Longas viagens, desgaste e perdão polêmico: um cansado Joe Biden se despede da presidência
Em seus últimos dias de mandato, o democrata tenta consolidar seu legado antes de Donald Trump assumir
Internacional|Peter Baker e Zolan Kanno-Youngs, do The New York Times
Foi um longo dia em Angola. O presidente Joe Biden já visitara uma instalação portuária cercada por guindastes e percorrera uma fábrica cheia de correias transportadoras de mercadorias. Quando finalmente se sentou a uma grande mesa circular de madeira em uma sala quente e abafada com líderes africanos, apoiou a cabeça na mão e fechou os olhos brevemente enquanto os discursos não paravam.
Voar pelo mundo cansaria até mesmo um presidente com menos de 82 anos. Mas o que interessava, na opinião dele mesmo, era que tinha vindo. Viajara milhares de quilômetros para chamar a atenção para uma nova ferrovia cuja construção tem apoio dos EUA e que pode transformar as economias africanas, além de fornecer recursos para a América. Ele estava lá. Não precisava, mas insistiu e estava orgulhoso de ser fazer a primeira visita ao continente em seu mandato.
A presidência de Biden chegou ao crepúsculo. É o capítulo final de uma jornada política épica que durou meio século e que teve mais do que sua cota de reviravoltas. O tempo alcançou Biden. Ele demonstra estar um pouco mais velho e um pouco mais lento a cada dia. Entretanto, assessores dizem que continua bastante afiado na Sala de Crise, convocando líderes mundiais para intermediar um cessar-fogo no Líbano ou lidar com o caos da rebelião na Síria. Mas é difícil imaginar que no início da campanha eleitoral de 2024 ele tenha pensado seriamente em continuar a fazer o trabalho mais estressante do mundo por mais quatro anos.
Biden prepara sua despedida, mas as coisas não estão fáceis para ele. Nada do que aconteceu desde que foi levado a abandonar a corrida, em julho, mostrou que sua decisão estivesse errada. Mas a vitória de Donald Trump sobre a vice-presidente Kamala Harris foi interpretada por alguns como um repúdio a Biden. Doeu. Ainda dói. Mas ele aceitou o resultado, ao contrário de Trump há quatro anos.
“Sim, isso é difícil, mas ele já passou por situações mais complicadas, tem uma longa lista de coisas que quer fazer e está focado em efetuar cada uma delas”, comentou Ted Kaufman, seu amigo de longa data, assessor e sucessor no Senado.
Determinado a encerrar seu período presidencial com nota alta e moldar seu legado como um presidente consequente, Biden quer, nestas últimas semanas, “correr para a linha de chegada”, como disse seu chefe de gabinete, Jeffrey D. Zients. Está riscando as últimas linhas de sua lista de desejos presidenciais. Angola? Certo. Uma visita à floresta amazônica? Uma posse presidencial? Certo.
A linha mais importante que resta nessa lista é obter um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Se conseguir isso, será um triunfo, uma forte validação para um presidente que está de saída. Caso contrário, vai encerrar seu tempo no cargo reivindicando o crédito de ter entregue a economia saudável ao seu ingrato sucessor e ter obtido dinheiro, previamente aprovado pelo Congresso, para construir estradas e pontes dentro do país e levar armas para a Ucrânia no exterior.
Biden também atou um lacinho de perdão na lapela antes da partida e deu um número recorde de indultos para prisioneiros que já estavam em prisão domiciliar. No entanto, seu gesto mais ousado foi perdoar seu filho Hunter Biden depois de este ter sido condenado por posse ilegal de arma de fogo e por fraudes fiscais. Logo depois, foi surpreendido pela reação de seus colegas democratas.
Como outros mandatários que deixaram o cargo, Biden também está desaparecendo da cena política e quase deixando o palco antes do fim do discurso. Já Trump domina a conversa mais do que normalmente fazem os presidentes que ainda não assumiram – faz pronunciamentos políticos e se reúne com líderes mundiais antes de ser empossado no cargo –, enquanto o presidente que de fato ocupa a Casa Branca se torna uma anedota nacional. “Presidente – ainda?”, perguntou ironicamente um apresentador do mais famoso programa humorístico no ar, “Saturday Night Live”.
Ausente no fim do mandato
Biden se ausentou do debate que convulsiona o país. Depois de alertar repetidamente que Trump representava uma ameaça à democracia americana, resolveu agora se calar sobre o assunto. Até mesmo seus assessores se recusam a responder a perguntas sobre se o futuro presidente é mesmo um perigo. Tradicionalista até os ossos, Biden optou pela compostura e pela reticência que acredita serem adequadas a um presidente que está saindo com seu partido derrotado. Enquanto isso, o presidente que está chegando ameaça prender oponentes e tenta instalar em posições de poder acólitos com mentalidade conspiratória.
Alguns dos aliados de Biden e colegas democratas gostariam que ele usasse sua posição de forma mais assertiva no tempo que lhe resta. “Ele deveria pressionar dramaticamente até o último dia as posições que seu mandato representou e, dessa forma, selar seu legado, deixando sua passagem pela presidência presente na memória do público americano, porque é diametralmente oposto a tudo que Trump traz para a Casa Branca”, afirmou o reverendo Al Sharpton, líder dos direitos civis e aliado de Biden.
Mesmo quando pressiona por suas prioridades, Biden acha difícil avançar. Durante sua visita à floresta amazônica, no mês passado, sua fragilidade se mostrou dolorosamente clara para aqueles que viajavam com ele. Depois de falar por sete minutos em um dia de calor e umidade drenante, vestindo uma camisa azul larga, lentamente se afastou por um caminho de terra. Nesse momento, várias pessoas na plateia não acostumadas a vê-lo de perto disseram que prenderam a respiração, temendo que ele tropeçasse. (Assessores, entretanto, garantiram que seu andar não estava mais instável do que o normal.)
Durante uma cerimônia de boas-vindas em sua viagem a Angola neste mês, no dia seguinte a um longo e cansativo voo transoceânico que teria esgotado qualquer octogenário, o presidente João Lourenço rapidamente agarrou o braço de Biden para ajudá-lo a subir um degrau.
Quando Biden visitou o Museu Nacional da Escravidão naquela tarde, não entrou no prédio principal para ver as exposições; em vez disso, artefatos foram trazidos para fora para que ele os visse. Esse fato, de acordo com duas pessoas familiarizadas com o planejamento, foi atribuído ao medo de que as escadas íngremes fossem um desafio muito grande para o presidente. Mais tarde, a Casa Branca negou que as escadas fossem uma preocupação e declarou que ele não foi levado para dentro por motivos de agendamento e logística.
Compromissos internacionais
No entanto, Biden faz essas viagens árduas para destinos distantes como a Amazônia e Angola, quando talvez outros não se incomodassem com isso. Seus encontros no Brasil forjaram compromissos internacionais sobre mudanças climáticas e sua viagem a Angola teve como objetivo chamar a atenção para uma ferrovia que está sendo construída no continente africano com apoio dos EUA, competindo por influência com a China. São esses os dois principais desafios desta era.
“Foi um momento muito importante para mim, para nossa instituição. E foi um momento muito importante na história do museu”, disse Vladimiro Fortuna, diretor do museu da escravidão angolana. Ele ficou impressionado com Biden e não entendeu por que havia tanta preocupação com as escadas. “Não vi ninguém que não estivesse apto para subir e entrar no museu”, acrescentou.
Várias pessoas que acompanharam Biden nessas duas viagens notaram que ele mantinha uma agenda leve e, às vezes, resmungava, o que tornava difícil entender o que dizia. Com o fim de sua carreira chegando, ele parece ruminar. Durante uma reunião privada, houve um momento em que se deixou levar pela lembrança do famoso debate de 1960 entre John F. Kennedy e Richard Nixon.
Ao mesmo tempo, segundo aqueles que o acompanhavam, ele estava focado nas questões tratadas e demonstrou comando dos detalhes. Antes de se encontrar com o presidente Xi Jinping da China, à margem da cúpula promovida no Rio de Janeiro, insistiu em receber um briefing prolongado que se estendeu por cerca de 90 minutos.
Em reuniões na Casa Branca, assessores dizem que ele se mantém atento, dita ações específicas e edita os discursos para que atendam às suas preferências. Fez ligações para outros líderes mundiais como parte de um esforço bem-sucedido para intermediar um cessar-fogo e parar a guerra no Líbano e fez consultas sobre as consequências da queda do presidente Bashar Assad na Síria.
Alguns convidados notaram que, em uma cerimônia em homenagem aos atletas paralímpicos, no dia nove de dezembro, deu a impressão de estar totalmente engajado. “Parecia bem. Para minha surpresa, ele ficou durante todo o jantar. Pensamos que talvez saísse depois de algum tempo, mas não, sentou-se à mesa e comeu com todos. Realmente, parecia bem”, afirmou Elaine Kamarck, membro de longa data do Comitê Nacional Democrata que compareceu ao evento.
Ainda assim, ele se emocionou em um momento da cerimônia. Nesta época do ano, dizem os amigos, Biden pode ficar um pouco triste. Ele se recorda do acidente de carro de 1972 que matou sua primeira esposa e a filha pouco antes do Natal. Durante seu breve discurso no evento que homenageou os atletas das Paralimpíadas, mencionou a tragédia e ficou com a voz embargada por alguns momentos. Na quarta-feira, o presidente estará em Wilmington, Delaware, para as comemorações, quando normalmente visita os túmulos da família.
Enquanto algumas pessoas próximas a Biden disseram que ele havia feito as pazes com o fim de sua presidência, outras revelaram que estava mal-humorado. No momento, está bravo com os democratas do Congresso que denunciaram publicamente sua decisão de perdoar Hunter Biden, apesar das promessas de não o fazer, como observou uma pessoa que passou um tempo com ele há pouco tempo.
Funcionários da Casa Branca comentaram que, enquanto Trump atrai as manchetes, Biden e sua equipe estão ocupados garantindo que o dinheiro aprovado como parte de sua principal legislação seja gasto conforme o planejado em projetos de energia limpa, manufatura e infraestrutura antes que a próxima equipe tente bloqueá-lo.
Na semana passada, Zients emitiu um memorando para a equipe da Casa Branca informando que a administração anunciou a atribuição de cerca de 98% das verbas disponibilizadas até o fim do ano fiscal, atendendo a quatro leis importantes aprovadas por Biden: o Plano de Resgate Americano, a Lei de Infraestrutura Bipartidária, a Lei de Redução da Inflação e a Lei de Chips e Ciência.
“O presidente está muito concentrado na forma como vamos implantar esses projetos de lei. Impressionou a todos nós dizendo que precisamos ser menos burocráticos, que precisamos fazer o dinheiro sair, assinar logo os contratos e fazer com que esses benefícios cheguem às comunidades, democratas ou republicanas, em todo o país o mais rapidamente possível”, afirmou em uma entrevista Natalie Quillian, chefe de gabinete adjunta da Casa Branca que supervisiona o processo.
Na semana passada, na Instituição Brookings, Biden fez um discurso em que abordou seu legado. Descreveu o que considera a marca de sucesso de seu programa econômico e alertou sobre os perigos da chegada de Trump de novo ao poder. O discurso, de aproximadamente 40 minutos, que levou semanas para ser escrito, teve como objetivo delinear o que Biden acha que funcionou na economia durante seu mandato e expor o que não funcionará no futuro. Infelizmente, tossiu o tempo todo e estava rouco no fim.
No fim de semana passado, Jared Bernstein, presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente, observou: “Ele não quer uma estátua. Quer uma política melhor que eleve a classe média e nos afaste da pobreza.”
Mensagens contidas e perdão ao filho
Nesta fase da presidência, porém, a mensagem pública de Biden se mostra direcionada e contida. Antes ele era o tagarela mais loquaz de Washington; atualmente, mal se dirige aos repórteres que o seguem em todos os lugares. Não deu entrevistas coletivas nem exclusivas à mídia tradicional desde a eleição, embora tenha feito alguns podcasts. Sua única resposta a perguntas gritadas a distância por jornalistas durante toda a sua viagem à África totalizou 14 palavras. Na América do Sul, foi apenas uma única palavra.
Como resultado, Biden não abordou publicamente sua decisão muito criticada de perdoar o filho desde a declaração por escrito que divulgou, nem discutiu o perdão geral que deu a adversários de Trump para protegê-los da prometida campanha de “retaliação” do presidente eleito quando assumir o cargo em 20 de janeiro.
Às vezes, Biden se irrita com certas restrições. Antes da eleição, quando foi relegado à margem da campanha, disse a um aliado que estava entediado e perguntou se havia algum evento ao qual devesse comparecer, comentário que pareceu apenas parcialmente jocoso, de acordo com uma pessoa informada sobre a conversa.
Mas seus assessores dizem que ainda há muito a fazer. No memorando, Zients se referiu às conversações para o cessar-fogo em Gaza, aos esforços para confirmar mais juízes e aos planos para cancelar mais dívidas estudantis para trabalhadores do serviço público e outros devedores: “Num momento em que a maior parte das pessoas esperaria que andássemos devagar, peço a vocês que acelerem. Sei que vocês e cada equipe estão avançando em todas as questões, metro por metro.”
c. 2024 The New York Times Company