Sem nostalgia, mas bons tempos aqueles em que os furtos eram o que mais se praticava em crimes conta o patrimônio, e os ladrões nada mais exibiam do que a destreza, habilidade que dificilmente cedia à violência, marca registrada da selvagem bandidagem contemporânea. Não ousaria dizer que eram tempos românticos, quando predominavam batedores de carteira, se comparados com os de hoje. Esse tipo de ladrão foi desaparecendo: os homens tinham o hábito de levar a carteira com dinheiro no bolso de trás da calça. O furto se classificava como “punga”. Esse ladrão, portanto, era o “punguista”. As calças apertadas expulsaram as carteiras dos bolsos. Um desses personagens da época que não existe mais, intrigou-me por ser extremamente diferenciado e inteligente: o lendário Gino Meneghetti. Claro, outros tempos significam outro tipo de sociedade, outro tipo de vítimas, outro tipo de Justiça, outro tipo de Polícia, outro tipo de comportamento social, outro tipo de tudo. Outros costumes. Outros criminosos, outras vítimas. Os jornaleiros gritavam pelas ruas as manchetes sobre o mito. A lenda no lugar da realidade, conduzindo a fantasia, proezas com as quais o povo se deleitava. Conversei algumas vezes nas prisões por onde passou. Tive a impressão de estar diante de um filósofo do crime que pretendia ser visto como uma espécie de vingador social.Lombardi: Graças a diretor, preso vê mãe morta e se regeneraPercival: Descobri que o Esquadrão da Morte planejou meu assassinato Para alguns, seria nosso Arsène Lupin, o personagem de Maurice Leblanc, famoso como “ladrão de casaca”, um gentleman inteligente, em contraponto literário com o Sherlock Holmes, de Conan Doyle. Um artista do crime, que considera o que fazia uma verdadeira arte. Para outros, Gino encarnava uma versão à brasileira de Robin Hood. Nem um ou outro, porém. Mesmo porque foi Gino quem me disse, na prisão: “não sou filantropo, sou misantropo”. Fato interessante é que, dos cinco filhos, um se chamava Spartacus, o escravo que desafiou o Império Romano, e outro Lenine, o revolucionário russo e que nasceu um ano depois de 1917. Percebe-se, de qualquer modo, que não era um ladrão qualquer — hoje, muitos se sentiriam tentados a ideologizar e afirmar que Gino talvez fosse uma espécie de bandido social. Nos chamados anos de chumbo, um subversivo. Ou anarquista: ele gostava de dizer que a polícia é formada por “lacaios dos ricos”. Se Gino pudesse ser punido pela prisão somente após decisão judicial em segunda instância, como tanto se discute hoje, não mofaria tanto tempo na cadeia como impiedosamente amargou. Nos devaneios jurídicos atuais, seria visto como autor de crimes de menor potencialidade ofensiva. Teve vida longa, morreu aos 99 anos de idade, e desse quase século passou mais da metade na prisão, sendo inacreditáveis dezoito deles isolado numa cela-forte, sinônimo de medieval isolamento absoluto. Sem receber visitas. Tranca total. Jaula humana. A cela de Gino servia como atração para visitantes curiosos da Penitenciária do Estado, uma das obras arquitetônicas de Ramos de Azevedo. Queriam olhar para Gino como se fosse um bicho no zoológico humano. Gino abria a pequena fresta da cela, urrava, jogava fezes indignado. O bicho-homem gritava: “Io sono uomo!”. Chegou a São Paulo em 1913. Era chamado pela imprensa da época por “Rei dos Telhados”, naqueles tempos que ladrão usava desse recurso para caminhar de uma casa para outra, era o máximo que um ladrão podia se permitir. Também foi classificado com o “O homem das pernas de mola”, o que equivaleria a saltitar entre as telhas das casas com habilidade circense. Tinha chegado ao Brasil partindo de Gênova, aos 35 anos de idade, a bordo do navio Tomaso di Savoia. Sobre ele, chegaram seríssimas recomendações policiais: “pericuoloso pregiudicato condanato numerose volte por reati alla proprietá e per oltraggio e violenza agli agenti della forza publica”. Por aqui, as advertências se materializariam nos furtos à casa do deputado Francisco Junqueira, na casa de Eduardo Matarazzo (de onde subtraiu duzentos contos de réis) e outros, muitos outros. A Polícia, para incriminá-lo com mais rigor, acusou-o de matar o comissário Ademar Dória, do antigo Gabinete de Investigações, que ficava na rua dos Gusmões. A Polícia procurava Gino, já uma lenda, por toda parte. O procurado abrigou-se onde ninguém poderia imaginar, totalmente acima de suspeitas: um hotel nas proximidades do Gabinete! Localizado, houve um corre-corre pelas ruas Santa Ifigênia e dos Andradas. Mas como Gino teria matado Dória se o policial foi alvejado nas costas e Gino, correndo, estava à sua frente? Um delegado de polícia ficou estigmatizado com o nome completo de Gino. Ele, linha de frente na Polícia, se chamava Rubens Amleto Liberatori. O sobrenome de Gino era Amleto Menegheti. Por causa de Gino, o delegado Rubens eliminou o Amleto do sobrenome. Passou a assinar Rubens A. Liberatori. Uma forma de fugir do sobrenome que achava maldito.GOLPES BAIXOS DA POLÍCIA Em tempos de foragido, para a Polícia, como ainda acontece hoje, os fins são pretextos para justificar os meios. Sem leitura de Maquiavel e seus conselhos ao príncipe, ela queria chegar de qualquer jeito ao rei dos ladrões. E levou para o Gabinete de Investigações, mantendo-os ali, dois meninos, filhos de Gino: Luís, 8 anos de idade, e Antonio, seis. A ideia: capturar o ladrão pelo coração. As crianças, que não mentem, revelaram o que a Polícia queria muito saber: Gino tinha o hábito de visitar, de vez em quando, parentes no bairro do Brás. Depois de algum tempo, os meninos foram liberados. Gino, vencido pelas saudades, foi visitá-los. A Polícia o esperava. Fácil assim, mas a Polícia valorizou a prisão com uma ficção: anunciou que ele resistira a um cerco policial durante dez horas, enfrentando sozinho 200 homens armados, somente se entregando depois de esgotar suas munições. Do episódio, Gino, atormentado pelo sofrimento de seus meninos, passou a nutrir ódio pelo chefe dos inspetores da Delegacia de Furtos e Roubos, Pedro Capua. Chegou a pensar em matá-lo. A longa permanência no cárcere não permitiu. O delegado Coriolano Cobra, hoje nome da Academia da Polícia Civil, fez um relatório, em 1954, para a Justiça. Recomendava que se aplicasse a ele “as medidas de segurança cabíveis para quem já demonstrou ser elemento perigoso e indesejável ao convívio social”. No ano seguinte, o delegado Wanderico de Arruda Moraes, diretor da Casa de Detenção, vendo Gino todos os dias, relatou em sentido contrário: “É despido do natural rancor, nem mesmo dos seus algozes procurou vingar-se. Por que lhe atribuem a celebridade que não merece? Que se pretende? Não é ele um psicopata. Digam-no os que com ele privam em sua cela e os demais presidiários”. Para o delegado Wanderico, que terminou seus dias na cidade de Jaú, Gino fora uma “vítima da incompetência das instituições e das incompreensões dos poderes da sociedade”. Em 1958, o Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, possuía uma Delegacia de Estrangeiros, com um Setor de Expulsandos. O delegado José Carlos Franco , também relatava, intrigado: “A Polícia tem de atender aos casos concretos, que exigem “um saber de experiência feito”, como se expressou o grande poeta Luiz de Camões. Sabendo as causas, a sociedade poderá empenhar-se em diminuir os crimes e eliminá-los, se possível, em benefício de todos”. Criminologia pura. Naqueles tempos, a Polícia possuía intelectuais. Gino morreu na manhã de um domingo. O ocupante das celas 504 e 510 da Penitenciária lavava a comida na privada da cela, para tirar o sal e porque temia ser envenenado. Fazia ginástica diariamente, sendo capaz de atingir o teto da cela com os pés, como se tivesse molas. Levou os segredos sobre quem penhorava para ele joias na Caixa Econômica, todas furtadas. Ladrões de seu estilo sumiram. Em vez de saltos e entradas nas casas pelos forros e janelas, o revólver na mão. Pediu para ser cremado, “não quero ser comido pelos vermes”. Confesso: antes de conversar com Gino, não sabia o que quer dizer misantropo. O que ele dizia ser. Fui ao dicionário: aquele que tem ódio ou aversão à sociedade. Antropófobo. Melancólico, prefiro. Sábio Gino. Não precisou de terapia para se descobrir quando se encontrou consigo mesmo, nos longos dias de solidão.