Seca no Equador: a luta contra a escassez de energia nas usinas hidrelétricas e no país
Rodovias se transformaram em escuridão total, bairros ficaram sem água encanada e até sem internet e serviço de celular; alguns temem que este seja o início de uma crise global maior
Internacional|Julie Turkewitz e José María León Cabrera, do The New York Times
Quito, Equador – Há apenas uma década, o Equador, país pequeno e rico em recursos naturais, estava iniciando uma transição audaciosa para a energia hidrelétrica. Era uma das muitas nações sul-americanas que apostaram que seus rios abundantes, aproveitados por barragens, poderiam atender às necessidades energéticas crescentes e impulsionar a expansão econômica, retirando milhões de pessoas da pobreza e abrindo caminho para uma nova era de prosperidade. Hoje, porém, esses planos ambiciosos enfrentam os desafios de um clima em constante aquecimento.
O Equador tem sido atingido por uma seca extraordinária, agravada pelo aquecimento global, que afetou a maior parte da América do Sul, secando rios e reservatórios e colocando a rede elétrica do país à beira do colapso. De setembro a dezembro, os cortes diários de energia duravam até 14 horas. As rodovias se transformaram em escuridão total; bairros inteiros ficaram sem água encanada e até sem internet e serviço de celular. Um grupo do setor afirma que o país perde US$ 12 milhões em produtividade e vendas a cada hora sem eletricidade. “Meu país está à deriva”, resumiu Gabriela Jijón, de 46 anos, dona de uma sorveteria nos arredores de Quito, a capital.
Mas o Equador não está sozinho. Nos últimos anos, a seca anormal em diversas partes do mundo reduziu drasticamente os níveis de água dos rios, esgotando os recursos hidrelétricos em países como a Noruega, o Canadá, a Turquia e até mesmo a Costa Rica, conhecida por sua vegetação exuberante e seu clima quente e úmido. A Zâmbia, que depende muito da energia hidrelétrica, sofreu cortes diários de até 21 horas no ano passado. Algumas regiões da China, que também usam a água para gerar energia, enfrentaram apagões prolongados a partir de 2022.
No total, mais de um bilhão de pessoas vivem em países onde mais de 50% da energia provém de usinas hidrelétricas, de acordo com o Ember, instituto global de pesquisa energética. Contudo, com o aquecimento do clima e a intensificação de eventos climáticos extremos, como a seca, muitos cientistas preveem que a energia hidrelétrica se tornará uma fonte menos confiável. Mais de um quarto de todas as barragens hidrelétricas estão localizadas em áreas com risco médio ou extremo de escassez de água até 2050, segundo um estudo publicado em 2022 na revista “Water”.
O Equador é, em muitos aspectos, um exemplo do que outras nações poderão enfrentar. Alguns países, como os Estados Unidos, e os vizinhos do Equador na América do Sul, como a Colômbia e o Brasil, têm planos de contingência para recorrer a fontes alternativas, incluindo combustíveis fósseis, quando os recursos hidrelétricos forem insuficientes. Mas Nicolas Fulghum, analista sênior do Ember, observou que o custo para garantir capacidade energética adicional é altíssimo e que muitos países não estão preparados para o agravamento das condições.
A China é uma preocupação crescente, afirmou Fulghum. Em 2022 e 2023, a seca na região Sudoeste causou apagões que fecharam fábricas e prejudicaram seriamente o comércio. Embora só 13% da energia do país provenham da água – em comparação com 70% no Equador –, o tamanho e a integração do mercado chinês à economia global tornam provável que secas futuras tenham “efeitos em cascata”, comentou Fulghum.
No Equador, o presidente Daniel Noboa, que enfrentará outra eleição em fevereiro, havia prometido acabar com os cortes de energia até o fim de 2024, alegando que a energia comprada da vizinha Colômbia, entre outros fatores, ajudaria a aliviar a crise elétrica. Até o momento, não houve relatos de apagões em 2025.
Especialistas em energia, entretanto, preveem que qualquer alívio será temporário. A menos que ocorra um dilúvio – seriam necessárias cerca de duas semanas de chuvas intensas para elevar os níveis dos reservatórios –, os cortes regulares de energia podem persistir até pelo menos 2026, disse Iván Endara, professor da Escola Superior Politécnica do Litoral, universidade equatoriana, acrescentando que, para superar a crise definitivamente, são necessários anos de trabalho na diversificação e no desenvolvimento do setor energético do país.
A promessa da energia hidrelétrica
Em 2007, Rafael Correa, um novo presidente de esquerda, assumiu o poder no Equador, prometendo construir uma nação modernizada, com maior consciência social e ambiental.
O país já havia enfrentado uma crise energética de meses de duração, nos anos 1990, e outra em 2009, ambas causadas pela seca, durante as quais houve apagões. Em resposta à demanda crescente de eletricidade por causa de uma população cada vez maior e com o objetivo de usar a energia para impulsionar sua visão para o país, o governo de Correa investiu bilhões de dólares para expandir sua capacidade de produção energética.
Ao aproveitar a água, em vez de queimar petróleo ou gás, para produzir eletricidade, a nova matriz energética deveria ajudar a reduzir os efeitos do aquecimento global – e não transformar o Equador em uma vítima dele. Fazendo empréstimos vultosos de credores chineses, o governo Correa lançou quase uma dúzia de projetos hidrelétricos novos – barragens imensas que se tornaram símbolos da transformação do país. Uma obra em particular, a barragem de US$ 2,2 bilhões conhecida como Coca Codo Sinclair, foi prejudicada por falhas de design, segundo críticos, bem como por acusações de que alguns funcionários aceitaram suborno para conceder o contrato à empresa Sinohydro.
Ainda assim, entre 2007 e 2017, quando Correa deixou o cargo, a capacidade total de geração de energia do país aumentou cerca de 60%, segundo o Ministério de Minas e Energia. Outras mudanças incluíram uma constituição nova que colocou quase todo o setor energético sob controle estatal – o que, mais tarde, levou à má gestão e à ineficiência, de acordo com os críticos. A maior parte do crescimento veio da hidroeletricidade, com alguns aumentos nos combustíveis fósseis e na capacidade eólica e solar.
Depois do fim do governo de Correa, a capacidade de gerar eletricidade diminuiu. O ex-presidente, em entrevista de sua residência atual, na Bélgica, afirmou que o aquecimento global “não é o problema” que originou a crise energética no Equador. Ele culpou os três governos sucessores por não manter as usinas hidrelétricas e termelétricas, nem aumentar a capacidade de outras fontes de energia, o que causou a queda na capacidade e a insuficiência para produzir eletricidade em condições adversas. “Nunca vi uma destruição tão rápida de um país em tempos de paz.” (Correa deixou o Equador em 2017 e foi condenado em 2020 por acusações de corrupção não relacionadas a projetos energéticos.)
Em entrevistas, dois dos três presidentes que sucederam Correa – Lenín Moreno e Guillermo Lasso – disseram que investiram na ampliação da capacidade, destacando que os projetos energéticos muitas vezes levam anos para entrar em operação. Mas os dois enfatizaram que enfrentaram desafios econômicos que Correa não experimentou: primeiro, a queda nos preços do petróleo, que contraiu muito a economia do país, altamente dependente das exportações petrolíferas; depois, a pandemia.
Lasso descreveu seu dilema: “Compro vacinas ou invisto em usinas termoelétricas?” Mas, de acordo com Moreno, que assumiu o cargo em 2017, o problema “principal” é o “excesso de foco na energia hidrelétrica” no país, que “deixou o sistema extremamente vulnerável a fenômenos climáticos”. Lasso, que assumiu em 2021, apontou outro fator: classificou a cultura política do Equador como a causadora principal da crise, descrevendo-a como imediatista e propensa a negligenciar soluções em longo prazo para desafios importantes – incluindo a segurança energética.
Os representantes de Noboa se recusaram a comentar.
Os efeitos dos apagões diários
A lição do Equador, segundo Fulghum, não é que os países devem abandonar a energia hidrelétrica, mas que precisam investir de forma sólida em outras alternativas, de preferência em fontes de energia limpas – como a eólica e a solar –, capazes de compensar a escassez de água. Ele citou o Brasil e o Chile como nações que fizeram exatamente isso.
No Equador, os cortes de eletricidade começaram no ano passado e se tornaram uma ocorrência diária em setembro, levando indústrias inteiras à crise e ao fechamento de empresas. A incerteza tomou conta do país, agravada pela expansão do narcotráfico, que impulsionou a violência.
Poucos anos atrás, o Equador estava fazendo progressos significativos na redução da pobreza. “Agora, tudo que foi conquistado nesses anos de prosperidade está se perdendo”, disse Mónica Rojas, reitora da Faculdade de Economia da Universidade San Francisco de Quito.
Entre os afetados pela crise energética estão as instituições educacionais, como a Fundação El Triángulo, em Quito, que oferece educação e formação profissional para pessoas com síndrome de Down, facilitando sua inserção no mercado de trabalho. Muitas famílias são pobres, e, em alguns casos, os alunos se tornam os principais provedores. Nancy de Maldonado, uma das fundadoras, afirmou que conseguir que uma criança entre no programa é, para a família desta, como ganhar na loteria.
Ainda assim, no ano passado a fundação destinou US$ 3 mil ao orçamento para custos com energia, muito abaixo dos US$ 15 mil necessários para abastecer um gerador doado com diesel. Talvez seja necessário aumentar a mensalidade, o que significa a exclusão de algumas das famílias mais pobres.
Em Salcedo, cidade ao sul de Quito, Jijón, a proprietária da sorveteria, não é a única pessoa que luta para manter os produtos congelados. O sorvete é indispensável para a cidade, que é famosa pela venda de picolés com camadas de creme e frutas, inventados por freiras franciscanas. Mas, quando os cortes de energia começaram, a Los Helados de Salcedo, uma das maiores empresas da cidade, perdeu imediatamente dezenas de milhares de dólares em produtos, que derreteram diante dos olhos dos funcionários.
Em seguida, lojas pequenas que vendiam seus sorvetes pararam de fazer pedidos – os proprietários também não conseguiam mantê-los congelados. Em novembro, Paco Hinojosa, de 58 anos, diretor-geral da empresa, calculou que poderiam sobreviver por “mais três meses”.
Talvez os mais atingidos sejam os equatorianos mais pobres, que não têm um sistema de apoio. Certo fim de tarde, no norte de Quito, o último raio de luz do dia iluminava o quarto de Katherine Mantilla, de 19 anos. Em sua cama, apoiada em blocos de concreto, ela segurava nos braços Kenya, sua filha recém-nascida.
A criança nasceu em outubro, um mês depois do início da crise energética, com problemas respiratórios. Os médicos a enviaram para casa com um cilindro de oxigênio e as instruções para usá-lo regularmente. Mas Mantilla havia perdido sua renda. Ela vendia sanduíches nos sinais de trânsito e ganhava US$ 8 por dia. Quando os semáforos deixaram de funcionar por falta de energia, as pessoas simplesmente passaram a não parar nos cruzamentos, ignorando as jovens com os braços cheios de lanches.
Agora, Mantilla não tem dinheiro para recarregar o cilindro de oxigênio – nem para comprar uma lanterna. Ela contou que, à noite, é tomada pelo pânico de que o peito de Kenya pare de se movimentar e ela não perceba. “Se ela parar de respirar, se mudar de cor, como é que vou ver?”
c. 2025 The New York Times Company