O Prêmio Nobel de Literatura de 2024, concedido à escritora Han Kang em outubro do ano passado, é mais uma prova do enorme poder de influência do gigantismo cultural sul-coreano.Nos 123 anos de história do Nobel, Han é a primeira mulher sul-coreana e asiática a receber o prêmio literário de maior prestígio do mundo. Sua conquista veio na esteira do Oscar de Melhor Filme dado a Bong Joon Ho por Parasita, em 2020, bem como pelo sucesso popular de séries como Round 6, da Netflix, e artistas de K-Pop como BTS e Blackpink.O prêmio para Han, que é mais conhecida fora do seu país pelo romance A Vegetariana, foi apropriado, num momento em que as romancistas e poetas da Coreia do Sul florescem, mediante traduções, despejando uma onda de obras nas mãos de leitores no mundo inteiro.Mas, mesmo que sua vitória tenha sido celebrada como uma coroação cultural da Coreia do Sul, o que Han e outras escritoras representam é uma forma de rebelião contra a cultura sul-coreana, que continua profundamente patriarcal e, com frequência, misógina.Desde 2018, quando o Ministério da Cultura, do Esporte e do Turismo assumiu sua atual designação, apenas um dos seus dez diretores foi uma mulher. Até que se chegasse ao triunfo atual de Han, os círculos de críticos literários da Coreia do Sul, dominados por homens, defendiam o poeta Ko Un como o candidato mais provável ao Nobel e merecedor da honraria. Antes que surgissem as alegações de abuso sexual contra ele, repórteres locais se aglomeravam em frente à sua casa toda vez que o anúncio do ganhador do Nobel estava prestes a ser declarado. Han, por seu lado, nunca atraiu tanta atenção assim.Para ela e outras autoras sul-coreanas, escrever “é uma forma de dissidência e de resistência”, disse Bora Chung, escritora cujo livro de contos, Coelho Maldito, foi publicado em inglês em 2022 e em português em 2024. O livro de Chung foi um dos lançamentos de escritoras recomendadas no ano passado pela própria Han no The New York Times.A Coreia do Sul tem obsessão pelo reconhecimento internacional que advém de prêmios como o ouro olímpico e o Nobel. Até então, havia produzido apenas um ganhador do Nobel: o ex-presidente, Kim Dae-jung, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 2000, por sua luta pela democracia sob o regime militar e por seus esforços para construir a reconciliação e a paz com a vizinha Coreia do Norte.Aquele Nobel e o de Han estão profundamente ligados à tumultuada história moderna da Coreia do Sul, marcada pela divisão da Península Coreana, pela guerra, pela ditadura militar e por uma longa – e muitas vezes sangrenta – luta pela democracia e por direitos trabalhistas.Na Coreia do Sul, Han é mais conhecida por Atos Humanos, romance sobre o massacre de ativistas que lutaram pela democracia em uma insurreição popular, na cidade de Gwangju, promovida de 18 a 27 de maio de 1980, que resultou em cerca de 600 mortos.O governo de Park Geun-hye, presidente conservadora da Coreia do Sul, que foi eleita em 2013 e que governou até seu impeachment em 2017, colocou Han em uma “lista proibida” de escritores, artistas e diretores de cinema que eram considerados hostis e que foram impedidos de participar de programas de apoio promovidos pelo governo, conforme nos foi relatado por Kang Yu-jung, parlamentar da oposição.A lista nunca foi divulgada, mas Han foi banida porque a repressão brutal que ela registrou em Atos Humanos fora perpetrada por uma ditadura conservadora do passado, afirmou Kang. We Do Not Part: a Novel, romance ativista de Han, lançado em 2021, tratou de outro massacre civil que muitos sul-coreanos conservadores não queriam ver em um debate público. A Vegetariana, o livro mais lido de Han internacionalmente, é uma crônica de violência em uma escala mais íntima, de uma mulher oprimida na própria casa.Han disse que sua escrita se inspira em questões levantadas pela “violência humana” ao longo da história da Coreia do Sul e que o “sentimento de culpa” em relação ao consumo de carne, elemento-chave de A Vegetariana, está ligado ao massacre em Gwangju, sua cidade natal.Referindo-se ao seu processo de escrita em Atos Humanos, ela revelou: “O sentimento mais frequente que tive ao escrever o livro foi uma dor avassaladora. Chorei quase todo dia, enquanto escrevia o romance.”Na época do anúncio do prêmio dado a Han, seu pai, Han Seung-won, de 84 anos, que também é romancista, citou a violência em uma escala mais ampla. Em um encontro com jornalistas no sudoeste da Coreia do Sul, ele informou que a filha decidira não dar entrevista coletiva para discutir o Nobel. “Ela me disse que não quer comemorar num momento em que as pessoas morrem todo dia nas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio.”Embora o trabalho de Han Kang lide com uma carga histórica pesada, também pode ser visto como feminista. Em A Vegetariana, a decisão da protagonista de evitar comer carne pode ser entendida como um ato de resistência contra sistemas patriarcais.Como as mulheres ainda enfrentam discriminação na política, no mundo dos negócios e na mídia na Coreia do Sul, a literatura é uma saída para expressar suas capacidades. “É um dos poucos espaços em que você pode se libertar do estigma de gênero e escrever sobre todas as idades e todos os gêneros”, comentou Krys Lee, romancista que mora em Seul, capital da Coreia do Sul.Outras escritoras não demonstraram surpresa pelo fato de que, neste momento, uma mulher representa o poder literário da Coreia do Sul no cenário global. “As vozes mais fortes da literatura, mesmo quando era dominada por homens, vinham dos mais oprimidos”, observou Euny Hong, autora de The Birth of Korean Cool: How One Nation Is Conquering the World Through Pop Culture (O nascimento do cool coreano: como uma nação está conquistando o mundo por meio da cultura pop, em tradução livre). E acrescentou: “As pessoas em situação problemática e os grupos marginalizados precisam ter uma voz muito alta e clara ou não vão ser ouvidos. Isso sempre se refletiu na literatura”.Lee ressaltou que as leitoras também se tornaram mais poderosas no mercado literário sul-coreano nos últimos anos com o aumento do número de mulheres que trabalham. A ascensão internacional e dentro da Coreia do Sul do ativismo contra o assédio e a agressão sexual também criou maior interesse por vozes femininas. “Han pertence a uma geração de mulheres que cresceu sob o sistema patriarcal e também em um país com uma história moderna de violência. Seu trabalho fala sobre isso.”Muitos dos livros escritos por coreanas que estão sendo traduzidos para outras línguas – incluindo alguns que se inclinam mais para o comercial do que para o estritamente literário – abordam temas que, em geral, são considerados típicos das mulheres, como a maternidade ou a imagem corporal. São tópicos que refletem os interesses de muitas leitoras norte-americanas e britânicas.Entre os romances sul-coreanos que repercutiram internacionalmente estão Kim Jiyoung, Nascida em 1982, de Cho Nam-Joo, sobre uma jovem mãe dona de casa que tem um surto psicótico, e Por Favor, Cuide da Mamãe, de Kyung-sook Shin, sobre uma mãe martirizada que desaparece. Este último ganhou o Prêmio Literário Man Asian, em 2011.Ainda assim, os leitores parecem querer mais do que material feminista. “Estamos todos animados para ver diferentes tipos de histórias, e isso também se reflete nos vários gêneros que estão sendo escritos e traduzidos”, disse Chi-Young Kim, tradutora de vários romances sul-coreanos para o inglês, incluindo Por Favor, Cuide da Mamãe.“Há 30 anos, um trabalho muito literário era traduzido para o inglês. Agora, ficção científica, fantasia e memórias estão alcançando o mercado internacional”, afirmou Kim. Para ela, a maior limitação é o número de tradutores. O financiamento governamental para educação cultural e artística nas escolas diminuiu nos últimos anos. “Precisamos de mais tradutores para poder trazer toda a diversidade e a incrível amplitude da literatura coreana para o inglês e outras línguas.”A comunidade literária da Coreia do Sul e os membros de sua diáspora internacional esperam que a vitória de Han no Nobel de 2024 atraia os holofotes para os livros da mesma forma que os filmes e programas de televisão tornaram as histórias sul-coreanas tão populares nesses meios. “Os filmes coreanos foram os primeiros a fazer com que as pessoas reconhecessem que somos ótimos contadores de histórias”, comentou Hong, acrescentando: “O prêmio dado a Han vai trazer uma nova apreciação da alta cultura coreana, porque, até então, era um país conhecido por produzir cultura popular. Mas não somos só uma nação de cultura pop. Também somos uma nação de ideias. É uma espécie de revelação: ‘Ah, veja! A Coreia não produz só filmes e bandas; também tem uma riqueza literária incrível.’”c. 2025 The New York Times Company