O desafio do rastreamento da gripe aviária nos laticínios dos EUA
Os trabalhadores agrícolas foram expostos ao leite infectado com o vírus da gripe aviária. Mas praticamente não houve testes
Internacional|Apoorva Mandavilli, Linda Qiu e Emily Anthes, do The New York Times
Mesmo já estando claro que o surto de gripe aviária que atinge os laticínios dos EUA começou meses antes e se disseminou muito mais do que se imaginava a princípio, as autoridades federais continuam enfatizando que o vírus representa uma ameaça mínima ao ser humano.
Entretanto, há um grupo exposto a altos riscos de contaminação: o das aproximadamente cem mil pessoas que trabalham nessas propriedades. Não há campanha de efetuação de exames para saber quantas estão infectadas e ninguém foi vacinado, o que deixa esses funcionários e seus familiares totalmente vulneráveis a um patógeno praticamente não monitorado, além de representar riscos maiores para a saúde pública.
Os especialistas afirmam que, se o vírus chegar a uma parcela maior da população, será por meio desse grupo. “Não sabemos se ele vai evoluir e se tornar uma pandemia, mas o fato é que esses trabalhadores estão sendo expostos e temos bons motivos para achar que estão adoecendo por causa disso”, afirmou Jennifer Nuzzo, diretora do Centro de Pandemias da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Brown.
A maioria desse grupo é de hispanófonos e entrou no país ilegalmente, ou seja, não tem direito a licença remunerada, proteção das leis trabalhistas de segurança, nem acesso a médicos, e seus empregadores normalmente não toleram faltas. “É um setor que não só corre mais riscos que qualquer outro, pois são trabalhadores que têm contato direto e muito próximo com esterco, o leite in natura, os animais infectados, como não conta com uma rede de segurança social”, explicou Elizabeth Strater, organizadora do sindicato United Farm Workers.
As entrevistas com quase 40 membros dos governos federal e estadual, especialistas em saúde pública, fazendeiros e organizações de trabalhadores revelam que se sabe muito pouco sobre o que vem ocorrendo nas fazendas no que se refere ao número de empregados infectados, à evolução do vírus e à maneira como este se espalha entre os animais. Por enquanto, o chamado H5N1 foi detectado nos rebanhos de nove estados, e embora os veterinários afirmem que há casos não confirmados de trabalhadores com sintomas, até oito de maio apenas 30 tinham feito o exame.
Com exceção de circunstâncias extraordinárias, os membros do governo estadual e do federal não têm a autoridade de exigir acesso às fazendas; por isso, a agência reguladora de medicamentos e alimentos (FDA, em inglês) e o Departamento de Agricultura estão fazendo exames no leite e na carne moída nas prateleiras dos supermercados.
Já o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC, em inglês) está esperando que os infectados procurem as clínicas. “O que é melhor, confirmar a presença de um vírus que se alastra com tamanha facilidade a ponto de levar verdadeiras multidões para o pronto atendimento, ou descobri-lo nas fazendas, tratar os doentes e reduzir a disseminação?”, questionou Rick Bright, CEO da Bright Global Health, focada em respostas a emergências de saúde pública.
Segundo o dr. Jay Varma, que já foi responsável pelo setor de doenças transmitidas por alimentos do CDC e subcomissário do Departamento de Saúde da Prefeitura de Nova York, supervisionando a seção de segurança alimentar, o sistema regulador complicado só agrava a situação.
“O Departamento de Agricultura regula as grandes propriedades comerciais e pode exigir a testagem de animais – embora ainda não o tenha feito –, mas não de quem trabalha nelas. Aliás, não quer nem se colocar em uma posição de ter de declarar que a produção e o fornecimento no país são inseguros, já que envolve produtos designados para exportação e isso pode ter um impacto econômico imenso.”
O CDC tem autoridade sobre os portos de entrada para os EUA, mas em âmbito doméstico necessita de aprovação para fazer a maior parte de seu trabalho; a FDA, a Administração de Saúde e Segurança Ocupacional, a Agência de Proteção Ambiental e os Serviços de Imigração e Cidadania também têm participação na questão, mas todos lidam com diversos níveis de burocracia e de cultura institucional.
Para alguns especialistas, essa colcha de retalhos pode ser um impedimento durante um surto. Um bom exemplo foi o caso de infecção bacteriana verificada em um salame, em 2009, cuja solução demorou mais do que deveria porque era o Departamento de Agricultura quem ditava as regras para a carne, a FDA era responsável pela pimenta moída que o cobria, e o CDC comandou a investigação sobre as pessoas contaminadas.
Para o dr. Nirav Shah, vice-diretor principal do CDC, a ideia de que a burocracia atrapalha é “excessivamente simplista”. “O pessoal das agências responsáveis pelo surto se fala várias vezes ao dia para coordenar as atividades e trabalha em parceria com os órgãos estaduais. A situação é complicada, mas estamos juntos nessa porque temos objetivos em comum.”
Temendo inspeções rigorosas, pouquíssimas fazendas liberam a entrada para as autoridades de saúde: afinal, os laticínios que confirmarem rebanhos doentes podem ter uma queda de até 20 por cento na renda quando já têm de lidar com a estagnação no preço de leite e os altos custos de transporte e alimentação.
Além disso, devido ao número relativamente baixo de casos confirmados – 36 rebanhos afetados entre os aproximadamente 26 mil do país, e um trabalhador –, há proprietários para quem a doença é uma ameaça distante.
Até quem apoia as iniciativas públicas hesita em receber os servidores – como é o caso de Mitch Breunig, dono do Laticínio Mystic Valley, em Sauk City, no Wisconsin. “Se o veterinário achar prudente, posso até fazer o exame na vaca que tiver sintomas, mas não quero os caras do CDC aqui de jeito nenhum.”
Até agora, o surto afetou não só as pequenas propriedades como as gigantes que dominam uma fatia cada vez maior do setor e normalmente dependem dos imigrantes para funcionar. “Os donos não estão nem aí para nossa saúde, querem só saber se cumprimos nossas obrigações”, acusou Luis Jimenez, que trabalha em um laticínio no interior do estado de Nova York e fundou um grupo de apoio para os estrangeiros em situação irregular que trabalham na indústria.
Segundo Shah, o CDC está trabalhando com os veterinários e as organizações como a Rede de Clínicas para Imigrantes para chegar até os peões. “Também gostaríamos de oferecer a efetuação de mais exames a eles.”
Em 6 de maio, ele pediu às autoridades estaduais que distribuíssem óculos protetores, viseiras e luvas para os trabalhadores e, em parceria com organizações comunitárias de confiança, fizessem um trabalho de esclarecimento sobre a importância do uso desses equipamentos na prevenção da doença, pois, apesar dos riscos para a saúde, a parafernália protetora não é obrigatória. “Não é compulsório; ninguém aqui está forçando ninguém a nada”, reforçou.
Entretanto, a natureza do trabalho e o local onde é executado – as salas de ordenha onde as máscaras acabam molhadas, anulando assim seu objetivo – podem transformar o uso da proteção em um verdadeiro desafio.
Poucos estados tomaram providências para conter o surto, e tiveram pouco sucesso. Segundo o porta-voz do Departamento de Saúde do Texas, a entidade se ofereceu para suprir os laticínios com o equipamento de segurança, mas só quatro se manifestaram.
Idaho fez o mesmo logo no começo da disseminação da doença, mas nenhum fazendeiro aceitou. “Por questões de privacidade e biossegurança, as autoridades do Departamento de Saúde não pediram para entrar nas propriedades, embora tenham feito o exame em um funcionário”, informou a dra. Christine Hahn, epidemiologista do estado. O Michigan não exige testagem de animais ou dos trabalhadores, mas passou a proibir feiras e exposições de gado e aves.
De acordo com os especialistas, a situação atual facilita o surgimento de novos focos nas fazendas e consequentemente uma rápida contaminação, como tem sido o caso nas propriedades de criação de aves e porcos. “Se alguém quiser esconder o surgimento de um novo vírus nos EUA, uma das melhores opções são os peões que trabalham nas fazendas de produção animal, porque a vigilância sobre eles não é, nem de longe, rígida como em outros setores”, concluiu o dr. Gregory Gray, epidemiologista da Faculdade de Medicina da Universidade do Texas.