A cada conversa, uma nova história — e a certeza de que o agro está realmente em tudo.Recentemente, conversando com uma colega da área da saúde, ela comentou comigo que eu precisava conhecer a Valéria Guimarães — médica endocrinologista, renomada no Brasil e no exterior. Eu ouvi com atenção, claro, e esperei o final da conversa para entender qual seria a ideia de pauta para o blog.Depois, assisti à apresentação da Valéria no último congresso da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia — e aí tudo fez sentido.Ela começou sua palestra contando que, além de médica, é pecuarista. E eu me encantei.Consegui uma brecha na agenda da médica e pecuarista — cujo o legado da família na pecuária foi homenageado nesta sexta-feira na ExpoZebu, a maior feira de pecuária do mundo — para conhecer mais sobre a história brilhante, bonita e apaixonante de uma família comprava o gado que chegava na Bahia e levava para o sudeste e centro-oeste.Tudo começou com o bisavô dela, Salviano Guimarães, que iniciou a criação dos primeiros zebuínos mochos do país, selecionados nas muitas comitivas que liderou, comprando e vendendo gado pelos rincões do Brasil. O trabalho foi seguido pelos filhos e netos, que continuaram a seleção a olho nu — observando carcaças, resistência e peso.Essa seleção cuidadosa foi ganhando forma ao longo do tempo, especialmente no plantel de Nelinho Guimarães, que conquistou espaço, reconhecimento e diversas premiações na ExpoZebu.Mundo Agro: Na sua apresentação no congresso do ano passado, você mencionou que é filha de boiadeiros, nasceu na cidade, vivia no campo nos finais de semana e estudou Medicina. Pode nos contar um pouco sobre a história dos seus antecessores?Valéria Guimarães: Eu sou bisneta de boiadeiro, neta de boiadeiro e filha de boiadeiro. O que eu quero dizer com isso é que a pecuária está no nosso DNA. Todos os meus antecessores tiveram a pecuária como atividade primária. Todos eles tinham um vínculo enorme com a terra e com os animais. E a função primordial do pecuarista estava sempre com o sexo masculino. A mulher era sempre aquela que dava apoio ao marido.A partir, eu acho, da geração do meu avô, e do meu pai também, começou essa ideia de que a mulher não deveria ficar na fazenda. Ela deveria ir para a cidade, estudar e arrumar um casamento. Porque o filho mais velho, o filho homem, nesse legado da sociedade, é quem tocaria a fazenda. Era visto como um trabalho árduo, pesado, que exigia muita força, e que só o sexo masculino poderia fazer.Assim foi comigo. Eu nasci em Brasília, na capital da República, em plena revolução, em 1964. Mas a gente vivia na fazenda todos os fins de semana, acompanhando meu pai. Minha mãe também sempre deu muita força a ele. Mas eu estudei. A ideia do meu pai era que eu me tornasse médica — talvez um sonho dele que nunca conseguiu realizar, embora ele amasse a pecuária.Então, quem iria tocar a fazenda seria o meu irmão. Nós éramos três: um homem e duas mulheres. Mas a vida levou meu irmão aos 16 anos. E aí ficamos nós duas: eu e minha irmã. As duas já com as profissões definidas — minha irmã, agrônoma, e eu, médica. Meu pai se viu, acho que sem sucessor. Mesmo assim, muito apaixonado pela fazenda, pela atividade, com enorme sucesso.Ele é um dos pilares da raça Tabapuã no Brasil. Na verdade, é um dos berços — o berço goiano do Tabapuã. Meu bisavô foi responsável pelo mocho no país inteiro. É o mocho nacional, o mocho goiano, de onde depois derivaram outras raças mochas, inclusive o Tabapuã, de onde somos esse berço goiano.Mundo Agro: Você sempre quis ser médica? O que motivou a escolha pela endocrinologia? Qual foi o maior desafio que você enfrentou na Medicina até hoje?Valéria Guimarães: Eu me casei e foquei na Medicina. Tornei-me endocrinologista, acho que por vocação — por exemplo, de um tio meu também, que era endocrinologista e um ótimo médico. Fiz uma carreira, posso dizer com certa humildade, brilhante na minha área. Consegui chegar aos degraus mais importantes que uma pessoa pode sonhar.Fui presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, com inúmeros feitos para a saúde pública do nosso país. Também ganhei prêmios internacionais. Um deles foi muito importante — é considerado quase como um “prêmio Nobel” da endocrinologia — da Sociedade Americana de Endocrinologia. Participei e ainda participo de várias associações internacionais: Americana de Endocrinologia, Americana de Tireoide, Latino-Americana de Tireoide, Internacional de Endocrinologia… e exerço papéis em várias comissões executivas dessas sociedades.Então, eu sou muito realizada, muito realizada mesmo, na minha vocação como endocrinologista e especialista em câncer de tireoide.Mundo Agro: Quando precisou assumir a fazenda?Valéria Guimarães: Eu só voltei quando precisei assumir a figura do meu pai, que sabia de tudo. Uma das coisas que eu sempre falo para os futuros sucessores é que eles serão sucessores — mesmo que ainda não saibam — e que, se sentirem qualquer coisa relacionada à sucessão, grudem nos pais, grudem naqueles que podem transmitir esse conhecimento.Hoje eu sinto muita, muita falta. Gostaria muito que meu pai estivesse do meu lado, me dizendo: “Filha, olha, é assim, é assado.” Porque, na verdade, tive que aprender tudo na marra. Graças a Deus, encontrei verdadeiros anjos na minha vida que me ajudaram em vários setores — para entender o funcionamento, a dinâmica da fazenda, a pecuária moderna, a pecuária de precisão, o uso de novas tecnologias.Hoje a gente usa tudo que há de mais novo aqui na fazenda. Porque, além de termos a vibe da Medicina com a tecnologia, aprendemos a usá-la com muita precisão, para não ter desperdício.Quando herdei a fazenda, a pergunta que me fiz foi: “O que é que eu vou fazer? O que é que eu posso contribuir para a pecuária nacional? Qual vai ser o meu tijolinho?” Porque cada um dos meus antecessores contribuiu muito. Cada um deixou um registro nos livros da história do Zebu. Esses livros estão na ABCZ, no museu. E eu pensei: “Poxa vida, e agora?” Eu sou a primeira mulher, quarta geração. Brinco que sou o primeiro capítulo do quarto livro, da quarta edição.Então, o que é que eu vou fazer de diferente para honrar tudo que eles fizeram e dar continuidade, para poder passar o bastão para a quinta geração?Mundo Agro: Quais são os maiores desafios hoje em ser pecuarista? Apesar do Brasil ser o maior exportador de carne bovina, o que precisamos melhorar? O que ainda falta?Valéria Guimarães: Quando assumi, a grande questão que surgia era: por que vendíamos carne — e muita carne, éramos campeões em exportação — mas a vendíamos a um preço baixo? E mais: por que vendíamos uma carne classificada como commodity?E por que a gente não podia inverter isso? Ser os campeões, sim, mas vendendo uma carne de qualidade nesse nosso país? Uma carne verde, a pasto, sustentável — nosso lugar aqui é todo de pasto. Isso me incomodava muito: por que somos assim? Por que não estamos ganhando dinheiro de outras formas?Foi aí que conheci um grupo espetacular que me adotou: o grupo da Confraria da Carcaça do Nelore. Apesar de criarmos Tabapuã, eles nos adotaram porque viram que o nosso trabalho era muito sério, muito bem feito, muito metrificado — e já estávamos tendo resultados muito rápidos, fazendo ultrassonografia de carcaça no nosso rebanho.A primeira coisa que fizemos foi inventariar esse rebanho todo. E, ao inventariar, descobrimos um verdadeiro tesouro: mais de 16% das nossas matrizes carregavam o gene para o marmoreio — o gene da carne de qualidade. Então, não só nosso gado tinha genes para produzir muita carne, com animais precoces e boa cobertura frigorífica, mas também carne de qualidade, aquela carne com marmoreio.Com isso, conseguimos estudar uma série de mecanismos e tentar responder perguntas que sempre nos intrigaram. Por exemplo, nossas vacas, na época da seca, não murchavam. Continuavam bonitas. Você passava por várias fazendas e, de repente, chegava na nossa: as matrizes eram completamente diferentes das outras. Isso sempre me encucou.Depois, com a ultrassonografia de carcaça, descobrimos que nosso gado já vinha sendo selecionado lá atrás para ter habilidade materna, para resistir a períodos de estresse e carência alimentar. E o marmoreio, provavelmente, é responsável por sinalizações hormonais que dizem à fêmea: “Você vai atravessar um período de seca. Vou te dar um pouco de energia para ovular. Você não pode se autoconsumir. Vai gerar e amamentar bem seu bezerro.”Hoje sabemos que o gene do marmoreio está altamente correlacionado com essa habilidade materna: a fêmea que ultrapassa períodos de seca e estresse em boa condição corporal. Estudando isso, fui buscar a história: como meu bisavô selecionava? Como meu avô selecionava? E cheguei à história da importação do gado no Brasil.Mundo Agro: A frase “minha filha, é mais fácil engordar um boi do que emagrecer o povo” ficou famosa. Em qual contexto seu pai fez essa afirmação?Valéria Guimarães: Resumindo, provavelmente são fenômenos epigenéticos que, pela seleção natural, favoreceram os animais sobreviventes trazidos da África para o Brasil. Eles vieram na época da colonização para ajudar na lavoura de cana no Nordeste e também na pecuária, puxando carga, transporte.Esses animais ajudaram as comitivas a desbravar o Brasil. Meu bisavô era comerciante. Ele trazia esse gado — provavelmente desembarcado na Bahia, no Recife — e comprava esses animais que vinham da África, muitas vezes nos mesmos navios que transportavam escravos. Imagine as condições… sem higiene, longos trajetos, eles chegavam muito magros.Meu bisavô comprava esse gado e descia vendendo pelo Sudeste, chegando até a Bolívia. Grandes comitivas, dois mil animais. No caminho, esses bois cruzavam, e às vezes nasciam bezerros mochos. O gado mocho era desvalorizado: não chegava na água, não chegava na ponta do capim, chegava machucado. Ninguém queria. Meu bisavô ficava com eles.Os que sobreviviam, ele deixava aqui na fazenda, em Planaltina. E a surpresa era que, quando voltava, esses animais tinham explodido em ganho de peso. A explicação é que, saindo de um ambiente de estresse e entrando num de fartura, eles engordavam rápido. Isso virou o grande negócio dele. Enriquecia com um gado barato que ninguém queria. Vendia muita carne — que era escassa, cara, carne seca, aquela “debaixo da rédea”.Ele ficou rico. Teve o primeiro automóvel de Goiás, uma linha telefônica direta com o governador, abriu estradas, tinha uma hidrelétrica. Um homem visionário. E então voltei nessa história para entender por que nossas “vaconas do seu Nelinho” — meu pai — não emagreciam na seca. E isso me levou a estudar o marmoreio como reserva de gordura e energia.Temos animais aqui que você pode deixar dois dias sem comer e eles não emagrecem. A gente brinca: é o “car negativo” — aquele animal que come pouco e engorda muito. É o desejável na fazenda.Mundo Agro: No congresso, você explicou sobre a reserva de gordura que o gado tem para enfrentar períodos de seca. Essa reserva é a responsável por deixar a carne mais saborosa e marmorizada? Poderia detalhar mais sobre isso?Valéria Guimarães: O marmoreio é a gordura entremeada entre as fibras musculares, que dá maciez e suculência à carne. Mas, além disso, ele funciona como reserva energética para a fêmea enfrentar períodos de escassez.A gordura marmorizada pode, sim, estar ligada a mecanismos hormonais que ajudam na ovulação, na manutenção da gestação e na amamentação. Esses animais têm uma inteligência metabólica que os faz poupar energia e usá-la de forma eficaz. Isso tem um paralelo interessante com o ser humano.Mundo Agro: A dificuldade de muitas pessoas em emagrecer atualmente é resultado de uma combinação de questões genéticas, hábitos alimentares e falta de exercício. Muitos buscam soluções rápidas, como medicamentos, para perder peso, em vez de adotar uma mudança no estilo de vida. Não seria isso uma busca pela imagem ideal imposta pela sociedade? E as pessoas que estão acima do peso geralmente só procuram ajuda quando as taxas de saúde já estão comprometidas, não é?Valéria Guimarães: A gente sempre culpou a falta de atividade física, ou alimentação inadequada, ou que o paciente não estava lembrando tanto do que ele comeu, ou ansiedade, etc. e tal. Mas eu quero te dizer, com todas as letras, que foi aqui na fazenda — que eu já respeitava muito o meu paciente — que definitivamente a gente consegue ver que existem... existe isso mesmo! Existem animais que comem muito pouco e ganham muito peso, e existem animais que comem demais e não engordam nada. E são esses os animais que dão prejuízo e precisam ser eliminados.Então, voltando à história da porteira: essa voz me levou a uma porteira em que, de um lado, eu precisava emagrecer as pessoas, os pacientes. Precisava prevenir a puberdade precoce, precisava promover a longevidade e muita saúde nesses pacientes. E, do outro lado da porteira, era completamente o inverso. Eu precisava engordar rápido os animais, precisava promover a puberdade precoce nesses animais para que o projeto e a atividade fossem rentáveis e duradouros, e abater rapidamente aqueles que não estivessem dando lucro.Então, a endocrinologia acabou me servindo pelos conhecimentos que eu tinha. Eu não só fiz endocrinologia na USP, mas fiz também doutorado em Chicago e fui pós-doutorado. Então, todas essas métricas que você aprende com a ciência, eu acabei usando muito para dentro da porteira — da porteira para dentro — na pecuária.Fique por dentro das principais notícias do dia no Brasil e no mundo. Siga o canal do R7, o portal de notícias da Record, no WhatsApp