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Comediantes venezuelanos lutam contra a opressão com muito humor

Uma geração que fugiu da perseguição política e das dificuldades econômicas está encontrando uma maneira de rir em meio à dor

Internacional|Julie Turkewitz, do The New York Times

Angelo Colina, de Maracaibo, na Venezuela, tem um show de comédia stand-up em Columbus, Ohio Maddie McGarvey/The New York Times

Bogotá, Colômbia – Estefanía León, jovem humorista venezuelana, certa vez se perguntou como poderia continuar fazendo piadas em meio a tanta tragédia. Era 2017 e ela vivia em Caracas, capital da Venezuela, no pior momento da crise econômica nacional. Os protestos abalavam o país, a escassez de alimentos levava milhões de pessoas à fome e a hiperinflação destruía as economias da noite para o dia.

Seu pai, na época muito doente, levantava-se às três da manhã para entrar na fila e comprar comida antes que o estoque acabasse. León trabalhava sete dias por semana, mas não conseguia pagar os medicamentos dele. Era redatora do “El Chigüire Bipolar”, site de sátira política muito popular, e a função exigia que fizesse piadas diariamente. Mas, a caminho da redação, tinha de se desviar de gases lacrimogêneos.

Até que o governo, controlado por Nicolás Maduro, presidente cada vez mais autoritário, aprovou uma lei que proibia muitos tipos de discurso. Ela começou a temer que suas piadas a levassem à prisão.

Segundo ela, a comédia era sua trincheira, de onde lançava críticas políticas e sociais. “Não existia motivo para rir. Não tinha comida nem dinheiro, havia uma ditadura e eu estava com medo.” Fugiu para a Cidade do México em 2018. No começo, concentrou-se em sobreviver. Mas, com o tempo, voltou para o humor.


Atualmente, León desempenha um papel importante em uma grande explosão da comédia venezuelana, cujos protagonistas trabalham e vivem, em sua maioria, fora do país, agora com muito mais liberdade para dizer o que querem.

Algumas nações elevam seus romancistas ou poetas a uma posição de eminência cultural; a Venezuela há muito tempo considera seus comediantes como alguns dos expositores sociais mais importantes. Hoje, com quase oito milhões de venezuelanos tendo fugido de casa desde 2015, os talentos dessa área estão se transferindo para o exterior.


Entre esses comediantes estão George Harris, nos Estados Unidos; José Rafael Guzmán, no México; e Víctor Medina, na Argentina. Este último, conhecido como Nanutria, seu apelido de infância, apresentou-se no ano passado com outras pessoas no Luna Park, estádio de Buenos Aires que normalmente recebe ícones do rock argentino, como Charly García, e superestrelas internacionais, como Shakira.

León, de 33 anos, é um dos três produtores de El Cuartico, projeto semanal de esquetes em vídeo e podcast que é transmitido em redes sociais e plataformas de áudio. No TikTok, eles têm mais de 600 mil seguidores, o que representa só uma parte de sua base de fãs.


Quando o grupo começou, em 2020, abordava temas universais, tentando atrair um público diversificado de língua espanhola. Mas os três logo se sentiram atraídos por temas mais familiares à experiência venezuelana, como a imigração e o autoritarismo, que eles achavam que poucos humoristas de língua espanhola estavam abordando de maneira sofisticada.

Em pouco tempo, a voz deles e os vídeos alcançaram centenas de milhares de pessoas em sua busca de uma identidade venezuelana no exterior. Hoje, os três membros de El Cuartico vivem da comédia.

Em vídeos recentes, León aparece em uma fila fictícia de imigração dos Estados Unidos, tentando convencer um agente da fronteira chamado Larry de que está lá só para uma visita rápida. Olha para seus pertences, que incluem quatro malas, uma fritadeira elétrica sem óleo e uma chapa para arepas chamada budare, que ela abraça contra o peito como se fosse um colete salva-vidas. Por fim, sob o olhar imponente do agente – experiência enfrentada por quase todos os venezuelanos que cruzaram uma fronteira nos últimos dez anos –, ela explode: “Sim! Vim para ficar! Que você e o mundo todo fiquem sabendo!”

Outros esquetes apresentam um autocrata beligerante que não vai embora de um jantar que já terminou há muito tempo, zombando da recusa de Maduro em deixar o poder, e um espião do governo muito desajeitado para esconder sua identidade – sátira dos esforços do regime para vigiar a população.

Os comediantes Chucho Roldan, Estefania Leon e Daniel Enrique Perez gravam juntos um podcast e quadro em vídeo semanal Marian Carrasquero/The New York Times

Nem todos os episódios são tão políticos. No mês passado, o grupo examinou a obsessão nacional por calças jeans estilo skinny, incluindo um esquete em que um homem não consegue tirar sua calça apertada demais.

Chucho Roldán, de 36 anos, colega de León em El Cuartico, atribuiu sua popularidade ao colapso da indústria do entretenimento venezuelana em meio à crise política e à quase ausência de personagens de seu país na mídia internacional convencional: “Não existe nada para nós e queremos essa visibilidade.”

De acordo com Leonardo Martínez, de 38 anos, que trocou a Venezuela por Porto Rico em 2014, o grupo o ajudou a se reconectar com sua identidade venezuelana. “Estava escondida no meio da raiva, da frustração e do desgosto com o país. Quase não vejo venezuelanos por aqui. Por isso nos apegamos a coisas como El Cuartico”, disse em relação a seu novo lar.

Pouco antes da recente repressão à dissidência no país – cerca de duas mil pessoas foram detidas desde a eleição contestada no fim de julho –, os três embarcaram em uma turnê arriscada por cinco cidades da Venezuela. Lá, foram recebidos como celebridades e lotaram teatros, incluindo um anfiteatro icônico em Caracas, na capital.

Fora de sua nação, os três continuam usando uma cadência (muito rápida) e um vocabulário nitidamente venezuelano (uma menina não é uma “chica”, mas uma “chama”; um “amigo” é um “pana”), mantendo referências nacionais. (No esquete de imigração, León tenta levar uma fritadeira elétrica sem óleo para os Estados Unidos para fazer tequeños, palitos de queijo muito amados cujo consumo é praticamente um dever patriótico).

Mas uma parte significativa de seu público vem de fora da Venezuela. “Um esquete sobre corrupção funciona na América Latina inteira. Sobre ditadura também”, comentou Daniel Enrique Pérez, de 34 anos, terceiro membro do El Cuartico.

Alejandra Otero comenta que precisa ter cuidado com o que diz e faz, ainda mais durante período eleitoral Adriana Loureiro Fernandez/The New York Times

Vários comediantes venezuelanos começaram a carreira em seu país de origem e depois a consolidaram no exterior. Mas Angelo Colina, de 30 anos, de Maracaibo, iniciou sua trajetória no stand-up só depois de se mudar para Salt Lake City, nos Estados Unidos, em 2018. Atualmente, vive em Nova York e, desde janeiro, se apresentou em 31 estados e em Porto Rico, muitas vezes com os ingressos esgotados, incluindo um show no Teatro Gramercy, em Manhattan.

Diferentemente do trio El Cuartico, grande parte de sua comédia se concentra na experiência latina nos Estados Unidos, e não em seu país de origem: “É óbvio que sinto muita falta da minha nação, do meu povo e da minha família. Mas, ao mesmo tempo, os momentos mais bonitos que vivi como adulto e na minha carreira foram fora da Venezuela. Não sei se eu estaria fazendo comédia, muito menos nesse nível, se tivesse ficado”.

Nos últimos meses, a situação política na Venezuela passou de difícil a terrível. Depois da eleição de julho, vista amplamente como roubada por Maduro, as forças de segurança prenderam centenas de pessoas, muitas delas cidadãos comuns.

Mesmo com a repressão, ainda há um núcleo pequeno de humoristas no país, centrado principalmente em um clube de comédia em Caracas chamado Pizpa. Alejandra Otero, de 41 anos, é uma artista regular da casa, que permaneceu na Venezuela. Embora a maior parte de seu humor não seja político, passou anos aprimorando sua imitação de María Corina Machado, líder da oposição conservadora que se posicionou como rival do governo de esquerda de Maduro.

Em um esquete popular, Otero, no papel de Machado, está sentada em um carro seguindo instruções escritas que a orientam a ir para a esquerda. Mas ela se recusa: “Venezuela! À esquerda, jamais!” No fim, gira tantas vezes à direita que nunca chega ao seu destino. “Outro dia”, diz.

Otero há muito tempo tem sido cuidadosa com o que diz e faz, e ainda mais no ambiente pós-eleitoral. Contou que, durante a preparação para uma apresentação recente no Pizpa, cortou várias referências políticas. E acrescentou que a cada dia que passa há menos espaço para a comédia na Venezuela. “O humor, obviamente, é uma coisa que causa desconforto no regime, porque nasceu para isso, para incomodar e criticar.” Ainda assim, não tem planos de parar de se apresentar nem de fugir. “Porque agora, mais do que nunca, precisamos rir.”

c. 2024 The New York Times Company

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