O Raimundos, uma das maiores bandas da história do rock brasileiro, acaba de lançar seu nono álbum, intitulado “XXX”, em referência aos 30 anos de trajetória dos malucos de Brasília. Este é o primeiro lançamento de canções inéditas que a banda faz em mais de uma década, desde o “Cantigas de Roda” (2014).Como agente artístico que acompanha a cena do rock nacional, tive a oportunidade de acompanhar os rumores desse álbum desde seu embrião, por isso, a chegada de XXX me foi recebida com grande expectativa.O álbum apresenta uma sonoridade intensa e característica. Apesar de contar apenas com o Digão como integrante original, a formação atual com (os já raimundeiros de tempos) Marquim (guitarra) e Caio Cunha (bateria), e o novo baixista Jean Moura que teve a honrosa missão de continuar o legado do saudoso Canisso, conseguiu se inserir como parte da história dos Raimundos com bastante assertividade.Após escutar o disco diversas vezes, constata-se que é um trabalho com autêntico espírito do Raimundos, trazendo elementos que nos fazem recordar álbuns clássicos como “Lavô Tá Novo”, “Lapadas do Povo” e “Só No Forevis”.O álbum abre com a minha já predileta “Os Calo”, faixa que se destaca como a mais representativa do disco. A letra tem aquele espírito raiz do Raimundos: ousado, cheio de gírias, verdade na voz e crossover de hardcore com metal. É suja, é crua, e funciona justamente por isso. Não quer agradar todo mundo — quer deixar claro que a estrada foi dura e que respeito se conquista com vivência.Por volta dos 2′44″, Digão dá um berro agudo e sujo que impressiona — eu desconhecia essa sua versatilidade vocal. Essa faixa poderia, facilmente, inspirar Max Cavalera a compor um novo hit do thrash metal.“Maria Bonita”, primeiro single lançado, representa bem o forrocore característico da banda: elementos do hardcore com influências de repente nordestino. É uma faixa genuinamente raimundeira. Marquim demonstra liberdade para criar solos de guitarra heavy metal, algo que ele trouxe à banda desde sua estreia no “Kavookavala” (2002). No videoclipe de “Maria Bonita”, a banda revelou o novo logo, uma brasão que se tornou a capa do álbum.A capa, por sua vez, não é o ponto mais forte do novo álbum. Ela apresenta o brasão com a característica caveira com chapéu de cangaço. A tipografia utilizada para o nome “Raimundos” é excelente e já se tornou clássica. No entanto, a escolha de colocar o escudo em preto sobre um fundo de flashes dourados compromete a visibilidade, especialmente em formatos menores como o apresentado nas plataformas digitais.O escudo acaba se perdendo visualmente, tornando-se uma mancha quando visualizado nesse tamanho reduzido. Uma simples alteração da cor do escudo para branco, por exemplo, poderia resolver este problema, ascendendo o emblema. Além disso, o desgaste das bordas não são bem posicionados em todas as áreas, dá a impressão de algo incompleto em vez de propositalmente estilizado.O disco apresenta coesão e peso, com elementos de hardcore e metal, além de incorporar outras escolas musicais, como sempre foi característico do Raimundos. Há, no entanto, alguns momentos menos impactantes.Em “Dia Bonito”, o flow 4x4 soa um tanto datado, um formato de rima já cansado pelo excesso de uso no rap 90’s, e a voz do Digão parece não estar em seu lugar mais confortável. Contudo, o refrão é bem construído e poderia facilmente funcionar como tema para uma obra audiovisual, como já ocorreu no passado, com a banda sendo abertura da novela “Malhação” (2015).“Um Doce”, escolhida como single de trabalho do lançamento. Uma faixa de riffs graves e pesados, punk rock com bastante mordida e uma letra que remete à pegada do ‘Lapadas do Povo’. A música vem acompanhada de um videoclipe com quê de produção independente, mas recheado de elementos visuais interessantes que dialogam bem com a estética do álbum. O ponto baixo vem na diferença de FPS (Frames Per Second) entre cenas, causando um certo incômodo. Parece que algumas cenas foram captadas, talvez, em 30fps e outras em 60fps, o que não foi bem resolvido na pós-produção. Já o impactante Ford “Deuce Coupe” 1932 customizado e a performance visceral da banda funcionam muito bem.“Nas Nuvens” se destaca como uma das faixas mais pop do álbum, trazendo aquele skazinho clássico do Raimundos de “Me Lambe”. O refrão aberto, com aqueles “paparapás” que a banda sempre incorporou em seu repertório, cria um momento de leveza no disco.A execução vocal, no entanto, é um ponto de atenção. A voz do Digão não parece encontrar seu melhor encaixe nesta faixa, sugerindo que a região melódica talvez não seja a mais confortável para seu registro vocal. Apesar disso, a música mantém a qualidade sustentada pelo arranjo.Mesmo sendo uma das faixas mais leves do álbum, “Nas Nuvens” não abre mão do peso das cordas, exemplificando como este disco, em sua totalidade, privilegia a sonoridade pesada que agrada aos apreciadores de guitarra e rock and roll.“Cuidado Com Esses Cara Aí” apresenta uma introdução com um baixo sinistrão que estabelece uma ambientação sonora tensa de suspense. O riff é um dos mais cantaroláveis do disco, daqueles que ficam na cabeça o dia todo.Um aspecto interessante da faixa é o Digão citar nominalmente todos os membros da banda, legitimando a nova formação dentro do legado do grupo. Só vimos isso acontecer antes em ‘Pequena Raimunda’ e novamente em ‘Fique! Fiquei!’ ("– eu vou chamar o Canisso!"). A música funciona muito bem como uma resposta aos críticos da nova formação.A sétima faixa, “Pela Saco”, vem forte no peso do forrocore, com uma bateria que soa como uma bonita homenagem de Caio Cunha a Fred Castro (ex-baterista) com seu estilo nos primeiros álbuns da banda. O arranjo então evolui para a assinatura musical Caio, dando um tom de passagem do bastão. Do ponto de vista técnico e musical, a faixa é impecável – tem um arranjo fenomenal, é intensa e genuinamente raimundeira.Contudo, o que torna esta faixa um ponto não tão alto do álbum é o contexto da mensagem que ela traz. Em um álbum que celebra 30 anos de carreira, após mais de 10 anos sem lançamentos de inéditas, “Pela Saco” parece desviar o clima dessa celebração histórica ao trazer para dentro do álbum o que aparenta ser uma resposta a críticos pessoais do Digão, principalmente às desavenças que o artista tem com outros grandes nomes do rock brasileiro — para uma boa parcela de fãs de rock, um espinho na carne do estilo.Com frases como “lava a boca pela saco, devo nada para você” e “você acha que é melhor que todo mundo?”, a música traz a sensação de transportar disputas externas — muitas por divergência política, para dentro do disco e acaba por puxar um pouco a vibe para baixo. Por não se tratar de uma crítica social ou sistêmica, mas pessoal, pode destoar do espírito celebrativo que acompanha o fã que ouve o novo álbum da banda.Longe de querer podar a liberdade criativa no teor das letras, no rock, assim como no rap, sempre teve espaço para provocações entre artistas. O conflito não está nesse tipo de manifestação em si, mas no fato de que, em um momento tão especial e com um número modesto de faixas (apenas 9, Digão! =\), dedicar uma delas a esse assunto soa como um ruído no brilho desse álbum. Especialmente quando o final da música traz um canto quase romântico de um xingamento, truncando a fluidez da experiência alto astral da audição do álbum.De qualquer forma, a track é musicalmente poderosa e uma das mais pancadas do disco.“Teu Passo” surge como uma grande surpresa no álbum, trazendo uma faceta pouco explorada do Raimundos: a balada. Nessa canção, Digão apresenta uma abordagem vocal que não é tão comum na discografia da banda, mais suave e até melancólica. Mas esse é um disco do Raimundos, então mesmo na balada, temos guitarras distorcidas em pizzicato, mantendo o tom pesado do álbum.Nas primeiras estrofes, a sensação é de estar ouvindo uma outra banda ou um trabalho solo. Essa impressão é particularmente interessante porque revela um potencial inexplorado do vocalista. O Digão mostrou nas suas redes sociais uma música que apresentou para Mark Ramone (baterista do Ramones), e disse que esta não entraria no nono disco do Raimundos por ser mais romântica.“Teu Passo”, embora tenha encontrado seu lugar no ‘XXX’, sugere que há um caminho promissor para o vocalista explorar esse lado mais melódico em projetos paralelos. Valeria muito a pena podermos degustar mais disso.À medida que a música avança, ela retorna gradualmente aos aspectos mais característicos do Raimundos, criando uma ponte entre essa experimentação e a identidade consolidada da banda. O resultado é uma faixa que expande os horizontes sonoros do grupo sem perder sua essência.O álbum encerra com “Que Sorte”, um hardcore direto e visceral que serve como a conclusão ideal para o disco. É o tal forrocore pancada nos ouvidos! Nesta faixa, o Digão demonstra total domínio de sua afinação vocal, entregando uma performance agressiva e precisa que certamente agradará aos fãs do gênero.A bateria traz em alguns momentos o chimbal dobrado fechadinho que remete ao “Loco Live” do Ramones, coisa que todo fã do Raimundos aprecia. A letra incorpora palavras e expressões características de toda a discografia da banda, incluindo o sotaque e termos que são a cara da banda. Coisas como “sonho doido” são a cara do Raimundos.Esta faixa evoca fortemente a sonoridade de “Lavô Tá Novo”, período em que muitos fãs, incluindo eu mesmo, começaram a fazer covers da banda. É uma conclusão que honra as raízes do Raimundos e demonstra o entrosamento da formação atual. Digão, Marquim, Caio e Jean entregaram um arranjo poderoso que deixa uma impressão duradoura.Em conclusão, “XXX” é um trabalho que representa com legitimidade o legado do Raimundos. A nova formação consegue honrar a história da banda e trazer renovação. O álbum cumpre também seu papel de celebrar os 30 anos de carreira com qualidade e autenticidade, reafirmando a relevância do Raimundos no cenário do rock brasileiro.Ouvir “XXX” é entender por que o Raimundos resiste — sem jamais perder o fio do facão.✅Para saber tudo do mundo dos famosos, siga o canal de entretenimento do R7, o portal de notícias da Record, no WhatsApp