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Ceviche, quinoa, sushi: como a comida peruana ganhou visibilidade no mundo inteiro

O reconhecimento internacional que impulsionou esse ‘boom gastronômico’ parece tardio para muitos peruanos, para quem a culinária nacional é motivo de orgulho e união

Internacional|Julia Moskin, do The New York Times

O chef Gaston Acurio se tornou um herói nacional no Peru por promover a culinária do país em todo o mundo Janice Chung/The New York Times

Nos anos 1980, durante a juventude do restaurador peruano Humberto Leon, em Los Angeles, seus colegas de escola mal tinham ouvido falar do Peru, muito menos de sua culinária. “As pessoas achavam que era o mesmo lugar que Porto Rico. Se você encontrasse outro peruano, dava um abraço e já começava a falar sobre comida”, contou ele. Hoje, essa conversa se tornou global. A culinária peruana se tornou popular e prestigiada no mundo inteiro.

No ano passado, o Central, em Lima, capital do Peru, alcançou o primeiro lugar na lista influente dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo, tornando-se também o primeiro estabelecimento sul-americano a alcançar o mesmo nível de destinos como o Eleven Madison Park, o Noma e o El Bulli. Meses depois, a ONU também reconheceu a culinária do país, incluindo o ceviche peruano nas Listas do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, ao lado da pizza napolitana e do kimchi coreano. Restaurantes que destacam clássicos peruanos, sushi ao estilo peruano e coquetéis à base de pisco (licor claro feito de uvas da região vinícola do Peru) proliferaram em Miami, em Nova York, na Califórnia e na Espanha.

O reconhecimento internacional que impulsionou esse “boom gastronômico” parece tardio para muitos peruanos, para quem a culinária nacional é motivo de orgulho e união. A biodiversidade do país – berço do milho, da batata, do tomate e da pimenta modernos – há muito tempo é considerada extraordinária, assim como sua diversidade cultural e culinária.

Nos 200 anos desde que o Peru conquistou a independência da Espanha e passou a receber trabalhadores imigrantes, seus ingredientes indígenas – frutas tropicais, grãos da montanha, como a quinoa, e frutos do mar dos 2.400 quilômetros da costa do Pacífico – se fundiram com o molho de soja, a batata frita, o sashimi e o pesto em uma gastronomia que não se assemelha a nenhuma outra.


O principal responsável por toda essa nova atenção, o chef peruano Gastón Acurio, de 57 anos, esteve no mês passado na Fundação James Beard, em Nova York, para uma demonstração rápida do ceviche, usando alabote do Pacífico, ostras e ouriço-do-mar. Enquanto misturava um leche de tigre – marinada cítrica e picante que dá sabor ao ceviche e que serve como cura para a ressaca e como afrodisíaco –, Acurio relembrava seus primeiros dias como chef, apresentando o ceviche a clientes estrangeiros fascinados. “Eles me perguntavam: ‘Ainda existe tigre no Peru?’”.

Atualmente, Acurio tem 70 restaurantes, incluindo nove filiais da cevicheria La Mar espalhadas de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, ao American Dream Mall, em Nova Jersey, e a Bellevue, em Washington. Graças a ele e aos chefs peruanos que seguiram seu caminho – Virgilio Martínez, Pía León, Mitsuhara Tsumura, Jorge Muñoz e muitos outros –, o país se transformou em um destino de classe mundial para os entusiastas da alta gastronomia, conquistando respeito no topo da cadeia culinária global, posição antes reservada às cozinhas europeias.


Pratos da culinária peruana servidos em um popular restaurante em Nova York Janice Chung/The New York Times

A aparição de Acurio na Fundação Beard atraiu dezenas de expatriados fascinados. Em uma pesquisa de 2014 com eleitores potenciais para as eleições presidenciais de 2016 no Peru, 23% disseram que votariam em Acurio se ele se candidatasse. (Não foi o caso.)

“Quero fazer pela arte e pela música o que ele fez pela culinária peruana”, disse Karla Prieto, da cidade andina de Huancayo, que se mudou para Nova York para cursar uma pós-graduação em gestão de artes. (O Q-pop peruano, canções ao estilo K-pop que incorporam os instrumentos e o idioma quéchuas, tem mais chances de se popularizar, segundo ela.)


“Fora dos Andes, ninguém tinha ouvido falar da quinoa há 20 anos, mesmo no Peru. Agora está em todos os lugares”, observou Henry Urrunaga, criador de conteúdo de Lima que vive no Brooklyn, enquanto apreciava uma sobremesa de musse congelada de chocolate e lúcuma, coberta com quinoa tricolor crocante e servida em uma casca de cacau peruano.

Isso inclui os Estados Unidos, graças a chefs jovens peruano-americanos como Erik Ramirez, do Llama Inn e Llama San, em Nova York; JuanMa Calderón, do Celeste e La Royal, em Boston; e os irmãos Valerie e Nando Chang, do Maty’s e Itamae AO, em Miami. Eles superaram o objetivo convencional de apresentar a comida peruana autêntica – considerando que ainda é difícil conseguir ingredientes frescos como a pimenta dedo-de-moça, a lúcuma e o huacatay, conhecido no Brasil como menta peruana – e estão criando um novo roteiro.

“Ainda pode ser autêntico para você”, comentou Valerie Chang, que cresceu em Chiclayo, no Norte do Peru, mudou-se para a Flórida, em 2001, aos oito anos, e foi treinada no Pakta, restaurante peruano de alto padrão em Barcelona, aberto pelos renomados irmãos chefs espanhóis Ferran e Albert Adrià.

No ano passado, ela e seu irmão apareceram juntos na lista dos Melhores Novos Chefs da revista “Food & Wine”, graças ao seu bar de omakase japonês-peruano ousado, Itamae AO, que fica dentro do Maty’s, restaurante moderno de inspiração peruana de sua avó. (Este ano, ela ganhou o prêmio James Beard de melhor chef no Sul dos Estados Unidos.) O lomo saltado, prato clássico da cozinha sino-peruana, chamado chifa, é um refogado de carne em tiras marinada em molho de soja, tomate e cebola, frequentemente servido com batata frita; o dela é feito com ervas frescas, batata peruana assada e pedaços de rabo de boi cozido lentamente.

Ramirez abriu o alegre e inovador Llama Inn em Williamsburg, no Brooklyn, em 2005; é tão popular que agora tem filiais em Madri e Londres. Em seguida, inaugurou o Llama San no West Village, em Manhattan, com uma atmosfera serena e um menu cuidadoso que recebeu três estrelas do “The New York Times” quando inaugurado, em 2019. Ele foi recrutado pela Tishman Speyer, gigante imobiliária de Nova York, para abrir seu próximo restaurante, Papa San, em 2025, no complexo Hudson Yards.

Ramirez foi criado por pais imigrantes peruanos perto da grande comunidade peruana de Paterson, em Nova Jersey. Mas afirmou que, durante os três anos em que trabalhou como sous-chef no Eleven Madison Park, nunca imaginou que a comida com a qual cresceu se tornaria a base de seu sucesso profissional. Costumava cozinhar comida peruana quando era sua vez de preparar a refeição da equipe: “Eu não estava pensando em colocar no menu. Só não queria estragar as receitas da minha mãe.”

Humberto Leon seguiu um caminho indireto até a cozinha, que começou em 1975, quando nasceu, em Los Angeles, durante uma escala entre Hong Kong (local de origem de sua mãe) e o Peru (o de seu pai). Isso permitiu que a família imigrasse para os Estados Unidos, onde se tornou um designer de destaque na Gap e na Burberry e cofundou a inovadora marca de moda Opening Ceremony.

Quando a Opening Ceremony fechou todas as suas lojas durante a pandemia, Leon teve tempo para realizar um sonho familiar antigo: dar à mãe a oportunidade de recriar o popular restaurante chifa que ela administrava em Lima. No Chifa, na região de Eagle Rock, em Los Angeles, há uma churrasqueira a lenha para assar carne de porco ao estilo cantonês (char siu) e frango à brasa peruano, o que Leon chama de “prato de entrada” para a gastronomia peruana. E, toda semana, Wendy Leon ainda prepara para o restaurante, à mão, dezenas de zongzi, pacotes de arroz glutinoso envoltos em folhas de bambu.

Ceviche de ostra e ouriço-do-mar servido pelo chef Gaston Acurio; os ceviches modernos são populares em todo o mundo Janice Chung/The New York Times

A culinária nacional do Peru foi impulsionada por histórias como essas, entrelaçando influências da agricultura sofisticada da antiga cultura moche, das cozinhas imperiais dos incas e da invasão e dos séculos de ocupação da Espanha, que também trouxe pessoas escravizadas da África para construir fortunas com o açúcar, o arroz e a borracha.

Nos séculos 19 e 20, a recém-independente república do Peru trabalhou para atrair centenas de milhares de trabalhadores imigrantes necessários para construir sua infraestrutura. Graças a essa imigração, mais de 70% dos 34 milhões de habitantes do país têm raízes no Japão, na China, na África, na Europa ou no Oriente Médio, de acordo com as estatísticas do governo peruano de 2024.

O Peru foi o primeiro país das Américas a receber trabalhadores imigrantes japoneses, e a assimilação culinária de técnicas e ingredientes japoneses está consagrada na comida chamada nikkei. A crescente popularidade mundial do sushi deu um impulso adicional à gastronomia peruana no mundo inteiro, pavimentando o caminho para outros pratos de peixe cru, como o ceviche e o crudo.

Muitos apreciadores da culinária sofisticada de alto nível experimentaram pela primeira vez pratos peruanos graças ao chef Nobu Matsuhisa, que fez uma parada de três anos em Lima, a caminho dos Estados Unidos, partindo do Japão. Depois, construiu seu império global de restaurantes Nobu, com pratos de influência latina, como o peixe hamachi com pimenta jalapeño, e agora até quem não é peruano consegue discutir com conhecimento a diferença entre o ceviche (o clássico em pedaços, acompanhado de batata-doce e milho crocante) e o tiradito (o estilo nipo-peruano mais austero, cortado como sashimi e temperado na hora com limão e sal).

Mas foi preciso mais do que grandes chefs para dar visibilidade à culinária peruana. No começo dos anos 2000, enquanto o país tentava se recuperar do desastroso golpe de 1992 e da década de instabilidade que se seguiu, o novo governo se agarrou à gastronomia como um valioso elemento da cultura peruana, no país e no exterior. “Reestruturar a imagem do Peru era uma prioridade”, disse Raúl Matta, especialista em diplomacia culinária peruana e antropologia, radicado em Paris.

Ele comentou que os chefs peruanos bem-sucedidos e conectados, como Acurio, cujo pai foi senador, observavam a revolução culinária que se efetuava ao redor do mundo. Acurio havia aberto em 1994 o Astrid e Gastón, seu restaurante emblemático em Lima, como um estabelecimento majoritariamente francês, depois de se formar na escola de gastronomia Le Cordon Bleu, em Paris. Mas a culinária francesa estava perdendo seu controle rígido sobre a alta gastronomia, o respeito pelas técnicas culinárias asiáticas estava crescendo e o modernismo espanhol estava em ascensão.

O movimento New Nordic, com ênfase em ingredientes hiperlocais, por mais subutilizados que fossem, incentivou os chefs peruanos a explorar os inúmeros vegetais, frutas e ervas indígenas que se tornaram uma característica marcante. Logo se juntaram a chefs globais como David Chang e René Redzepi, participando de conferências, organizando eventos pop-up com chefs convidados e colaborações, e documentando tudo nas redes sociais. Funcionou.

O departamento de turismo do governo peruano e a organização comercial Promperú agora destinam fundos para promover as tradições e os produtos agrícolas do país. Lima tem três restaurantes na lista dos 50 Melhores deste ano, o mesmo número de Tóquio. (Nova York tem um.) A Cidade do México, São Paulo e outras cidades latino-americanas também subiram no ranking, tornando toda a região cada vez mais atraente e acessível para os “gastroturistas”.

A chef Chang disse que entendeu a singularidade da mistura cultural do Peru só depois de se mudar para os Estados Unidos, e que levou anos em cozinhas profissionais para compreender a mistura culinária do país. “No Peru, ninguém pergunta sobre sua etnia, ou se a comida é peruana, chinesa ou japonesa. Só sabemos que temos a sorte de contar essa grande história culinária.”

c. 2024 The New York Times Company

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