“Tá na hora do Cocoricó. Tá na hora da turma do Júlio. O Júlio na gaita e a bicharada no vocal: fazendo rock rural…” Se você leu cantando esse trecho da letra de abertura da clássica série infantil Cocoricó, é porque o programa da TV Cultura marcou sua infância.O responsável por criar e dar vida a Júlio, o eterno garoto ruivo de 8 anos cheio de sardas no rosto e que mora em um sítio, é o artista plástico e bonequeiro carioca Fernando Gomes. Ele também desenvolveu e manipulou outros bonecos de sucesso nas décadas de 1980 e 1990, como o Relógio e o Gato Pintado, do Castelo Rá-Tim-Bum; o X, do X-Tudo; e o Garibaldo, da versão brasileira de Vila Sésamo.Após 38 anos de contribuições à TV Cultura, Gomes deixou o cargo de diretor de conteúdo educativo infantil no final de 2024. Desde então, dedica-se a novos projetos.Em entrevista ao blog Do Meu Tempo, o artista relembra os primeiros passos de sua trajetória, do acaso que mudou sua vida ao ser descoberto por Memélia de Carvalho, bonequeira do inesquecível Bambalalão (1980–1990), até a criação dos bonecos que encantaram gerações. Confira!“Comecei a carreira no Bambalalão, na TV Cultura, aos 25 anos, em 1986. Eu cursava Artes Plásticas e, por ser fã do programa e dos bonecos, criei um e o deixei guardado.Tempos depois, encontrei casualmente a Memélia de Carvalho em um espetáculo de teatro. Ela era a principal manipuladora de bonecos do Bambalalão. Conversamos na plateia, e eu comentei que havia feito um boneco. Ela quis vê-lo. No dia em que mostrei, me pediu para levá-lo ao programa seguinte. Fiquei super feliz, porque já era fã da atração.Eu nem sonhava em trabalhar na televisão. Não era meu objetivo de vida. Mas o Chiquinho Brandão (1952-1991) tirou licença por uma semana. Certo dia, meu telefone tocou: era a Zita Bressane, então diretora do Bambalalão, me chamando para cobrir essa licença. Eu disse que topava e fui. Fiz aquela semana, achei que não fui bem e me despedi de todos. Na semana seguinte, ela me ligou dizendo que, quando eu quisesse voltar, estava convidadíssimo. Passei a ir esporadicamente até fazer parte do elenco fixo."“Ainda em 1986, a TV Cultura decidiu produzir especiais de Natal com bonecos, projeto no qual permaneci até 1990.Em um desses especiais, o de 1989, nasceu o Júlio, para o episódio Banho de Aventura. Esse especial ficou tão bonito que a emissora reeditou e o inseriu no quadro Senta que Lá Vem História, do programa Rá-Tim-Bum.Quando o Bambalalão acabou, em 1990, me desliguei da Cultura. Alguns meses depois, fui convidado a voltar para dar vida ao boneco X, do X-Tudo (1990-2002). Daí em diante, emendei trabalhos no Rá-Tim-Bum (1990-1994), Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997), Vila Sésamo (2007-2016), entre outros."“Sempre fui muito observador e gosto do que faço. Estou sempre atento a coisas interessantes para personagens, não apenas para dar vida a eles, mas também para confecção dos bonecos.”“O Júlio e o X, assim como o Relógio, o Gato Pintado, o Fura-Bolos, o Garibaldo e tantos outros marcaram gerações, primeiro pelos projetos dos quais fizeram parte, que foram realmente especiais. Eram projetos inteligentes, que estimulavam as crianças a não ficarem na mesmice.Tive a sorte de estar no lugar certo, na hora certa. Vivi os anos de ouro da programação infantil da TV brasileira e pude participar de programas premiadíssimos. O segredo está no projeto, que também precisa encontrar as pessoas certas para colocá-lo em prática."“Foi um programa criado pelo genial Gerson de Abreu (1964-2002) para a RECORD nos anos 1990. Foi tão legal que chegou a ganhar o prêmio de melhor programa infantil da TV pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte)”.“Para chegar à personalidade de cada boneco, entra o meu lado ator. Penso que preciso dar vida a esse pedaço de pano e espuma. Ele tem uma história a ser contada, e eu me aprofundo nessa história como se fosse atuar, mas adaptando tudo para a linguagem dos bonecos.”“Há tantos fatores. Primeiro, o próprio tempo. Depois, o boom da tecnologia, que é assustador: videocassete, DVD, computador, celular. Houve um pulo muito grande no audiovisual em um período muito curto.Mas sempre teve mudança. Lá em 1986, quando entrei na TV Cultura, eu já via gente lamentando as mudanças que haviam acontecido naquele tempo. A gente entra para o lado saudosista de lamentar, mas não temos que lamentar. Temos que tentar se adequar a elas. As mudanças consideradas negativas, devemos usar nosso trabalho para revertê-las.As crianças hoje em dia têm acesso à internet a conteúdos fracos, que nem deveriam ser chamados de conteúdos. Cabe a gente se preocupar e trabalhar para produzir conteúdos que sejam divertidos e que tenham entretenimento."“Sinto saudade da quantidade de gente competente que produzia com poucos recursos. Tirando os grandes projetos financiados externamente, como Castelo Rá-Tim-Bum, Mundo da Lua, Rá-Tim-Bum e Ilha Rá-Tim-Bum, tudo era feito na raça e na criatividade de quem estava lá. Não gosto da ideia de sentar e dizer que não dá pra fazer por falta de dinheiro. Se você tem estúdio e equipe, dá pra fazer.”“Júlio continua vivo e tem um canal no YouTube. Gravamos uma temporada em dezembro (na Cultura). É sempre um prazer gravar lá, pois é uma festa.Se me chamarem amanhã, gravamos de novo. Se não, o Júlio segue com vida própria e projetos além da emissora."