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Seis mil quilômetros, seis pequenas cidades: uma viagem com breves paradas por uma parte dos EUA

A rota entre Chicago e Seattle passa por pradarias, montanhas, florestas e uma variedade de surpresas notáveis em sua série de cidades no centro

Internacional|Richard Rubin, do The New York

Empire Builder da Amtrak, uma rota através das planícies do norte que leva mais de 46 horas só de ida se não houver atrasos Janie Osborne/The New York Times

“Veja os Estados Unidos”, era o que prometia um antigo slogan da ferrovia Amtrak. E se você pegar a rota Empire Builder da ferrovia de Chicago a Seattle e voltar, como fiz recentemente, verá o cenário mudar; da grande cidade para o subúrbio, para a pequena cidade, para as florestas do norte, para as extensas pradarias, para as Grandes Planícies, para os montes arenosos, para os picos cobertos de neve, para os prados de artemísia, para os riachos ladeados por pinheiros, e de volta para a pequena cidade, para o subúrbio e para a grande cidade.

Mas será que o que está sendo visto é de fato a América? Literalmente, talvez: você a vê passar muito depressa pela janela. Depois de algum tempo, porém, pode parecer que você está usando óculos de realidade virtual, e então percebe que, para realmente “ver” os EUA, é preciso descer do trem.

Portanto, comprei um passe das ferrovias americanas por US$ 499, válido para até dez viagens de qualquer duração em 30 dias, e selecionei meia dúzia de paradas ao longo da rota. Como o trem Empire Builder funciona uma vez por dia, eu poderia, teoricamente, passar 24 horas em cada um desses lugares; seriam 144 horas para realmente ver os Estados Unidos – especificamente, as partes do país que não aparecem e que não se parecem em nada com os lugares onde a maioria dos americanos vive.

Eu já sabia que haveria desafios – por exemplo, eu não teria um carro. O trem estava programado para chegar a alguns lugares em um horário muito ruim. A viagem percorre mais de 3.200 quilômetros só no trecho de ida; sem atrasos, isso leva 46 horas e 24 minutos.


Mas há, inevitavelmente, atrasos imprevisíveis. O menor deles para chegar a uma parada foi de 20 minutos; o maior foi de mais de sete horas. Percorrer esse trecho em particular acabou durando 23 horas e 30 minutos.

E meu passe me dava direito apenas ao assento. Sem cama; sem chuveiro; banheiros compartilhados que, na maioria das vezes, pareciam estar com a limpeza em atraso também. Se você nunca tentou dormir em um vagão de trem, não sabe o que é ter dificuldade para adormecer. É um lugar onde quase todo mundo mal consegue tirar uma simples soneca.


Por outro lado, conheci muita gente interessante no trem: aposentados, jovens, famílias Amish e a turma de formandos da Minot High School, na Dakota do Norte.

O mais inesquecível foi ter visitado seis lugares americanos que eu nunca teria conhecido de outra forma. Ou nem sequer pensado em conhecer.


Rota estadual 28 para Ephrata, Washington, localizada no centro de Grant County, em Washington, que tem um excelente serviço de ônibus gratuito que vai para outras cidades Ruth Fremson/The New York Times

Se você quer tirar algum proveito da minha odisseia, lembre-se só de uma coisa: há algo extraordinário em todos os lugares.

Rugby, Dakota do Norte (População: 2.509)

Se a visão de uma pradaria extensa não o convencer de que chegou ao coração do país, Rugby o fará: é, como dizem as placas espalhadas por toda a cidade, “o centro geográfico da América do Norte”.

Se isso é verdade ou não, ou se essa condição pode ser determinada matematicamente, é algo controverso. Mas Rugby reivindica a distinção desde 1931 e, para tanto, ergueu um obelisco de pedra de quatro metros e meio. “Não se esqueça da selfie!”, avisa um quiosque próximo ao monumento, embora três motociclistas que pararam enquanto eu estava lá tenham me pedido que eu tirasse uma foto deles. Eram membros da Combat Veterans Motorcycle Association. Disseram que tinham acabado de completar um passeio da fronteira mexicana até a canadense em 26 horas.

Na Second Street, passando pelos correios e uma casa rosa-choque enfeitada com arco-íris, encontrei uma floricultura que ocupa o mesmo local desde 1903. O “Guia WPA para a Dakota do Norte”, de 1938, observa que o fundador da loja, Nels Lindberg, leva o crédito de ter cunhado a famosa frase “Diga com flores”. “Ele disse isso em uma convenção, mas não registrou os direitos autorais”, explicou Barb Lee, que comprou a loja Rugby Greenhouse da família de Lindberg, há 47 anos, e ainda é a dona. “Nels morreu em um acidente de carro enquanto entregava flores. O sócio dele, Jesse Hutchinson, morreu na estufa nos fundos. Ambos morreram fazendo o que amavam”, Barb acrescentou sorrindo.

Stanley, Dakota do Norte (População: 2.321)

Durante dois dias seguidos, fui a única pessoa a entrar no trem ou sair dele em Stanley.

A cidade é naturalmente saudável: casas de madeira e igrejas e um lindo parque no centro. Por mais humilde que seja, o município tem algumas joias arquitetônicas, incluindo o Mountrail County Courthouse, de 1914, com cúpula, e o Mountrail County War Memorial Auditorium Art Déco, de 1930.

Foi a parada onde vi menos gente. Mas Stanley estava cheia de surpresas: um cinema ainda em funcionamento, uma grande bandeira israelense pendurada na varanda da frente de uma casa e um enxame de gaivotas vasculhando o estacionamento da rede Dairy Queen, a 1.600 quilômetros do oceano.

Seu maior atrativo, no entanto, fica atrás do balcão da Dakota Drug, na Main Street: acredita-se que seja a última máquina de fazer sorvetes Whirla-Whip em operação no país. “Há um lugar no Illinois que afirma ter uma também, mas parece que usam sorvete cremoso”, disse uma senhora que trabalhava na máquina. Um verdadeiro Whirla-Whip – fenômeno da década de 1930 que proliferou por todo o interior da América – mistura ingredientes de sua escolha com sorvete consistente. Comi chocolate com manteiga de amendoim, picles e bacon.

Acredita-se que esta seja a última Whirla-Whip ainda em funcionamento do país; a máquina de fazer sorvete pode ser vista atrás do balcão Janie Osborne/The New York Times

Dois adolescentes alegres estavam trabalhando na loja, ao lado de duas mulheres igualmente risonhas. Uma me mostrou um registro de convidados com comentários de todo o país. “Para garantir que ninguém saia decepcionado, temos mais cinco máquinas no porão, para trocar peças ou caso esta aqui quebre”, ela contou.

Havre, Montana (População: 9.362)

Havre se estabeleceu no meio do caminho da linha Great Northern Railway, que corria entre St. Paul e Seattle. Uma estátua de James J. Hill, o magnata que construiu a GN na década de 1880 e foi apelidado de Empire Builder, guarda a entrada da estação.

Havre precisava ser conhecida. A cidade era toda voltada à ferrovia e às pessoas que os vagões traziam. O comércio atendia a seus apetites com saloons, bordéis, casas de jogo e antros de ópio. Em 1904, três visitantes, ofendidos por terem sido expulsos de um bar, queimaram quatro quarteirões da cidade, forçando muitos negócios a se mudar para os porões de pedra.

Pode-se fazer um tour por eles, chamado Havre Under the Streets, que mostra os locais históricos da cidade. Meu guia, professor aposentado, contou muitas fofocas suculentas sobre figuras locais como Christopher “Shorty” Young, vice-rei de Havre, e “Long George” Francis, campeão de rodeio e ladrão de cavalos que morreu misteriosamente.

Pessoas honestas também vinham para Havre, incluindo muitos imigrantes chineses, italianos, irlandeses e poloneses. Morris Feuer, criado em um bairro judeu, abriu a Hub Clothing Store na década de 1920; agora, o prédio da loja na Terceira Avenida abriga um museu ferroviário, onde uma placa conta a história dele.

Há também um passeio que se pode fazer a pé, com guia de áudio (disponível gratuitamente na câmara de comércio), que leva ao arborizado distrito histórico de Havre. São dezenas de belas casas com a biografia de seus respeitáveis proprietários (e de Shorty, o Manda-Chuva local). O nome de cada um está gravado diretamente na calçada da frente das casas.

Cut Bank, Montana (População: 3.056)

O nome Montana evoca picos altos. Mas se você estiver indo para o oeste na Empire Builder, não verá nada mais alto do que um elevador de grãos durante seus primeiros 650 quilômetros naquele estado. Cut Bank, no entanto, a última parada antes da Reserva Indígena Blackfeet e do Parque Nacional Glacier, oferece vistas esplêndidas das Montanhas Rochosas – e sem multidões por perto.

A cidade fica a apenas 48 quilômetros ao sul da fronteira canadense. Há décadas, alguém ergueu uma estátua de oito metros de um pinguim de desenho animado, proclamando Cut Bank o “ponto mais frio do país”; isso não é verdade, mas o tal ponto é um atrativo. Alguém me contou que lá também tentaram erguer uma enorme estátua de Cristo, mas a ideia foi frustrada por um pastor luterano do local que “achou que era idolatria”.

VIAGEM EUA Janie Osborne/The New York Times

Como tantas cidades ao longo da rota, Cut Bank foi gerada (ou pelo menos fomentada) pela Great Northern. Na década de 1920, menos de uma geração depois que a área tinha sido aberta para colonização, a ferrovia engatou seus vagões em uma locomotiva econômica diferente: o petróleo. Esse boom acabou há muito tempo, mas seus resíduos permanecem, não em poças negras, mas em casas impressionantes. Minha favorita, que lembra um terminal de ônibus dos anos 1930, tem muitos tijolos de vidro e curvas.

Muitas outras moradias modestas foram construídas na cidade durante o boom. Eram as casas dos trabalhadores do petróleo. Você pode passar a noite em uma delas (ou em uma cabana de fazendeiro – recriada como as antigas – ou em um vagão-dormitório genuíno) no Museu Histórico do Condado de Glacier. Isso se estiver disposto a pagar e participar de um programa educacional obrigatório extenso e detalhista.

Sandpoint, Idaho (População: 8.639)

Sandpoint é um bom antídoto para a parada anterior, Whitefish, Montana, onde uma olhada rápida na cidade é o suficiente para convencê-lo de que você não pode se dar ao luxo de descer do trem ali. A estação de Whitefish é um castelo alpino; a de Sandpoint é uma sala pequena e austera. A de Whitefish tem funcionários; a de Sandpoint é desbloqueada por um cronômetro uma hora antes da chegada programada do trem.

O Empire Builder parou em 11 lugares em Montana, mas não vi nada em nenhum deles que superasse em beleza bruta Sandpoint – a única parada da Amtrak em Idaho. Fica no Lago Pend Oreille, que é cercado por montanhas verdejantes e tem cerca de 70 quilômetros de comprimento e quase 365 metros de profundidade. “A Marinha testa submarinos nele”, uma pessoa me informou. (E é verdade.)

O centro de Sandpoint tem prédios antigos, bares para praticantes de mergulho e lanchonetes populares em número suficiente para compensar os lounges chiques e os restaurantes de luxo. Há um cinema de 1927, o Panida, que também sedia shows, concertos e outros eventos culturais; uma sorveteria convidativa (“Amamos você incondicionalmente”); e um food truck que oferece culinária esotérica que eu não esperava encontrar lá em cima no Panhandle.

O verdadeiro atrativo da cidade, contudo, é o ar livre: “Há tantos lagos lindos por aqui, e nenhum deles está sempre lotado”, um homem me disse.

Mas isso pode estar mudando. A garçonete que me atendeu em um restaurante contou que os preços dos imóveis na área dispararam nos últimos anos, desde que “alguém chamou Sandpoint de o melhor lugar para viver no Noroeste”. “Quem?”, perguntei. “Não sei. Mas muita gente aqui gostaria de espancá-lo.”

A estação rodoviária em Washington, no condado central de Grant, tem um bom serviço de ônibus gratuito que vai para outras cidades Ruth Fremson/The New York Times

Ephrata, Washington (População: 8.477)

Ephrata fica quase 321 quilômetros a leste de Seattle, no condado de Grant, que é maior que Delaware e muito diferente do que os moradores chamam de “o lado oeste” (ou seja, oeste das Cascades). Esse lado é exuberante e verde; parece o país que aparece no desenho animado do Coiote e do Papa-Léguas.

Ephrata é tranquila, tem uma livraria/café agradável, uma biblioteca aconchegante e um número surpreendente de jovens, muitos dos quais vieram para o lado oeste depois da faculdade. (“Chove pouco aqui”, explicou um deles.) Mas você não fica confinado lá, porque o condado de Grant, como descobri, tem um serviço de ônibus ótimo – e gratuito. Primeiro, fui até a cidade de Soap Lake (população 1.691), a cerca de dez minutos de distância, e entrei em seu lago, que contém 18 minerais e, dizem, poderes de cura. Suas praias são cobertas de crosta branca e sua costa distante é emoldurada por cristas ruivas em forma de dente molar.

Peguei outro ônibus gratuito em seguida e rodei por 112 quilômetros até chegar à magnífica Represa Grand Coulee, que é maior que a Represa Hoover e gera muito mais eletricidade, embora receba menos de 5% dos visitantes de Hoover. Por outro lado, o cantor e compositor country Woody Guthrie escreveu 26 músicas sobre Grand Coulee e nenhuma sobre Hoover.

E ainda voltei a tempo de assistir a um filme.

Esperando o trem por volta das 22h30, avistei – no topo de uma colina e cercado por torres de telefonia celular – uma grande bandeira americana elétrica, feita de lâmpadas vermelhas, brancas e azuis que brilhavam na escuridão.

A maioria das pessoas pega o trem para ir de um ponto a outro. Muitas que conheci em minha viagem de mais de seis mil quilômetros – a bordo de um vagão ou passeando na cidade – me perguntaram o que tinha me levado até lá. Depois que lhes contava, diziam, com alegria ou melancolia, que adorariam fazer a mesma coisa que eu estava fazendo. Algumas se ofereceram para ajudar com minhas malas, ou cuidar delas enquanto eu explorava o local, ou me dar uma carona para algum lugar que achavam que era muito longe para ir a pé. Eu tinha atiçado sua imaginação com minha jornada, e elas queriam fazer parte dela. E, de certa forma, fizeram.

Tudo isso me lembrou outro slogan antigo da Amtrak: “Há qualquer coisa em um trem que é mágica.”

Há mesmo. Ele o leva a lugares aos quais você não sabia que queria ir.

c. 2024 The New York Times Company

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