No Brasil, ex-militar lembra Guerra da Coreia: 'Lutei contra meu irmão'
Lim Kwan Taik, de 91 anos, desembarcou no Rio de Janeiro em 1956, depois de comandar um batalhão de 3.000 homens na península coreana
Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7
Em uma padaria no centro de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, o senhor de traços orientais que beberica café e lê seu jornal todos os dias parece alguém comum — especialmente para quem comandou um batalhão de 3.000 homens na Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953.
Com 91 anos, Lim Kwan Taik vive no Brasil desde 1956, quando desembarcou no Rio de Janeiro com um grupo de ex-militares coreanos. Eram soldados que, após o fim do conflito, escolheram não se firmar nem ao norte e nem ao sul da península dividida.
“Justamente quando chegamos, era Carnaval. Fomos até Niterói, eu vi a festa nas ruas e pensei: 'Será que no Brasil é todo dia assim?'. Depois de tanto sofrimento na guerra, ver tamanha alegria me deixou muito satisfeito”, ri.
Em entrevista ao R7, Lim — que ouve com certa dificuldade, mas fala sem embaraço — conta que nasceu em agosto de 1928 no território que hoje é conhecido como Coreia do Sul.
“Minha família era pobre”, afirma. Ainda assim, ele conseguiu se mudar para Pyongyang, ao norte, quando tinha 18 anos, para cursar ciência política e economia na Universidade Kim Il-sung.
“Pouco tempo depois, fui à Rússia estudar na academia militar de Moscou. Quando a guerra [da Coreia] estourou, fui convocado pelo norte e me tornei comandante de um batalhão com 3.000 soldados. Tive de lutar contra meu irmão — que era do Exército do sul”, diz.
A Guerra da Coreia
A história de Lim se transformou após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, quando a península coreana se separou em porção norte — ligada ao domínio comunista e à União Soviética — e porção sul — que recebia apoio norte-americano.
Leia também
Saiba as origens do conflito entre as duas Coreias
De jamais sair sozinho a reverenciar líderes, as regras que turistas brasileiros precisaram seguir na Coreia do Norte
Coreias do Norte e do Sul anunciam tratado de paz para encerrar guerra
'Bombardeamos tudo que se movia': os ataques que ajudam a explicar o rancor histórico da Coreia do Norte com os EUA
“Houve uma tentativa da ONU (Organização das Nações Unidas) de convocar uma eleição que pudesse constituir um governo único sobre toda a Coreia, mas os comunistas temiam que ganhasse um representante ligado ao sul”, explica Alexandre Uehara, doutor em Ásia e professor no curso de Relações Internacionais da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
“Acabaram se estabelecendo administrações diferentes em cada uma das partes. Em 1950, os norte-coreanos avançaram para o território oposto, e então eclodiu o conflito de fato”, completa o especialista.
Nem norte, nem sul
Durante a guerra que durou três anos — e envolveu a participação dos Estados Unidos, da ONU e da China —, Lim Kwan Taik esteve na linha de frente da batalha.
“Perdi muitos amigos. Houve um dia em que, junto de um grupo de 1.500 militares, tive de atravessar um rio a nado. Apenas eu e mais dez sobrevivemos”, lembra.
Quando as partes assinaram um armistício para interromper as hostilidades, em 1953, Lim já havia sido capturado pelas forças norte-americanas. Ele até teve as opções de retornar ao norte ou ao sul da península, mas rejeitou as duas alternativas.
“Eu já não acreditava mais no comunismo para ficar no norte e sabia que no sul, por ter lutado do outro lado, seria mal recebido. A ONU me recolheu com um grupo de soldados e nos enviou à Índia — que não havia participado da Guerra da Coreia.”
Da Índia ao Brasil
Após dois anos de espera em território indiano, o ex-comandante teve a possibilidade de analisar as ofertas de acolhida de diferentes países do mundo — boa parte deles neutros na Segunda Guerra Mundial.
“Havia Brasil, Suíça, Dinamarca, Argentina, México... Acabei escolhendo o Brasil porque soube que aqui, embora fosse pobre, havia pretos, brancos, amarelos, índios — tudo misturado. Além disso, a imigração japonesa já havia começado. Como eu sabia japonês, me pareceu o melhor lugar”, conta.
A vida em São Bernardo e o retorno à Coreia
Ao todo, 50 ex-combatentes da Guerra da Coreia desembarcaram no Brasil em 1956.
“Era o governo de Juscelino Kubitschek. Assim que cheguei, tive de identificar minha origem. Por ser ex-prisioneiro de guerra, fui classificado como cidadão de ‘nacionalidade indefinida’”, aponta. Oficialmente, a imigração coreana no país começaria só 1963, com a chegada de pouco mais de 100 colonos agrícolas no porto de Santos.
E enquanto, na Coreia do Norte, o comunista Kim Il-sung — que governou o país até 1994 — consolidou seu regime com a ajuda da União Soviética e depois da China, Lim Kwan Taik fez sua vida em terras tupiniquins. Chegou a viver no Paraná e até na Amazônia antes de se estabelecer em São Bernardo do Campo — onde conseguiu um emprego em uma montadora americana, se casou com uma imigrante japonesa, teve um filho e três netos.
“Durante 25 anos, fui projetista de engenharia. Me aposentei em 1986. Trabalhei muito, construí uma casa, paguei os estudos do meu filho”, detalha.
O ex-soldado foi oficialmente naturalizado brasileiro na década de 1970 e, por diversas vezes, se reuniu com outros combatentes da Guerra da Coreia para comemorar a vinda ao Brasil — hoje, ele calcula que menos de dez daquele grupo de 50 estejam vivos.
Periodicamente, Lim Kwan Taik ainda encontra tempo para visitar a Coreia do Sul — onde mantém contato com amigos e família. Na mais recente das visitas, em agosto de 2018, conheceu o presidente Moon Jae-in e deu uma palestra na Universidade de Mulheres Ewha, em Seul, sobre sua extraordinária trajetória de vida. De quebra, recebeu o título de cidadão sul-coreano — aos 90 anos. “Agora, tenho dupla nacionalidade.”