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Suspeitos de homicídio e medalhista olímpico: Rússia busca soldados onde quer que possa

Governo russo pressiona aqueles que considera que deveriam lutar com as forças armadas na guerra contra a Ucrânia

Internacional|Neil MacFarquhar e Milana Mazaeva, do The New York Times

Forças armadas estão recrutando pessoas com dívidas não pagas, imigrantes e até funcionários corruptos Nanna Heitmann/The New York Times

A Rússia já enviou várias levas consecutivas de soldados para a Ucrânia. Perdeu algumas de suas tropas mais experientes logo no início da invasão e em seguida mandou dezenas de milhares de condenados para as linhas de frente, sem parecer se importar se sobreviveriam.

Agora, ainda em uma tentativa desesperada de reunir efetivo suficiente para manter a pressão sobre a Ucrânia, o país ampliou ainda mais o escopo do recrutamento. Os homens (e mulheres) já não precisam ser condenados por um crime; segundo as leis novas, qualquer suspeito detido pela polícia é informado de que as acusações pendentes desaparecerão caso se voluntarie. As forças armadas também estão recrutando pessoas com dívidas grandes não pagas, imigrantes novos recorrentes capturados em operações e até funcionários corruptos.

De acordo com o serviço de imprensa do sistema judiciário de São Petersburgo, em um caso recente na cidade, dois homens foram detidos sob a acusação de contrabandear cerca de 200 quilos de cocaína do Peru, avaliados em cerca de US$ 30 milhões, no teto de um contêiner com mais de cinco mil caixas de mangas. As acusações foram retiradas depois que os dois assinaram um contrato para servir como fuzileiros em uma tropa de choque, informou o tribunal.

Jornais locais do país inteiro estão repletos de casos de supostos assassinos, estupradores e ladrões que, depois de assinar um contrato, vão para a guerra em vez de enfrentar um julgamento. “Eles podem matar pessoas, roubar um banco ou cometer qualquer outro crime e, depois, ir para a linha de frente. O governo está desesperado para arrebanhar pessoas. A taxa de baixas na linha de batalha é enorme”, disse Ruslan Leviev, analista militar russo.


Para evitar o recrutamento obrigatório, o Kremlin aprovou nos últimos meses uma série de medidas legais para ampliar o grupo de possíveis soldados. O esforço ganhou ainda mais importância no momento em que a Rússia tenta avançar sobre as linhas ucranianas antes que o presidente eleito Donald Trump tome medidas para encerrar a guerra assim que assumir o cargo, em 20 de janeiro.

De acordo com uma lei assinada em outubro por Vladimir Putin, presidente da Rússia, o processo de alistamento nas forças armadas pode começar assim que um caso criminal é aberto. O recrutamento de criminosos que teve início em 2022 era limitado àqueles já sentenciados a uma colônia penal.


Os devedores crônicos na Rússia inteira têm sido alvo de uma campanha concentrada do Serviço Federal de Oficiais de Justiça. Uma lei nova, que entrou em vigor em primeiro de dezembro, perdoa até dez milhões de rublos (quase US$ 100 mil) em dívidas e suspende os procedimentos de execução de quem aceitar ir para o combate. Isso inclui inúmeros homens com atrasos consideráveis no pagamento de pensão alimentícia.

As autoridades também têm feito operações em mercados, armazéns e estações ferroviárias, ou em qualquer lugar onde possam capturar imigrantes que tenham recebido a cidadania russa recentemente, mas que não se inscreveram no serviço militar. Quando são instruídos a apresentar os documentos no escritório de recrutamento local, alguns acabam sendo enviados rapidamente para a guerra.


É difícil medir a extensão dos alistamentos por esses diversos meios, uma vez que não há um registro nacional. O exército vinha recrutando por vias mais tradicionais – as agências de inteligência externas estimaram 30 mil pessoas por mês –, pagando bônus cada vez maiores a voluntários civis, mas os analistas acreditam que esses números estão diminuindo. Oferecer anistia também é uma alternativa mais barata. “Os voluntários civis são bastante caros, considerando todos os pagamentos prometidos. Os criminosos não recebem os mesmos incentivos”, observou Leviev.

Olga Romanova, diretora da Rússia Atrás das Grades, organização não governamental que defende os direitos dos presos, afirmou que o Estado russo está rompendo a ligação entre o crime e a punição, o que pode ter consequências desastrosas em longo prazo sobre as taxas de criminalidade. Ela forneceu um exemplo: “Se o escritor Fiódor Dostoiévski vivesse hoje, talvez precisasse revisar a trama de seu romance ‘Crime e Castigo’. Mesmo que a polícia encontrasse Rodion Raskólnikov segurando um machado pingando sangue, bastaria ele dizer ‘quero ir para a frente de batalha’ e a polícia responderia: ‘Está bem!’”

Na internet, os debates sobre as consequências de assinar um contrato em vez de enfrentar julgamento são intermináveis. Quando uma mulher perguntou em um grupo comunitário no Vkontakte, equivalente russo do Facebook, se seu marido deveria assinar um contrato militar, alguém comentou que ele ganharia dinheiro e limparia seu registro de antecedentes criminais. Em seguida, a pessoa acrescentou: “Mas recomendo que você procure um novo marido imediatamente, porque é improvável que isso termine bem.”

Segundo Romanova, um ativista da oposição e ex-promotor assinou um contrato porque acreditava que suas chances de morrer na linha de frente eram menores do que na prisão, considerando seu trabalho anterior de encarcerar criminosos. “As prisões russas estão entre os lugares mais horrorosos do mundo. As condições são terríveis. Normalmente, as pessoas escolhem o serviço militar porque na prisão você não é ninguém, não tem direitos. Na guerra, ao menos pode fazer alguma coisa, tomar certas decisões”, disse ela em entrevista.

Aqueles que se recusam a integrar as forças armadas costumam se deparar com investigadores que prometem deixá-los apodrecer na prisão David Guttenfelder/The New York Times

Os políticos e funcionários públicos presos por acusações de corrupção têm sido outra fonte de voluntários. Em Vladivostok, maior cidade russa no Oceano Pacífico, dois ex-prefeitos, assim como o diretor dos serviços funerários municipais e vários funcionários regionais, anunciaram que desejam servir em troca de liberdade. Oleg Gumenyuk, prefeito de 2018 a 2021, foi condenado por acusações de suborno, bem como seu antecessor, Igor Pushkarev, que ficou no cargo de 2008 a 2017. Igor Babynin, identificado na mídia de Vladivostok como “o rei do setor funerário”, foi condenado por suborno e desvio de recursos.

De acordo com analistas, alguns políticos acabam no Cascade, também conhecido como o batalhão “de luxo”, que permite que aqueles com conexões e dinheiro consigam evitar o combate. “Todas as fotos os mostram almoçando ou posando com um rifle, com o uniforme sempre limpo e novo, como se tivessem acabado de sair do banho”, comentou Leviev. Alguns políticos morreram na linha de frente, sobretudo os que foram alocados nas unidades de ataque Tempestade Z, compostas por ex-prisioneiros. Mas tendem a ser uma exceção.

Usar a guerra como “lavanderia” para limpar a reputação de alguém tem gerado críticas. “Um ladrão que roubou o Estado deveria estar preso. Talvez os assassinos e os estupradores consigam expiar seus pecados com sangue, mas os funcionários corruptos, não. Com um assassino, existe a confiança de que ele vai mesmo lutar, mas, com um funcionário, sem supervisão, não há uma garantia”, escreveu Aleksander Kartavykh, blogueiro militar, no Telegram.

Os imigrantes que adquiriram há pouco tempo a cidadania russa, na maioria dos casos trabalhadores das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, também têm sido alvo de recrutamento. Relatos em jornais locais do país inteiro descrevem as batidas que capturam dezenas de potenciais soldados imigrantes.

Na região de Sverdlovsk, um homem do Tajiquistão que havia adquirido um passaporte russo recentemente disse que, em sua comunidade, circulava o rumor de que perderia o documento se não se alistasse. No escritório de recrutamento, ele e alguns colegas receberam uma lista de documentos necessários. Quando retornou algumas semanas depois com os papéis, todos os imigrantes que estavam lá receberam uma convocação para o treinamento militar. Contou também – sob condição de anonimato, por motivos de segurança – que só foi liberado mais tarde, porque três ônibus não foram suficientes para transportar todos os homens.

De acordo com Romanova, policiais de várias regiões ganham um incentivo de cerca de US$ 100 por cada suspeito que recrutam, e em Moscou, onde há mais dinheiro, a quantia chega a US$ 500. Ela afirmou que os registros judiciais indicam que um em cada cinco suspeitos processados se torna soldado, mas que eles podem se alistar em qualquer momento do processo judicial.

Um anúncio de recrutamento do exército russo próximo a Ulan-Ude Nanna Heitmann/The New York Times

No total, a Rússia tem aproximadamente 106 mil vagas em suas colônias penais, e, embora as campanhas de recrutamento anteriores tenham reduzido a população de detentos para cerca da metade, agora as autoridades estão tentando preencher rapidamente as vagas vazias, esperando que os suspeitos prefiram lutar. Aqueles que se recusam, no entanto, costumam se deparar com investigadores que prometem deixá-los apodrecer na prisão.

Anos atrás, Andrey Perlov era capaz de caminhar mais rápido do que qualquer outro homem do mundo, e conquistou a medalha de ouro para a Rússia na marcha atlética de 50 quilômetros nos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992. Agora com 62 anos, Perlov não caminha muito. Está preso em uma cela na penitenciária de Novosibirsk, na Sibéria, desde março, acusado de desviar cerca de US$ 30 mil do clube de futebol em que atuava como diretor-geral.

“Os investigadores não apresentaram nenhuma prova pública, e, ao prolongar repetidamente sua detenção, o pressionam a ir para a Ucrânia. Para eles, a melhor opção é que ele vá para a guerra. O caso seria encerrado, e ninguém seria responsabilizado por ter cometido o erro de colocá-lo na prisão. Ameaçaram mantê-lo preso durante um ou dois anos, enquanto o caso avança. A atitude básica deles é: ‘Que vá para a linha de frente aos 62 anos; não importa, ele é um atleta’”, disse Alina Perlova, sua filha, em entrevista.

O Tribunal Regional de Novosibirsk não pôde ser contatado para comentar.

Se o Kremlin cobre os medalhistas atuais com dinheiro e presentes, como carros de luxo importados, nos primeiros anos da Federação Russa o presidente Boris Yeltsin presenteou Perlov com um relógio e o dinheiro para comprar um carro local da marca Lada, contou Perlova. A família de Perlov, incluindo a esposa e um filho, sobrevivia com sua pensão mensal de US$ 1.000, além de pequenos honorários que sua filha ganhava traduzindo literatura chinesa. Agora, suas contas estão congeladas.

De vez em quando ele vacila, pensando que deveria ir à guerra para que sua família consiga o dinheiro, apesar do perigo e do fato de que se alistar seria o mesmo que admitir culpa. “Digo a ele o tempo todo: ‘Pai, não, por favor. Vamos encontrar uma solução’”, contou Perlova.

c. 2025 The New York Times Company

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