Fotografia ameniza sofrimento de mães que perderam bebês no parto
Grupo de BH registra o amor e a dor da perda gestacional, acolhendo as famílias; para essas mães, apesar do tabu, é preciso falar sobre o luto materno
Minas Gerais|Luíza Lanza*, do R7
Mostrar que nos momentos de dor também existe muito amor. Foi com esse objetivo que Paula Beltrão especializou seus trabalhos na fotografia de parto há quase 10 anos. A fotógrafa de Belo Horizonte foi uma das primeiras do país a apostar no universo das fotos de recém-nascidos.
Mas o parto humanizado e o protagonismo feminino registrado no trabalho de Paula logo esbarraram em um tabu da medicina: a perda perinatal. A dor silenciosa e, muitas vezes, invisibilizada das mães que perdem seus filhos nas semanas finais da gestação fizeram a fotógrafa questionar a estrutura que estava acolhendo essas mulheres.
— Desde que ingressei no universo da fotografia de família e de parto, muitas vezes a gente via coisas dentro dos hospitais que não eram momentos só felizes. A gente percebia mães que perderam filhos no mesmo ambiente em que a gente estava ali registrando um nascimento. E isso sempre nos fez questionar muito.
A perda gestacional é um tema que quase sempre fica restrito aos médicos e as famílias que passam por essa dor. Foi querendo jogar luz sobre esse assunto que Paula, que já trabalhava com bebês com síndromes raras, disponibilizou suas fotos voluntariamente para incentivar as mães a fazerem o registro dos filhos natimortos.
— Comecei a fazer esse registro e a mostrar para essas mães que, independentemente do tipo de história que elas têm, essa seria a história da vida dela. E aquele bebê faria parte da vida dela para sempre.
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Com a divulgação nas redes sociais, as pessoas que enfrentam essa situação começaram a ver que não estavam sozinhas. E Paula, que também não era a única a questionar o acolhimento às gestantes, encontrou mulheres que, assim como ela, estavam dispostas a amenizar a dor do luto.
Mãe de anjo
Em 2017, Mônica Nardy, uma das obstetras que trabalhava junto com a Paula, viu-se desamparada após sofrer um aborto espontâneo na 38ª semana da gestação de sua segunda filha, Cecília. Em uma gravidez que evoluiu bem, do dia para a noite, a médica sentiu que o bebê havia parado de mexer.
Ao chegar na maternidade, desde o procedimento do diagnóstico até o parto, Mônica teve apenas dez minutos. Sem tempo e sem orientações, para ela ficou evidente o despreparo da medicina para lidar com essas situações.
— A impressão que eu tinha era que todo mundo queria acabar com aquilo o mais rápido possível, como se estivessem abreviando a minha dor. Mas essa dor não tem fim. Tudo aquilo ali não tinha fim. E olha que eu sou obstetra e um monte de coisa as pessoas fizeram para me poupar.
Mas não falar dessa dor não faz com que ela não exista. A psicóloga Daniela Bittar cruzou o caminho da Mônica logo após a perda. Após 10 anos na Austrália, a profissional especializada em atendimento familiar e puerperal percebeu que o Brasil estava extremamente distante da humanização entre mãe e bebê; tanto na vida, quanto na morte.
— É um assunto completamente de descaso. A mulher não tem o reconhecimento dessa morte prematura nem pelos familiares, menos ainda pela sociedade. Ela passa por isso sem reconhecimento dessa criança.
A má condução desses casos e a falta de um ritual de despedida, segundo ela, provocam um luto patológico que pode prolongar o sofrimento.
— Uma mulher que sai do hospital sem nenhuma lembrança do filho, sai em uma condição vulnerável e fragilizada. E, ainda por cima, ela sai com os peitos cheios de leite. Ela vai para casa viver um puerpério solitário, não reconhecido e extremamente doloroso. Mas o luto materno tem fim? Quanto tempo dura um filho?
Ciente de que vai ser para sempre a mãe da Cecília, além de mãe da Laís e do Túlio, seus outros dois filhos, Mônica reforça que falar sobre isso faz com que essa maternidade seja reconhecida. Agora, ela é, como carinhosamente fala, “mãe de anjo”.
— Se eu conto para as pessoas que eu tenho três filhos elas me olham assustadas. Mas como não contar? Eu gestei, eu pari.
Grupo Colcha
Apesar da dor, Mônica conseguiu ressignificar a breve passagem de sua filha: junto às fotografias da Paula e ao trabalho de doulas e psicólogas, surgiu o Grupo Colcha. Uma rede de apoio voluntária que acolhe e une pessoas que passaram pela perda gestacional e neonatal, dando orientações sobre os procedimentos médicos e legais aos quais têm direito aquelas famílias.
Além das fotos, o Colcha realiza encontros mensais para que as famílias possam se conhecer e trocar experiências. Com essa rede de apoio, as reuniões ajudam, também, na elaboração do luto. É o que explica Daniela.
— Ninguém quer falar sobre isso, mas toda elaboração do luto passa pela fala. Quando a mulher entra no luto, ela quer falar sobre o filho que ela perdeu. Mas quando é um bebê, ninguém quer conversar com ela sobre isso. Esses grupos, além de trazer apoio e validar essa dor e sofrimento, promovem a partilha.
Medo do esquecimento
O trabalho do Colcha mudou a história de Fernanda Pinheiro naquele mesmo ano, quando ela recebeu o diagnóstico de trissomia do cromossomo 18 em sua 15ª semana de gestação. A Síndrome de Edwards é classificada pela medicina como incompatível à vida: o médico de Fernanda a avisou que 90% dos bebês com a doença rara morrem ainda na barriga, 9% durante o parto e 1% em poucas horas.
Já que o filho tinha poucas chances de sobreviver, Fernanda queria o parto natural, para poder ficar o maior tempo possível com o bebê. O desconhecimento da síndrome, porém, fazia aquela mãe questionar como seu neném viria ao mundo.
Mas título de incompatível à vida não cabe ao pequeno Miguel. Apesar dos prognósticos, ele veio ao mundo vivo na 42ª semana de gestação, em 6 de dezembro de 2017. As duas horas em que viveu foram tempo suficiente para que ele encontrasse com os pais que o esperavam ansiosos e transformasse para sempre a vida daquela família.
—Tudo que eu pedi a Deus naqueles nove meses foi para que ele nascesse vivo, para gente poder se olhar, pelo menos um minutinho. E ele nasceu vivo, com o olho bem aberto, olhando muito para mim. Toda a família carregou ele, todo mundo conheceu. Eu senti muita paz, muita gratidão por ele ter nascido vivo, por não ter sofrido.
Foi nesse processo que, no meio da gestação, Fernanda trocou de médica e conheceu o trabalho do Grupo Colcha. O que em um primeiro momento lhe causou estranhamento, logo se transformou em admiração.
— Eu fiquei meio horrorizada no início. Como assim vou fazer fotos do meu filho morto? Mas na hora do parto, eu nem pensei em nada. A Paula foi superdiscreta, apoiou minha família o tempo inteiro. E beleza. Eu nem imaginava o que estava por vir. No outro dia, quando ela me mandou algumas fotos, eu fiquei horrorizada foi com a lindeza do trabalho e com o tanto que aquilo era importante para mim.
A possibilidade de olhar o Miguel acalmou o coração dessa mãe para o seu maior medo: o esquecimento.
— É tudo tão intenso na hora que a gente não consegue lembrar dos detalhes. Eu tinha muito medo de esquecer como ele era, o rosto dele, como tudo aconteceu. E na hora que eu vi aquelas fotos eu tive a certeza de que nunca ia esquecer, cada vez que eu vejo eu lembro de tudo. E foi uma forma muito importante de viver o luto. Depois, quando dava a saudade dele e da barriga eu ficava horas vendo as fotos. Foi muito acolhedor para mim.
Dias depois Fernanda recebeu uma caixa, com todas as fotos impressas. Nela, além dos registros fotográficos, o Colcha entrega às famílias pequenas recordações para acolher ainda mais aquele momento: uma pequena mecha de cabelo, uma carta, as pegadas do bebê marcadas com tinta em um papel. Para Daniela, esse material dá para a mãe um lugar onde chorar.
— É materializar a criança. Antes do filho nascer no mundo, ele nasce na mãe. E o que ela guarda disso? É muito saudável que ela tenha algo palpável. Ela precisa de algo para se segurar para não se sentir uma louca. Quando a mulher tem a foto dessa criança, ela olha e pensa “minha dor faz sentido”. Teve um bebê ali.
*Estagiária do R7 sob a supervisão de Lucas Pavanelli