Análise: “E daí que você é negra?”
Esta foi a resposta a uma candidata que recusou a posição de trabalho que lhe ofereci. Saiba o porquê
Há cerca de vinte anos, fui diretora de redação de três veículos de comunicação de um mesmo grupo e me vi com grandes responsabilidades, muita gente para administrar e bem poucos colaboradores com quem realmente podia contar. Entre quase uma centena de funcionários, encontrei três com um promissor potencial de crescimento e resolvi promovê-los a editores-chefes, cada um de um veículo. Eram duas mulheres e um homem cuja escolha se deu exclusivamente por méritos.
Chamei um a um e, por causa do tempo escasso, a conversa foi bem direta: “Você vai assumir a função de editor-chefe e o grupo espera não menos do que 100% de comprometimento. Na próxima reunião de pauta vou informar sua equipe.” Dois deles ficaram felizes, agradeceram a oportunidade, prometeram dar seu melhor e saíram da sala contendo os ânimos para não dar bandeira antes da hora.
Já a terceira teve um comportamento completamente diferente. Em vez de alegria, seu rosto expressava um desapontamento desconcertante para quem estava do outro lado da mesa, no caso, eu. “Você entendeu o que eu disse? Você é a nova editora-chefe, por que essa cara?”, perguntei. “Olha, eu agradeço o seu reconhecimento pelo meu trabalho, mas é claro que a direção não vai permitir que eu chefie coisa alguma. Eu sou negra, esqueceu?”, questionou ela.
Incrédula, devolvi: “E eu não sou cega, esqueceu? E daí que você é negra? Vá fazer o seu trabalho e pare com essa bobagem! Eu disse 100% de comprometimento e você me vem com essa?” Ela me olhou fixamente e, pela primeira vez na vida, uma pessoa que eu havia acabado de promover estava chorando. Confesso que fiquei sem ação e não consegui dizer uma palavra sequer. Percebendo o clima, ela enxugou as lágrimas e disse em voz baixa: “Ninguém vai respeitar uma negra que veio do nada como chefe. Eu fui a primeira da minha família a fazer faculdade e isso já me basta. Obrigada de qualquer forma.”
Senti um calor subindo e tive certeza de que estava vermelha como um pimentão de pura raiva. Com os dentes cerrados, disparei, sílaba a sílaba: “Eu vou a-nun-ci-ar a de-ci-são na re-u-ni-ão de pa-u-ta. Agora, vá trabalhar!”
Levou tempo para que ela deixasse de se vitimizar e aceitasse que era a melhor jornalista da redação. O processo não foi nada fácil e me vi repetindo diversas vezes – sempre sílaba a sílaba e entredentes – a pergunta: “E da-í que vo-cê é ne-gra? E da-í?” Os esforços e a paciência valeram a pena, pois sem dúvida, ela foi a editora-chefe que mais se destacou.
Na prática, no que a cor da pele importa? Não somos peças de roupa para sermos separados na máquina de lavar para evitar manchas. Racismo existe? Claro que sim, não sejamos hipócritas. Mas deveríamos nos enxergar pelo que realmente somos e não por questões de cor, gênero ou qualquer outro tipo de classificação.
Porém, na contramão do bom senso, inúmeros movimentos estão trabalhando cada vez mais forte para nos segregar, criando cada vez mais divisões e nos distraindo com coisas que não têm valor. Que em 2025 venhamos valorizar mais as coisas que nos unem, sem darmos ouvidos às bobagens que a elite que controla o mundo insiste em criar para nos separar.
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