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Estupro de guerra: o corpo feminino como um território a ser conquistado

Objetificação da mulher nessas circunstâncias se dá como forma de humilhação e demonstração da força masculina

Internacional|Letícia Sepúlveda, do R7

Mulher participa de marcha em Bangkok para protestar contra a invasão russa da Ucrânia
Mulher participa de marcha em Bangkok para protestar contra a invasão russa da Ucrânia

Em O Segundo Sexo, sua obra mais célebre, Simone de Beauvoir escreveu: “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Durante uma guerra, portanto, a liberdade feminina mais uma vez é posta à prova e o corpo da mulher passa a ser um objeto de conquista.

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Desde a invasão russa da Ucrânia, em 24 de fevereiro, várias denúncias de estupro começaram a surgir nas cidades sitiadas e nos corredores humanitários, lugares onde as ucranianas se encontram ainda mais vulneráveis devido ao domínio das tropas inimigas.

Para Kennya Passos, professora de direito penal e processo penal da Universidade CEUMA e uma das autoras do artigo “Estupro de guerra: o sentido da violação dos corpos para o direito penal internacional”, a violência sexual contra o corpo feminino constitui uma arma de guerra durante conflitos armados.


“O estupro nessas circunstâncias vai muito além da violação do corpo, não ocorre necessariamente para suprir um desejo sexual, mas como manifestação de poder e de objetificação das mulheres locais. É demarcar no corpo feminino a invasão de seu território”, explica.

Dessa forma, o corpo das mulheres se torna novos territórios a serem conquistados pelas tropas invasoras. A objetificação nessas circunstâncias se dá como forma de humilhação e demonstração da força masculina.


Para a especialista, o crime está ligado a uma realidade ainda mais profunda em relação à desigualdade de gênero. “A mulher perde a sua individualidade, é vista como pertencente a alguém, seja ao Estado ou aos homens daquele lugar. Ela é objetificada mais uma vez para que o agressor possa impor sua dominância nas áreas conquistadas."

O estupro também pode ser usado para a destruição da identidade cultural e até como forma de genocídio. “A prática pode visar aniquilar toda uma etnia ou uma nacionalidade. É como se toda uma geração do território fosse exterminada, além do fato de as mulheres serem obrigadas a terem os filhos dos invasores.”


Mulher segura suas filhas enquanto civis fogem da invasão da Ucrânia pela Rússia, em Odessa
Mulher segura suas filhas enquanto civis fogem da invasão da Ucrânia pela Rússia, em Odessa

Crime difícil de ser julgado

O julgamento de um crime de estupro passa pelas duras características de uma sociedade patriarcal, em que naturalmente as mulheres são privadas de muitos direitos, entre eles o reconhecimento da individualidade de seu corpo.

Durante anos, o estupro foi julgado como um crime contra a moralidade pública, deixando de lado o fato de ser uma violação direta contra as vítimas. “O caráter individual das mulheres ainda hoje é contestado, isso ocorre quando seu corpo é controlado pelo Estado, não por elas”, afirma a professora Kennya.

Segundo a especialista, em 1993 o estupro foi reconhecido como crime de guerra pela primeira vez durante o julgamento do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII). A partir daí, as autoridades perceberam que a prática ocorria de forma sistematizada e muitas vezes era incentivada pelo Estado.

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Em julgamentos seguintes, a violência sexual sistêmica contra as mulheres locais também foi constatada, como nos casos das guerras da Bósnia, Ruanda e República Democrática do Congo. Em seu artigo sobre o tema, a professora Kennya cita que nos “campos de estupro” da Bósnia, estima-se que entre 20 mil e 60 mil mulheres sofreram estupros coletivos.

No caso de Ruanda, o dado é ainda mais alarmante. O texto revela que cerca de 500 mil mulheres foram alvo de violações sexuais na guerra sem precedentes na história do continente africano que deixou cerca de 1 milhão de vítimas.

A punição do crime, entretanto, é muito difícil de ocorrer, e os conflitos armados tornam o processo ainda mais complicado. A especialista ressalta que “as provas físicas desaparecem, as mulheres são assistidas muito tempo depois do ocorrido e, por conta do trauma, têm dificuldades de se lembrar dos detalhes do acontecimento”.

Quatro dias após a invasão da Ucrânia, o Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciou a abertura de uma investigação sobre crimes de guerra na Ucrânia. Entretanto, como a Rússia não é um país que se submete à jurisdição do tribunal, o próprio Estado russo deverá reconhecer os crimes de guerra para punir os membros de seu Exército. Outra alternativa seria um julgamento feito pelo próprio país.

“Além dessa realidade, os comandos militares com certeza vão negar esses crimes, em um choque de narrativas em que dificilmente as vítimas serão ouvidas.”

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