Seleção da França rompe barreiras e se impõe no século 21
Nos anos 70, time ainda considerado mediano já era prenúncio de uma nova ordem na sociedade francesa, com imigrantes como Tresor
Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7
Nos anos 70, a França era vista como uma seleção mediana. Tipo Bulgária ou Sérvia hoje em dia. Até então, o esporte era basicamente subvencionado pelo Estado. Bem de acordo com a essência cultural francesa, baseada no desapego ao material e apego a valores culturais e ao pensamento.
Mesmo assim, na Copa de 1978, o futebol já começava a ser um embrião do que os filósofos, fundamentais para a evolução e amadurecimento da sociedade, ainda não viam como um fenômeno. Que se tornaria real com a seleção francesa chegando a três finais de Copa nos últimos 20 anos.
O time daquele Mundial na Argentina já não era tão mediano. Era um prenúncio. Faltava apenas aquela força competitiva que o diletantismo francês dos anos 60 e 70 tinha inibido.
A equipe contava com jogadores de qualidade, como Battiston, Six, Platini e Tresor. Márius Tresor, nascido em Guadalupe, foi o precursor do que iria ocorrer no futebol e na sociedade franceses a partir de então.
Era um tempo em que a sociedade local se deparou com uma nova realidade, estampada na figura daquele Tresor, negro, ágil e grandioso em seus passos em campo. E em sua coragem. Era um desbravador aquele imigrante vindo daquela colônia francesa na América Central.
Depois de Tresor, veio Jean Tigana, este imigrante do Mali. Todos chegavam à França em busca de melhores condições de vida.
A Lei que retirou o passe obrigou os times a se profissionalizarem, a partir dos anos 90. E a presença de empresários trouxe capital ao futebol francês. O dinheiro então foi direcionado para lapidar aqueles talentos que vinham de regiões pobres do mundo.
O futebol ganhou importância, mesmo não sendo tão monopolizador como é no Brasil. E a França passou a ser palco para o desenvolvimento destes jogadores, principalmente os vindos da periferia. Tornaram-se valiosos, fontes de receitas para o futebol. Além disso, a diversidade de biotipos ajudou o futebol francês a se tornar potência.
Estas celebridades imigrantes eram o retrato de uma nova França. Mas incompleto. Eram, por isso, um retrato e um recado. Que dizia que eles, os incluídos, ainda eram exceções.
Mesmo assim, só o fato de serem aceitos e jogarem na seleção significava um passo adiante, dentro de uma equipe antes caracterizada por jogadores brancos de origem europeia. Assim como o país, até então.
O futebol, com isso, acabou sendo uma válvula de escape, um vislumbre para os excluídos, como imigrantes e seus filhos que viviam nas periferias de Marselha, Paris e outras cidades. E foi bem-sucedido.
Estive em Paris em 1998, para assistir à Copa do Mundo. Testemunhei aquele momento em que mais de um milhão de pessoas comemoraram o título de uma seleção francesa já recheada de imigrantes, como Marcel Desailly (nascido em Gana), Christian Karembeu (na Nova Caledônia) e Rudy Lilian Thuram, também vindo de Guadalupe.
Essa realidade passou a se tornar cada vez mais estampada na sociedade. Escancarava-se dentro dos gramados. O jogadores se tornaram uma caixa de som que, por um lado, apontava para uma nova França.
E, por outro, mostrava uma velha França, ainda preconceituosa e excludente com aqueles que não tiveram as possibilidades de ingressar em uma atividade como o futebol. A própria existência destes jogadores consagrados denunciava a ala xenófoba e fascista, que ainda resiste à França multicultural.
Os jogadores passaram a se multiplicar. A dominarem o cenário. E, nesta onda, continuam fortalecendo a seleção francesa. Como Mbappé, cujo pai é camaronês e a mãe, argelina, e vieram para a França em busca de oportunidades. O filho cresceu numa cidadezinha próxima de Paris, Bondy, e graças ao futebol resolveu os problemas financeiros da família.
Na época em que acompanhei a Copa de 98, pelas ruas históricas de Paris, via a juventude borbulhando. E o futebol era mais um item desta integração. Já não dava mais para retroceder. Mesmo vendo que os pedintes eram justamente os descendentes de imigrantes. A seleção francesa era, porém, o sinal. Acenava para a importância do acolhimento e da integração nesta nova etapa. A população, no geral, passou a se reconhecer nesta equipe.
Passei aquele mês embalado por uma linda melodia, da música Le premier jour (O primeiro dia), de Ettiene Dahou. No trecho inicial, com um tom suave, a letra falava da importância de se buscar uma nova aposta, mesmo em uma manhã que parece comum. Depois fazia uma queixa: "Fique de pé, mas a que preço. Sacrifique seu instinto e seus desejos. O mais confidencial".
E, por fim, trazia uma mensagem de esperança. "Mas tudo pode mudar hoje. É o primeiro dia do resto de sua vida. É providencial."
Tal qual os pais de Zidane, Etienne Dahou nasceu na Argélia. Falava por ele mesmo e por todo o país. Como tem feito a seleção francesa.
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