Adoção: 3 em cada 4 crianças com mais de 5 seguem na fila de espera
Nos últimos três anos, percentual de adotados acima desta idade não ultrapassa 39% no Brasil. Avanços ainda esbarram em preconceito
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
“Elas já vêm com a personalidade moldada”, “são difíceis de lidar” ou “não vamos acompanhar seus primeiros passos”. Apesar de o processo de adoção no país ter evoluído nos últimos anos, segundo especialistas, ainda é um caminho cercado de obstáculos e preconceito.
Frases recorrentes como essas condenam crianças que chegam aos 5 anos de idade a passarem longos anos em abrigos ou casas de acolhimentos.
Números do Cadastro Nacional de Adoção, do Conselho Nacional de Justiça, obtidos pelo R7, mostram que, até janeiro deste ano, existiam 9.393 crianças disponíveis para serem adotadas. Destas, 7.212 têm mais de 5 anos, o que equivale a 76% das crianças que aguardam uma vaga para reconstruir suas vidas na fila da adoção.
Os números mostram também que foram adotadas 1.422 crianças e adolescentes no ano passado. Destes, somente 561 tinham mais de 5 anos, o que equivale a 39%. “São crianças que já têm uma história, geralmente de abandono e negligência e que não se pode passar uma borracha”, afirma Melissa Pozatti, co-gestora do Projeto Adoção Tardia. “No entanto, uma nova história pode ser construída dali em diante com amor e afeto. Existem diversas primeiras vezes na vida”, diz. Nos anos anteriores, o percentual de crianças com mais de cinco anos adotadas não variou muito. Em 2016, foi de 33% e, em 2017, de 35%.
“São crianças que já têm uma história%2C geralmente de abandono e negligência"
Não existe um consenso sobre a partir de qual idade a adoção é considerada tardia. O desembargador e coordenador da Infância e Juventude do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), Eduardo Gouvêa, afirma que crianças entre cinco e oito anos já enfrentam dificuldades.
Para ele, o número de pretendentes não cresceu muito também em decorrência da situação econômica. “O padrão de vida das pessoas têm impedido esse tipo de adoção”, afirmou.
A fundadora do projeto Adoção Tardia, Simone Uriartt, explica que o termo vem sendo substituído por “adoção de difícil colocação”, que se refere também a grupos de irmãos e crianças com deficiência. “Estes acabam sendo os perfis menos procurados e, infelizmente, são a maioria disponíveis nos abrigos”, diz.
Nos últimos anos, uma pequena evolução pode ser notada em relação à adoção. “Pode se observar uma maior abertura para crianças pardas e negras, o que não ocorria antigamente, quando a preferência era por crianças brancas, bebês de até três anos e meninas”, explica Melissa.
O caminho, segundo a juíza do 2º grau e membro da coordenadoria da Infância e Juventude do TJ-SP, Dora Martins, passa pela conscientização. “Quando se está grávida, é comum fantasiar a chegada de um filho. Quando se adota um bebê se tem a impressão de que é mais fácil. Os casais não se imaginam com uma criança com mais de oito anos”, afirma ela.
A expectativa do casal de que a criança adotada cumpre determinado pré-requisitos é o primeiro obstáculos à adoção tardia. “A maior questão ainda é a incompatibilidade de perfis, uma vez que o pretendido pelos pais é muito diferente daquele disponível nos abrigos: em sua maioria, adolescentes, irmãos ou crianças com deficiência”, diz Simone. Muitos interessados na adoção costumam também reclamar a demora do processo. “Existem falhas no sistema, mas a burocracia existe para garantir um bem estar mínimo ao adotado”, afirma. O juizado, segundo ela, precisa se assegurar de que a criança irá para um lar seguro e não sofrerá um novo abandono.
A adaptação de crianças mais velhas não difere muito das mais novas. “Poderão haver testes, principalmente pelo fato desta criança já ter sido abandonada uma ou mais vezes, ela irá querer se certificar de que os novos pais a amam, independentemente do que fizer”, diz Melissa. “Também pode haver algum atraso em relação ao conteúdo escolar ou até na maturidade em relação à outras, mas costuma se normalizar após algum tempo de reforço e rotina.”
Parceiras de passeios e conversas
Na contramão dos números, a assistente social Juliana Marcon, de 54 anos, decidiu adotar Bianca Vitória Marcon, quando tinha nove, em 2015. “Tinha um projeto de vida de que, se chegasse aos 40 sem uma família constituída, iria adotar”, diz. “Quando fiz 50, me inscrevi junto ao Judiciário. Queria uma criança entre seis e dez anos, se adotasse uma menor teria limites físicos para a minha idade”, afirma. Juliana queria uma parceira para dividir passeios e conversar. Bianca, por sua vez, queria ser adotada.
"Parece que a criança testa todo o nosso amor"
A construção do vínculo foi difícil e diária. “No primeiro ano, ela tinha momentos de bastante agressividade e começou a trazer à tona toda a raiva e traumas do passado”, diz. “Parece que a criança testa todo o nosso amor. Somos adultos e já passamos por diversos processos de construção de vínculos mas as crianças não. Precisamos reafirmar esse desejo de que ela é parte de nossas vidas.” Preocupada, Juliana chegou a questionar se Bianca gostaria de voltar ao abrigo. Diante da negativa, levou a garota para começar a fazer terapia. “Hoje temos um vínculo de mãe e filha, tudo funciona com base em conversas e transparência.” Juliana acredita que os baixos números de crianças e adolescente adotados se devem ao preconceito e ao egoísmo. “Há a ideia de que é necessário somente mostrar um filho bebê e de que não se conseguirá educar de acordo com os próprios valores.”
“Eles precisam aprender a amar”
O comerciário Peterson Rodrigues dos Santos, de 38 anos, adotou Lucas Gabriel Rodrigues do Santos quando tinha nove. “Nunca pensei em adotar um bebê por ser sozinho”, diz. Peterson lembra que teve dificuldades para criar Lucas, hoje com 12 anos. “Já tínhamos uma afinidade porque convivíamos há dois anos, mas quando passamos a vivir juntos foi uma fase ainda mais difícil.”
Assim como no caso de Juliana e Bianca, Peterson também conta que Lucas teve momentos de irritação e estresse. “Eles começam a fazer testes para saber se vamos querer ficar com eles ou não”, afirma. “Aprontam porque ainda não sabem amar, têm que aprender a receber carinho, serem aceitos.” Hoje, a fase de dificuldades passou com ajuda de sessões de terapia. “O atendimento psicológico é fundamental, mas só funciona quando os pais fazem também.”
Nesse período, Peterson fundou a ONG Elo (Organização de Apoio à Adoção), com grupos de apoio atuantes em sete cidades do Rio Grande do Sul. “Os pais sentem certo medo de adotar. A gente idealiza demais e é menos romântico do que parece. Temos que aprender a amar os filhos e que não é de uma hora para a outra. Esse sentimento precisa ser construído.”
Iniciativas e redes de apoio
Nos últimos anos, surgiram uma série de iniciativas da Justiça ou até mesmo independentes com o objetivo de sensibilizar pessoas dispostas a adotar. Em São Paulo, por exemplo, o Tribunal de Justiça criou a campanha “Adote um boa noite”, na qual apresenta fotos de crianças juntamente a uma descrição para estimular a busca ativa de adotantes. Outro projeto é o de apadrinhamento de crianças mais velhas. A juíza Dora explica que é necessário que os interessados realizem um curso para entender o proceso.
Além disso, é necessário, segundo ela, uma aproximação entre os padrinhos e as crianças. Com isso, o contato deve ser mantido pelo menos uma vez por semana, de forma que o padrinho mantenha o vínculo com o apadrinhado. “Não há obrigação de levar a criança para a casa e todo o processo é muito transparente. Existem, inclusive, jovens que não querem ser adotados. A participação em grupos ajuda a entender um processo que independe de idade ou sexo.”
O projeto independente Adoção Tardia surgiu em 2014, no Rio Grande do Sul, e hoje possui 58 mil seguidores nas redes sociais. “A ideia é sensibilizar futuros pais para a possibilidade de ampliar o perfil pretendido e desmistificar a adoção de crianças maiores e adolescentes por meio de vídeos”, diz Simone. Junto ao poder judiciário, o projeto também passou a fazer campanhas. Funciona assim: o juizado identifica uma criança sem pretendentes e sem possibilidades de reinserção familiar. Com isso, a equipe do Adoção Tardia vai até o abrigo e grava um vídeo com a história de vida do jovem. A última campanha realizada no ano passado alcançou um milhão de pessoas.
Futuro de quem é rejeitado
Apesar das mudanças, o país ainda tem de enfrentar um sério problema no que diz respeito à adoção: jovens que atingem a maioridade e tem de deixar os abrigos. A maioria acaba indo para as ruas. “Eles começam a viver como indigentes”, diz Gouvêa. Um levantamento realizado pelo TJ-SP demonstrou que o número de acolhidos em São Paulo com mais de 12 anos é de 8.801. Já entre os 16 e os 18 anos, que devem ir para as ruas, é de 1.166.
“Por melhor que sejam os abrigos%2C quem está pronto com 18 anos para morar sozinho e sustentar uma casa%3F"
Segundo Melissa, do Adoção Tardia, são jovens que não têm uma família para retornar, não têm estrutura financeira para se manter sozinhos, não têm sequer vivência fora do universo do abrigo. “Por melhor que sejam os abrigos, quem está pronto com 18 anos para morar sozinho e sustentar uma casa? Por isso muitos acabam indo para as ruas, para a criminalidade, pois não encontram outra forma de sobreviver”, diz. Existem repúblicas, administradas pela gestão municipal ou pelo terceiro setor, mas a oferta ainda é pequena diante de uma demanda que só cresce.