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A Estrela D'alva tomou conta do céu na quarentena

Como arquiteto, enquanto conduzia o cão, contemplava a maneira inteligente com que os prédios foram construídos no bairro bucólico

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7

Quando criança, ele costumava olhar as estrelas. O céu era límpido naqueles dias, não havia tanta poluição, como nos últimos anos. O que tem havido, isso sim, é um clima de filme de ficção, para além das máscaras e dos estabelecimentos vazios.

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O homem saiu apenas para caminhar com seu lindo cão. Um golden, de olhos volumosos, feição doce e pelagem macia e dourada. Na rua tranquila, sorviam o murmúrio da brisa, enquanto andavam em ritmo sincronizado.

De repente, as passadas suaves do cão começaram a ter um estranho sentido. Nestes tempos de filme de ficção na vida real, tudo é possível. Era como se os passos converssassem com ele, tentassem lhe dizer algo.


Foram subindo a rua nesta conversa sem palavras. Como arquiteto, contemplava a maneira inteligente com que os prédios foram construídos no bairro bucólico. Sem tirar o clima campestre, disfarçados de árvores gigantes feitas de concreto.

No i-pod, o rock suave de Alice Cooper o fazia voltar no tempo, com "You and Me". Eram ele e seu cão, conversando com a noite.


No momento em que o trecho entoou "O que nós somos é o que somos" ("What we are is what we are"), ele parou na esquina.

De um lado, uma antiga e grande casa se mantinha lá, resistindo à onda de prédios modernos com canteiros cheios de plantas.


Estavam em frente a um desses prédios, de amplas colunas na entrada. Acompanhados por árvores e ruídos distantes.

Então olhou para cima, como nos velhos tempos. Por causa da quarentena, pôde ver melhor as estrelas.

E, acima da árvore, no vão entre dois prédios, viu uma luz brilhante, cheia de vida, como um pequeno ponto de energia fixo e inesgotável.

Vênus resplandecia nas alturas, como quando ele era criança.

O planeta Vênus, que tem ficado mais próximo da Terra neste período, é conhecido como a Estrela D'alva.

Era para ela, como se fosse a mãe do universo, que ele olhava quando buscava a esperança na meninice.

Aqueles raios alimentavam essa sensação e, no momento em que se sentia ameaçado, bastava desviar os olhos para cima e receber aquela mensagem de luz, sempre ao som de uma música dos anos 70. Via, na tela da noite, como a vida deveria ser.

Nunca mais havia se deparado com uma emoção assim. Ainda menino, ela o revitalizava. O fazia acreditar em uma vida repleta de sucessos, idealizada. Onde só encontraria amigos, compreensão e braços abertos.

Não, não foi bem assim. O mundo real foi distanciando ele daquelas vivências.

Assim como o céu foi se preenchendo de poluentes que ofuscavam suas constelações.

Claro que as vitórias vieram, o amor pela esposa, pelo filho, pela arquitetura, por familiares. O prazer de estar com amigos e colegas. Junto com elas, contudo, deparou-se com seus defeitos, suas limitações que o impediam de tocar o céu.

E passou também a conviver, no mundo, com uma realidade bem distante de seus anseios de outrora. Uma realidade de inveja. De ingratidão. De inversão de valores. De desrespeito. De omissão. De indiferença. De discórdia. De arrogância. De hipocrisia.

Mas, naquele instante, ao lado do seu cão, voltou a ser menino depois de anos. Seu companheiro de passeio parecia lhe dizer isso. Com o olhar terno, lhe falava: "Olhe para cima, veja quem está lá".

E a Estrela D'alva voltava a lhe emanar a esperança, com a expectativa de sonhar algo possível, com o vislumbre da liberdade, autonomia, independência e solidariedade que sempre o encantou.

Aquele pontinho luminoso continuava a concentrar tudo isto, como uma Caixa de Pandora do bem.

Depois de 10 minutos parados, ouviu de seu cão: "Agora sim, podemos continuar".

Olhou de novo para o céu. Uma nuvem delicada se insinuou na frente da estrela, ofuscando novamente o seu brilho.

Eles retomaram a caminhada, naquele ritmo de dança com a noite. E suas silhuetas foram diminuindo, enquanto se afastavam daquela esquina, como num filme de Charlie Chaplin.

Até eles próprios se tornarem dois pontinhos de energia, que, muitas vezes já foram ofuscados pelas nuvens. Naquele momento, porém, estavam revigorados e com brilho. Graças à Estrela D'alva.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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