turística do verão se aproximando rapidamente, encontrar uma solução se tornou mais urgente do que nunca.
Apesar da intenção de manter a moradia acessível ao pessoal local, os investidores conseguem sempre achar um jeito de driblar as restrições – e, enquanto as autoridades penam para avaliar o tamanho do problema, os especialistas avisam que levará um bom tempo para reverter um problema que vem se arrastando há anos. “Morar deveria ser um direito, e não um negócio lucrativo. É preciso encontrar uma solução com urgência”, declarou Salvador Illa, presidente da Catalunha, região espanhola onde Barcelona está situada.
As dificuldades que a cidade enfrenta são muito semelhantes às de outros centros urbanos europeus, onde os imóveis residenciais estão se tornando um bem cada vez mais valioso para os investidores. Com o crescimento mundial do turismo e o trabalho remoto permitindo flexibilidade e mobilidade, os proprietários estão preferindo a rapidez de giro das temporadas aos aluguéis mais longos e protegidos. As cidades precisam de mais moradia, mas os altos custos e as normas complexas atrasam e dificultam a construção. O número de unidades usadas para fins sociais, abrigando as famílias mais carentes, já foi motivo de orgulho, mas acabou reduzido por diversos governos que as venderam para levantar dinheiro.
A questão da disponibilidade se tornou um dos maiores impulsionadores da desigualdade no continente: em dez anos, os aluguéis na União Europeia (EU) aumentaram 20%, e os preços dos imóveis, 50%, segundo a Eurostat. Em 2023,10% dos europeus gastavam 40% ou mais da renda com moradia. Na esperança de reverter essa tendência, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, braço executivo do bloco, há pouco tempo nomeou o primeiro comissário para tratar da questão.
Em Barcelona, a situação é considerada tão grave que o prefeito, Jaume Collboni, se uniu aos colegas de outras 14 cidades, incluindo Amsterdã, Paris, Roma e Budapeste, para pedir a Bruxelas que trate a crise com a mesma urgência que a defesa da Ucrânia. “A Europa está enfrentando uma ameaça externa às suas fronteiras, com a agressão russa, mas também sofre uma pressão interna, com o aumento da desigualdade causada pela falta de moradia”, afirmou ele em entrevista concedida em seu gabinete com vista para a Plaça Sant Jaume, no centro histórico.
Outras cidades europeias foram atingidas pelo mesmo problema, mas Barcelona vem sendo seriamente castigada. O clima agradável, a catedral da Sagrada Família e o calçadão La Rambla lhe rendem cerca de 15 milhões de visitantes por ano. Milhares de estrangeiros se mudaram para lá, aquecendo a economia, mas agravando a crise.
O direito à moradia é protegido pela Constituição espanhola, mas os preços dos aluguéis subiram 57% no país desde 2015, e o dos imóveis, 47%, enquanto a renda subiu apenas 33%, segundo a PwC. Só em Barcelona, o valor da locação subiu 68% em uma década.
Collboni, socialista, foi eleito em 2023, e não perdeu tempo para instaurar soluções – a começar com a imposição de limites dos valores de aluguel em março de 2024, o que fez com que baixassem, em média, mais de 6%. Depois de um ano turbulento, no qual os espanhóis saíram às ruas para protestar contra a situação, Barcelona se tornará a primeira cidade europeia a encerrar as licenças de uso de imóveis para o Airbnb, exigindo que os proprietários os disponibilizem para contratos de longa duração, com limite de valores cobrados, ou os coloquem à venda até 2028. “Com uma decisão, foi pá pum: dez mil apartamentos de volta ao mercado. São quase 25 mil pessoas que vão poder voltar a morar em Barcelona”, comemorou Collboni.
Além disso, o governo da Catalunha definiu planos de parceria com empreiteiras para construir 50 mil casas acessíveis até 2030, e defende a redução do prazo de aprovação do alvará de construção pela metade. “Quando o mercado está corrompido, é preciso intervir”, comentou Illa.
Entretanto, os ativistas afirmam que tais medidas não ajudam a aliviar a míngua atual, e estão pressionando o governo a tentar convencer os proprietários e os bancos que detêm hipotecas com prestações em atraso a liberar quatro milhões de imóveis vazios na Espanha – sendo 75 mil só em Barcelona – para serem usados para moradia. “Todo dia tem gente sendo despejada, e essa seria uma solução imediata. Para que construir se já temos imóveis prontos?”, questionou Max Carbonell, porta-voz da União Socialista pela Moradia na Catalunha, que ajuda os inquilinos a driblar o despejo enfrentando as empresas que estão comprando esses imóveis.
As autoridades municipais buscam outras saídas para garantir a situação dos locatários, incluindo até a compra de imóveis dos investidores. No ano passado, por exemplo, a Prefeitura gastou nove milhões de euros (cerca de US$ 9,7 milhões) para recuperar a Casa Orsola, residência histórica adquirida pela espanhola Lioness Inversiones, em 2021, por seis milhões de euros, mas tanto os ativistas quanto o público criticaram a decisão, alegando que os responsáveis pela crise estão lucrando com o dinheiro do contribuinte.
Por outro lado, os donos de imóveis dizem que as leis se tornaram tão protetoras para os inquilinos que muitos preferem deixar a propriedade vazia. “Há falta de moradia porque as construtoras, os proprietários e locadores estão sendo criminalizados”, desabafou Jesús Encinar, fundador da Idealista, maior site de buscas de imóveis da Espanha.
A tensão é percebida em uma lei nacional a que Collboni se refere como “buraco negro”, que deixa os moradores de prédios como a Casa de la Papallona totalmente vulneráveis, pois permite que investidores os comprem para lucrar com os aluguéis de curta temporada, ou seja, os que têm menos de um ano de duração. O primeiro-ministro, Pedro Sánchez, até apresentou um projeto de lei para anulá-la, mas enfrenta a oposição dos legisladores, preocupados com os direitos de propriedade.
O New Amsterdam Developers, fundo que adquiriu a Casa de la Papallona, também conhecida como Casa Fajol, também comprou centenas de outros apartamentos na cidade para o mesmo fim, de olho nos executivos estrangeiros com poder aquisitivo superior ao da média da população local. A empresa não retornou nossos pedidos de esclarecimento.
Em um bairro próximo, a Inmobiliaria Gallardo – da mesma família a que pertence o Almirall, um dos maiores laboratórios farmacêuticos do país – se aproveitou de uma brecha da lei de moradia da Catalunha, aberta brevemente em 2023, para obter permissão de usar todos os 120 apartamentos residenciais de um prédio de 11 andares como locação turística. “Um dia, percebemos que os vizinhos estavam de mudança, aí logo em seguida outros e depois, mais outros – tipo, em uma semana dez pessoas saíram”, confirmou Maite Martín, de 63 anos, funcionária de uma universidade que mora no prédio há 25 anos.
25% das unidades agora acomodam turistas. A empresa não retornou nossos pedidos de esclarecimento. “Éramos uma comunidade de famílias e idosos, gente que morava aqui havia décadas. Esse tecido social está sendo destruído”, lamentou Martín sentada à sua mesa com dois vizinhos, que reclamam por estarem cercados de estranhos.
Recentemente, ela teve de limpar os respingos de vômito das roupas estendidas na sacada, resultado da festa organizada pelos turistas que alugaram o apartamento de cima. Com respaldo das entidades pró-moradia, muitos inquilinos de seu prédio – e da Casa de la Papallona – decidiram protestar não saindo do imóvel.
De fato, ocupar imóveis se tornou um movimento de base na Espanha, com o objetivo de protestar contra a crise da moradia, principalmente em Barcelona, cuja ex-prefeita, Ada Colau, foi eleita graças a uma plataforma de ativismo. Entretanto, já há retaliações, e o governo catalão pretende conter o movimento.
Em meio ao caos, as autoridades seguem firmes na intenção de construir mais casas. Não faz muito tempo, em uma encosta acima do centro de Barcelona, havia uma equipe de operários despejando cimento e instalando luminárias, acabamentos de cozinha, chuveiros e corrimãos no esqueleto de um prédio de cinco andares construído em um terreno do governo catalão.
A Arcadia PLA, que é uma construtora privada, ganhou a licitação pública no valor de 1,8 milhão para erguer 15 apartamentos com eficiência energética e com limite máximo de estipulação de aluguel para abrigar até 60 pessoas. “Há mais 30 iniciativas semelhantes no gatilho, sendo que muitas são para prédios grandes, de até 60 apartamentos, parte do plano mais amplo de expansão do leque social de moradias da região. Entretanto, devido à proporção da crise, precisamos ir além. É preciso achar um meio de agilizar a coisa”, disse Carles Mas, arquiteto do governo catalão responsável pela supervisão do projeto.
(José Bautista contribuiu para a reportagem)
c. 2025 The New York Times Company
Fique por dentro das principais notícias do dia no Brasil e no mundo. Siga o canal do R7, o portal de notícias da Record, no WhatsApp