Crianças são metade dos refugiados no mundo, e muitas cruzam fronteiras desacompanhadas
Especialistas destacam que os menores são os mais vulneráveis em um cenário de guerra e devem ser acolhidos e protegidos
Internacional|Karla Dunder, do R7
Após a invasão russa, em fevereiro, em torno de 1,4 milhão de crianças ucranianas se viram obrigadas a fugir do país. Ainformação divulgada pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) põe especialistas de todo o mundo em alerta.
"Não é recente o refúgio de menores desacompanhados que saem em travessias, muitas vezes mortais, para buscar abrigo em outros países. Acompanhamos com muita preocupação esses deslocamentos; o último levantamento feito mencionava que quase metade dos refugiados no mundo são crianças", explica Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, presidente da cátedra Sérgio Vieira de Mello Acnur/Unicamp e International Fellow no Institut Convergences Migrations, na França.
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De acordo com dados do Unicef divulgados nesta terça-feira (15), a cada segundo uma criança da Ucrânia se torna refugiada. "Nunca vimos um deslocamento tão grande em um intervalo tão curto de tempo", observa o órgão. "Há uma grande divulgação de imagens e situações que envolvem refugiados ucranianos na imprensa internacional."
A imagem do menino Hassan Al-Khalaf, de apenas 11 anos, chegando desacompanhado à Eslováquia no início de março chamou a atenção da mídia internacional.
A mãe de Hassan é viúva e não podia deixar a avó, que não tem condições de se deslocar, sozinha em casa. Ela enviou o menino em uma viagem de mais de 1.000 km para que ele ficasse com seu filho mais velho. Hassan cruzou a fronteira e chegou até o irmão com nada além de uma sacola plástica, do passaporte e de um número de telefone escrito na mão. A história foi publicada nas redes sociais por policiais que classificaram o menino de "herói".
"Eu, particularmente, acho complicado pensar nesse ato como 'heroísmo', estamos falando de um grande desespero, uma mãe ter de deixar o seu filho para que ele possa se salvar, deixá-lo sozinho caminhando por quilômetros até chegar à fronteira, é uma situação dramática", observa a professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Ana Carolina. "Claro que ele é um menino muito corajoso, venceu muitos obstáculos para encontrar segurança, mas ele é uma grande vítima de uma crise humitária."
"Todos os refugiados estão em uma situação vulnerável, mas as crianças são as mais vulneráveis nesse grupo", observa Luis Vedovato, professor de direito internacional na Unicamp e PUC-Campinas. "O exemplo desse menino ucraniano é um alerta; é fundamental que haja um acompanhamento do destino dessas crianças por parte das autoridades internacionais para que elas não caiam em um ciclo de violência e abusos."
Em declaração conjunta, o representante do Acnur (Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), Filippo Grandi, e a diretora-executiva do Unicef, Catherine Russell, fizeram um apelo aos países vizinhos da Ucrânia para que garantissem a identificação e o registro imediatos de crianças desacompanhadas e separadas que fogem do país logo após permitir o acesso ao seu território.
Crianças desacompanhadas e separadas de suas famílias — na Ucrânia, Síria, Etiópia ou em qualquer outro país em conflito — precisam de proteção. "O ponto central é não deixar que essas crianças caiam nas mãos de traficantes de pessoas ou de órgãos, que não caiam em redes de pedofilia ou prostituição. Elas precisam ser acolhidas de forma segura no local de destino para que não se tornem vítimas de violência."
As autoridades internacionais do Acnur e do Unicef destacam que os países devem oferecer "espaços seguros para crianças e famílias imediatamente após a travessia de fronteiras e vinculá-las aos sistemas nacionais de proteção à criança. A emergência atual também exige uma rápida expansão da capacidade de atendimento de emergência, com cuidadores selecionados bem como outros serviços críticos para a proteção de crianças, inclusive contra a violência de gênero, mecanismos de rastreamento e reunificação familiar". E completam: "A adoção não deve ocorrer durante ou imediatamente após emergências".
Crise humanitária
A crise humanitária que atinge a Ucrânia é a que cresce mais rapidamente desde a Segunda Guerra Mundial na Europa, mas não é a única. "O deslocamento é um problema crônico que vivemos neste começo de século 21", afirma a presidente da cátedra Sérgio Vieira de Mello Acnur/Unicamp.
Ela destaca a cobertura realizada pela imprensa internacional do conflito entre Rússia e Ucrânia, mas lembra outras imagens dramáticas da situação das crianças refugiadas.
"A imagem do menino Aylan Kurdi, que morreu afogado com sua família ao tentar deixar a Síria, é uma foto que chocou o mundo", diz Ana Carolina. "É uma imagem ícone, que teve ampla circulação, várias releituras como grafites e gravuras, mas o que acontece é que antes de que tivéssemos conhecimento daquela foto várias crianças já tinham morrido nas travessias e várias crianças continuaram morrendo depois. A imagem do menino Aylan Kurdi é um marco, mas infelizmente não impediu que essa tragédia continuasse, apesar do choque que causou."
A professora também lembra a situação de crianças em prisões e desacompanhadas nos Estados Unidos, na Austrália e na Itália. "Vivemos em uma sociedade em que crianças, em busca de segurança, são encarceradas por anos, sem acesso ao mínimo que é exigido para o seu desenvolvimento." Além de milhares de crianças que vivem presas nos campos de refugiados.
E conclui: "Vivemos uma crise humanitária sem precedentes e sem um prazo para terminar porque os conflitos estão espalhados pelo mundo. Essas disputas por territórios e entre etnias estão se espalhando como ervas daninhas e, para defender interesses políticos e econômicos, famílias são separadas e civis massacrados. Creio que, com a divulgação ampla do conflito na Ucrânia, a sociedade como um todo tem acesso a problemas que se arrastam, como a situação das crianças refugiadas, e talvez a tomada de consciência ajude a impedir que esse problema se alastre ainda mais".