Kiev, Ucrânia – Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, e parte de seus alunos fugiu para o exterior, a professora de literatura Iryna Kovaliova decidiu que era hora de se aposentar. “Cheguei a escrever a carta de demissão e tirei minhas coisas da escola, mas os alunos do sexto ano, o 6H, imploraram que eu ficasse, pelo menos até a guerra acabar”, contou em entrevista recente.Dois anos depois, ela continua lecionando no mesmo colégio em Kiev, aos 63, três além da idade de aposentadoria permitida aos docentes, arrasada com o fato de ver os jovens tendo de lidar com o trauma dos ataques aéreos, dos bombardeios e da perda de entes queridos. Ela se preocupa não só com os alunos que foram desalojados, forçados a estudar pela internet a distância, mas também com os que já ensinou e se alistaram no Exército, combatendo na linha de frente – tanto que começa o dia espiando os perfis nas redes sociais de dois deles, aliviada por ver que estiveram on-line, sabendo que pelo menos estão vivos.Maria Lysenko, a diretora do colégio, confessou a preocupação com toda a geração atual, e também com seus docentes. “As crianças são como um diapasão, reflexo do que está acontecendo na nossa vida. Sempre há um motivo para uma delas estar deitada na carteira – talvez não tenha conseguido dormir à noite porque estava esperando notícias de alguém próximo. Mas e os professores? Eles estão se segurando, não podem surtar, entrar em pânico. Estão fazendo o que podem.”Em toda a Ucrânia, alunos e professores começaram o novo ano letivo em dois de setembro, num momento em que os russos vêm intensificando as investidas em várias cidades.A 6H é a mais problemática de todas as classes do sexto ano no colégio de Kovaliova. “Não gostam de disciplina e não conseguem parar quietos, principalmente porque enfrentaram a quarentena durante a pandemia e, até agora, dois anos de guerra. Geralmente, ignoram as ordens; é um grupo difícil, mas até entendo o porquê desse comportamento. São barulhentos; querem gritar alguma coisa, mas nunca perguntamos a eles o quê. Estão pedindo ajuda, sangrando, feridos, mas ninguém percebe.”Por isso, em vez de checar a lição de casa em uma ocasião recente, ela surpreendeu a classe logo cedo. Convidou um repórter do “The New York Times” para ser ouvinte na aula, e disparou repentinamente: “O que mudou dentro de vocês nesses dois anos? Como mostrariam isso em uma pintura coletiva?”Kovaliova contou que desde a invasão vem tentando convencer a administração a montar um mural gigante no abrigo antiaéreo da escola, pintado pelos alunos, no qual poderiam expressar suas experiências. Com o aval demorando a sair, ela decidiu ir em frente, pedindo aos alunos que começassem a pensar no projeto.O primeiro a se manifestar foi Danya, de 11 anos, desalojado de Luhansk, cidade onde morava, em 2014, quando teve início o conflito entre os separatistas apoiados pela Rússia e as forças do governo nas regiões orientais de Luhansk e Donetsk. “Antes eu achava que minha casa era meio que um guarda-roupa, onde eu podia me esconder e nada me atingiria. Mas não é bem assim.”A seguir, Yehor, também de 11 anos, contou que fugiu da capital com a mãe logo no início da guerra. “Eu queria ficar, mas meus pais acharam que os soldados já estavam muito perto. Então fomos embora. Meu pai ficou, e viu com os próprios olhos um míssil voando e explodindo.”Sua família se refugiou em uma cidadezinha a oeste de Kiev. Na viagem, o garoto levou um ícone religioso consigo, com a ideia de que o ajudaria a chegar ao destino em segurança. Disse que era o que queria pintar.Kovaliova explicou sua ideia para a classe. “Imaginem um aluno chegando à escola daqui a 20 anos. A guerra acabou, vivemos em um país feliz. Então ele vê o mural assinado pela Sala 6H, o guarda-roupa e um ícone lá dentro. Vai começar a pensar.”“O que mudou dentro de vocês nesses dois anos? Como mostrariam isso em uma pintura coletiva?”, repetiu.Nazariy, de 12 anos, respondeu: “Para mim, a guerra é, acima de tudo, morte. É muito sofrimento.” Um riso nervoso percorreu a sala. “Meu tio morreu.” Kovaliova pediu silêncio. “Quantos anos ele tinha?”, questionou. “Trinta e dois.” “Que tristeza, dá até vontade de chorar. O que você pintaria?”, insistiu ela. “Um forte. Cavaleiros entrando nele. E muito sangue em volta.”“O que mudou em vocês?”, perguntou, voltando-se para a turma.“Não tenho mais vergonha de falar o que penso. Antes, eu meio que me revoltava de ter nascido na Ucrânia, mas, depois que a guerra começou, passei a achar legal ser ucraniano. Eu pintaria um espelho em um guarda-roupa para ver quanto mudei”, afirmou Nazar, de 12 anos.Arina, de 11, explicou que fora desalojada do leste do país e separada dos avós, que continuaram no território ocupado pelo inimigo. Começou a chorar, e vários colegas se adiantaram para abraçá-la e consolá-la. “Eu pintaria alguém chorando, porque as pessoas morrem e você não pode nem visitar o túmulo delas.”“Esta é uma discussão muito importante, que me ajudou a entendê-los melhor e ajudou vocês, que também estão se conhecendo um pouco mais. Obrigada”, comentou a professora.A essa altura, as histórias começaram a fluir. “Meu irmão morreu faz pouco tempo. Tinha 24 anos. Nunca dei muito valor à vida que tive a seu lado. Eu pintaria vários caixões com braços à sua volta”, disse um garoto chamado Sasha. E acrescentou: “Nossa pintura está ficando complicada.”Outro garoto, Kyryl, também se manifestou. “Quando a guerra começou, foi muito mais assustador do que eu imaginava. Eu pintaria o medo.” “E como faria isso?”, questionou Kovaliova. “Com a escuridão”, respondeu ele.c. 2024 The New York Times Company