Audiências de custódia revelam choques, tapas, socos e assédio
CNJ aponta 12.665 casos violência policial durante as prisões. Nas salas, especialistas criticam algemas e presença ostensiva de policiais
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
Choques para forçar supostas confissões, socos no estômago, na costela, nas costas, mulheres revistadas por policiais homens e submetidas a humilhações. Essas são algumas das violências sofridas durante a prisão em flagrante reveladas durante as audiências de custódia, instrumento que determina que todo preso deve ser levado a uma autoridade judicial, no prazo de 24 horas, para avaliar a necessidade da detenção.
“Flagramos casos em que se a pessoa não confessa, ela é ameaçada e agredida”, afirma Rafael Custódio, coordenador do programa de Violência Institucional da ONG Conectas, que publicou o relatório Tortura Blindada.
Implementadas em 2015 pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em parceria com o Ministério da Justiça e com o Tribunal de Justiça de São Paulo, as audiências de custódia surgiram para o juiz analisar a legalidade e a necessidade da prisão.
A conversa com uma autoridade judicial também tem como objetivo criar opções penais ao encarceramento provisório, já que no Brasil, mais de 40% da população carcerária é formada por detentos que ainda não passaram por julgamento.
De acordo com um levantamento do CNJ, desde que foram colocadas em práticas até junho do ano passado, foram realizadas 258.485 audiências de custódia. Em 115.497 ou 44% dos casos, a conversa com a autoridade judicial resultou em liberdade. Já em 55% ou 142.988 casos, a audiência resultou em prisão preventiva. Em 12.665 casos houve alegação de violência no ato da prisão. “A criação desse instrumento não inibiu que a polícia utilizasse a violência em sua atuação”, diz Custódio.
Os três estados que mais apresentam queixas sobre violência policial durante a prisão são: São Paulo (3.352), Amazonas (1.958) e Goiás (1.054). No entanto, é preciso levar em consideração o tamanho da população de cada estado. São Paulo tem um caso de violência para cada 13.526 habitantes, enquanto o Amazonas tem um para cada 2.043. O índice de violência registrado no Amazonas é 562% maior que em São Paulo.
Segundo especialistas, os números podem estar subnotificados. “Muitos estados não alimentam o sistema que compila os dados e muitas pessoas não percebem que existe um espaço para denunciar”, diz Maria Dias, diretora executiva do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). “Mas já é possível dizer que as audiências têm algum impacto. Estamos em uma fase de escancarar essa realidade.”
Um dos principais problemas das audiências de custódia é que elas não funcionaram como um mecanismo de prevenção ao uso da violência policial em casos de prisão em flagrante. “Juízes e promotores não tomam as providências adequadas. Há pouca vontade de instaurar processos de investigação sobre a conduta de policiais”, diz Custódio. “Além disso, há um forte questionamento da versão do agredido.”
Violência nas audiências
Um relatório produzido pelo IDDD monitorou os dois primeiros anos da implementação das audiências de custódia e apontou a presença constante de agentes de escolta dentro das salas onde ocorre o contato entre o juiz e o custodiado. Segundo o levantamento, em todos os estados foi registrada a presença da polícia ou de agentes penitenciários enquanto a audiência ocorria.
Segundo Marina, para que cumpra a função, as audiências de custódia precisam seguir alguns critérios. “É preciso garantir acesso à defesa em lugar privativo para conversas sigilosas”, afirma. “É um espaço que precisa ser garantido com o custodiado e ter a liberdade de contar tudo ao juiz.”
“Ressalta-se que, por diversas vezes, a presença da escolta policial se mostrou bastante intimidadora – seja pelo grande número de policiais presentes, seja pelo armamento utilizado por eles”, diz o relatório. “Sabe-se que, em regra, as pessoas levadas à audiência de custódia vivem sob situação de vulnerabilidade social, de modo que o ambiente se torna bastante intimidador”, diz a pesquisa.
Outra forma de violência praticada durante as audiências é o uso de algemas. Um documento publicado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) prevê que as algemas devem ser utilizadas somente em casos de risco de receio de fuga. Apesar disso, a pesquisa do IDDD revelou que o uso do equipamento “é regra absoluta, às vezes, nem sequer questionado pela defesa.” Além disso, há relatos de pessoas que, enquanto aguardam as audiências, ficam sem se alimentar e sem utilizar o banheiro.
Nas salas, a pessoa presa em flagrante teria a oportunidade de relatar às autoridades judiciárias os abusos sofridos, que devem ser investigados. “O juiz precisa perguntar se a pessoa foi vítima de violência de forma direta e coletar o maior número possível de informações”, diz Marina.
Atuação da polícia
O coronel do Conselho Nacional de Comandantes Gerais, Elias Miler da Silva, afirmou que as audiências de custódias são mecanismos importantes. Porém, segundo ele, devem ser aperfeiçoadas. “É uma medida salutar. Mas está distorcendo os fatos e colocando a premissa do bandido como vítima e o policial como opressor”, afirma o representante da associação composta por comandantes da Polícia Militar e dos Bombeiros.
Em relação aos casos de violência relatados, ele afirma que o número precisa ser analisado em um contexto. “Essas ilegalidades precisam ser encaminhadas para investigação da instituição, do ministério público e a atuação desses policiais precisa ser revista para que sejam reciclados.”
Sobre o uso das algemas, ele justifica a necessidade quando "a pessoa é perigosa, violenta ou para protegê-la". Nos EUA se usam algemas para tudo, não é uma violência.” Desde a década de 1980, afirma o coronel, as práticas de violência começaram a ser eliminadas pela polícia paulista.
Em entrevista ao R7, o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Paulo Afonso Bicudo, chegou a afirmar que as audiências de custódia seriam obstáculos à ação policial”. “Ela é um freio na ação policial, independente se ela é boa para a sociedade, boa para os Direitos Humanos”, afirmou. “No dia a dia do policial, nós paramos de fazer uma investigação para apresentar o preso na Justiça.”
Casos em São Paulo
O estado de São Paulo registra o maior número de casos de alegação de violência durante as prisões, segundo os números recolhidos pelo CNJ. Isso se deve, em primeiro lugar, a taxa populacional superior à de outras unidades da federação.
Segundo Marina, o número também está relacionado à truculência da polícia no Estado. Uma pesquisa divulgada na segunda-feira (13), pela Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo, revelou que no ano passado 940 civis morreram após intervenção da polícia. Sozinho, o estado reúne 30% da população carcerária de todo o País.
Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo afirmou que "não compactua com desvios de conduta por parte de seus integrantes." Segundo o órgão, entre 2015 e 2017, cerca de 320 mil pessoas foram presas no Estado. "As supostas alegações de violência no ato da prisão correspondem a menos de 1% do total de prisões efetuadas no período."
"Todas as denúncias são averiguadas, sendo mais de 60% delas consideradas improcedentes, após minuciosa investigação. Se comprovada qualquer irregularidade na ação policial as medidas cabíveis são tomadas", declarou a SSP em nota.