Herança de traumas: quando os fantasmas da infância viram nossos comportamentos
Existem grandes chances de que nossos medos inexplicáveis tenham origem nos primeiros anos de vida
Quem nunca teve aquele comportamento meio esquisito que ninguém entende – nem você? Um medo inexplicável, um hábito que parece surgir do nada... Pois é, meu umbigueiro, há uma boa chance de que essas peculiaridades tenham raízes lá na sua infância. Mais especificamente, na convivência com os nossos queridos pais.
Não é que estamos aqui para culpar nossos progenitores – afinal, a maternidade e a paternidade não vêm com manual. Mas a verdade é que o comportamento dos adultos de hoje pode ser um espelho dos traumas, grandes ou pequenos, vividos lá atrás. Desde o clássico medo de barata até aquela estranha necessidade de agradar todo mundo, há um fio invisível ligando nossas experiências infantis às nossas manias de gente grande.
O medo de barata... ou seria do escândalo da mamãe?
Vamos começar pelo clássico: o medo de barata. Será que você realmente tem pavor daquele inseto ou o que te assusta é a memória de sua mãe subindo na cadeira e gritando como se o mundo estivesse acabando? A neurociência explica que as crianças aprendem muito mais pelo que observam do que pelo que lhes é dito. Então, aquele “trauma de barata” pode ser menos sobre a barata em si e mais sobre como os adultos ao seu redor reagiam a ela.
Traumas curiosos: Quando o “Não toca aí” ecoa na vida adulta
Agora, passemos para o território dos traumas curiosos. Você já percebeu que sempre pede permissão para tudo, até mesmo para pegar uma fatia de pão na casa de um amigo? Talvez, lá atrás, você tenha crescido ouvindo muitos “não toca nisso!” ou “não faz aquilo!”. Sem querer, seus pais criaram um mini adulto hiperconsciente das regras. Bom para as normas de etiqueta, mas nem sempre para sua espontaneidade. Acho que o problema é que como cada um é criado de uma maneira, quando você segue as regras e teu coleguinha não, causa conflito na relação.
O drama do “Eu não sou bom o bastante”
E aquele medo terrível de errar, hein? Você era aquela criança que, ao mostrar um desenho, ouvia: “Ficou bom, mas você podia ter feito isso ou aquilo.” Pronto. Foi plantada a sementinha da autocrítica. Esses pequenos comentários, feitos sem maldade, podem evoluir para adultos que nunca se sentem bons o suficiente, mesmo quando estão brilhando.
A síndrome do “Preciso agradar todo mundo”
Se seus pais tinham o hábito de cobrar muito suas boas maneiras, você pode ter se transformado na versão adulta que nunca diz “não”. Tudo para evitar conflitos e continuar sendo o queridinho de todos. Parece inofensivo, mas essa mania de agradar pode ser exaustiva e, muitas vezes, te coloca em segundo plano.
Mas nada está perdido, a especialista em neurociência e desenvolvimento infantil, Telma Abrahão, vai te ajudar a entender, destravar e ajudar a não repetir esses traumas com as crianças.
Como os traumas de infância, mesmo os considerados pequenos, como o medo de barata, podem se consolidar no cérebro e impactar o comportamento na vida adulta?
R: Os traumas, mesmo os chamados pequenos, podem se consolidar no cérebro devido à ativação repetitiva do sistema de estresse. O cérebro em desenvolvimento é altamente plástico e responde ao ambiente de maneira intensa. Quando uma criança enfrenta situações de estresse ou negligência, o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) é ativado frequentemente, levando a uma liberação constante de cortisol. Esse processo pode moldar conexões neurais, afetar o desenvolvimento das áreas relacionadas à memória e emoção, como o hipocampo e a amígdala, e influenciar os circuitos de regulação emocional. Na vida adulta, esses padrões podem resultar em dificuldades emocionais, comportamentos reativos e crenças limitantes.
Quais áreas do cérebro são mais afetadas por experiências negativas na infância e como elas influenciam nossas reações emocionais e comportamentais?
R: As áreas mais afetadas incluem:
- Amígdala: processa medo e reações emocionais intensas, podendo se tornar hiperativa, levando a respostas exageradas ao estresse.
- Hipocampo: relacionado à memória e ao aprendizado, pode ter seu volume reduzido, afetando a capacidade de lidar com novas situações e diferenciar eventos passados de presentes.
- Córtex pré-frontal: responsável por controle impulsivo, planejamento e regulação emocional, pode apresentar atrasos no desenvolvimento, dificultando a capacidade de tomar decisões racionais.
Essas alterações podem se manifestar como ansiedade, impulsividade, dificuldade de estabelecer vínculos saudáveis e até comportamentos de autossabotagem.
Existe algum método comprovado pela neurociência para “destravar” ou superar traumas de infância que ainda afetam a vida adulta?
R: Sim, métodos como:
- Terapias baseadas em regulação autonômica: A abordagem polivagal ajuda a restaurar a segurança interna, trabalhando a resposta do sistema nervoso.
- EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing): É eficaz na reprocessação de memórias traumáticas.
- Mindfulness e práticas de meditação: fortalecem o córtex pré-frontal e ajudam a reduzir a reatividade emocional.
- Psicoterapia focada em traumas: abordagens como a Terapia Cognitivo-Comportamental adaptada para traumas ou a Terapia Somática trabalham as memórias implícitas armazenadas no corpo.
Esses métodos ajudam o cérebro a formar novas conexões neurais e criar resiliência.
O que acontece no cérebro de uma criança quando ela presencia comportamentos extremos, como gritos ou críticas constantes? Esses padrões podem ser revertidos?
R: Presenciar comportamentos extremos ativa a amígdala, causando uma percepção constante de ameaça. Isso aumenta a produção de cortisol, o que, em excesso, pode ser tóxico para o cérebro em desenvolvimento. O hipocampo pode ser prejudicado, dificultando a capacidade de processar e armazenar memórias de forma saudável, enquanto o córtex pré-frontal pode ser subdesenvolvido, prejudicando a regulação emocional.
Embora esses padrões possam se consolidar, eles são reversíveis com intervenções adequadas, como um ambiente seguro e acolhedor, psicoterapia, práticas de correção emocional e o apoio de figuras parentais sensíveis.
Quais dicas práticas a neurociência oferece para evitar que os pais transmitam traumas ou medos desnecessários aos filhos?
R: - Desenvolva autorregulação: pais que sabem gerenciar suas próprias emoções oferecem um modelo de segurança emocional.
- Use a corregulação: Ajude a criança a entender e nomear emoções, validando seus sentimentos.
- Crie um ambiente seguro: evite gritos, punições ou críticas.
- Invista em educação parental: entenda as necessidades emocionais e comportamentais da criança em cada fase de desenvolvimento.
- Valorize o vínculo: momentos de conexão fortalecem a resiliência emocional e criam memórias positivas que podem neutralizar experiências adversas.
6. Como os pais podem estimular comportamentos saudáveis em seus filhos sem criar pressões ou expectativas que possam ser interpretadas como negativas no futuro?
R: Foque no processo, não no resultado: elogie o esforço e a dedicação em vez de resultados específicos.
Promova a autonomia: Permita que a criança faça escolhas e resolva problemas de acordo com sua idade.
Respeite os limites individuais: Entenda as capacidades e interesses naturais da criança, evitando comparações.
Use comunicação positiva: Expresse expectativas de maneira encorajadora e sem ameaças ou punições.
Ensine habilidades emocionais: Ensine empatia, escuta ativa e estratégias para lidar com frustrações, valorizando as relações saudáveis e respeitosas.
Não somos só nossos traumas
Embora nossa infância nos molde, não somos condenados a repetir padrões para sempre. A graça de crescer é que podemos escolher novos caminhos, um pensamento de cada vez. E, se você ainda tem medo de barata, tudo bem. Só lembre-se de não gritar muito alto – as próximas gerações agradecem.
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