Covid mata 96 pessoas em situação de rua em SP, aponta pesquisa
Número é quase o dobro de registros identificados pela Prefeitura. Segundo pesquisadores, ainda assim há subnotificação
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
Ao menos 96 pessoas em situação de rua de São Paulo (SP) morreram por Covid-19 entre março de 2020 e maio de 2021, segundo pesquisa do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade), da USP (Universidade de São Paulo).
Embora a subnotificação seja certa e o vírus tenha feito mais vítimas entre aqueles que vivem nas ruas da capital paulista, como ponderam os pesquisadores responsáveis pelo estudo, o número chama atenção por ser quase o dobro dos registros identificados pela Prefeitura (49).
O trabalho, intitulado “A invisibilidade da população de rua e de suas mortes por Covid-19 parece ter sido uma escolha”, apresenta os dados de mais 395 vítimas do coronavírus com potencial para serem incluídas entre pessoas em situação de rua, mas que, por falta de dados precisos e um monitoramento adequado pelo poder público, não é possível fazer tal afirmação.
O texto da pesquisa ressalta a ausência de um procedimento específico para identificar essa população, tanto nos óbitos como nas internações pelo coronavírus ou outras doenças respiratórias.
“Para nós, esse número reforça a total invisibilidade da população em situação de rua. É algo histórico, e na pandemia ainda pior. Não sabemos de fato quantas pessoas morreram, quantas foram afetadas pelo vírus e quantas foram morar na rua. O número [que encontramos] é pior que o da prefeitura, mas ainda não dá conta da realidade”, afirma Aluízio Marino, um dos pesquisadores responsáveis.
Para identificar 35 dos 96 óbitos, os pesquisadores dependeram de informações inseridas de maneira espontânea por profissionais de saúde no preenchimento do campo de endereço dos pacientes, com a indicação “morador de rua”, “situação de rua” e “morador de área livre”. Os 61 restantes foram obtidos a partir do cruzamento com endereços de centros de acolhimento da Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social).
Dessa forma, os perfis das vítimas da Covid foram divididos entre “situação de calçada” e “acolhidos”. Apesar do número superior, como indica o texto do estudo, não é possível concluir que houve mais mortes entre acolhidos, uma vez que aqueles em situação de calçada dependeriam do registro espontâneo por parte de profissionais de saúde, sem direcionamento ou orientação a respeito.
“A subnotificação é um fato. Avaliando os dados que tivemos, dependemos em primeira medida da boa vontade dos profissionais de saúde que preencheram nas fichas que aquela pessoa se tratava de uma pessoa em situação de rua. E não são todos que fazem isso, tanto nos atestados de óbito quanto no atendimento hospitalar”, comenta Marino.
Há, segundo ele, pessoas sem registros de endereço e que estão em abrigos, pensões, ou nas calçadas: “Estimamos que o número de mortos [pela Covid] possa chegar ao triplo.”
As 395 possíveis mortes citadas pelo estudo se dividem entre 216 em que não havia qualquer registro de endereço, e outras 179 em que os campos relativos a endereço possuíam a indicação “Instituição de Longa Permanência para Idosos – ILPI” (165), “Pensão” (11), e “Abrigo” (3).
Ausência de Censo no período atrapalhou
Como correspondem ao período entre o início da pandemia e maio passado, os óbitos identificados pelo estudo datam de um período em que as informações sobre a população em situação de rua estavam defasadas.
Isso porque o último Censo divulgado havia sido realizado em 2019, portanto não daria conta do impacto da Covid-19 sobre as pessoas que vivem nas ruas de São Paulo, e o Censo 2021 ainda não teve seus dados divulgados.
“Esses dados são fundamentais, não só para o nosso estudo como pra qualquer estratégia de proteção a essa população. Se não sabemos quantas pessoas morreram, quantas foram para as ruas e os locais onde moram, não temos como protegê-los, e nem como ter uma política de assistência e moradia”, considera o pesquisador, e conclui:
“Sem informação, não conseguimos estratégia para atuar nas demandas, sequer sabemos as demandas.”
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Os responsáveis pelo estudo citam organizações e movimentos de atuação pelos direitos às pessoas em situação de rua, e abordam solicitações da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama como exemplo.
Ao solicitar 22 pedidos de acesso à informação para a prefeitura paulistana, as informações recebidas pela clínica não eram consistentes; e, de acordo com a própria gestão, continua o texto, “a ausência de um procedimento específico para o registro dessa população impediria a contabilização exata, não havendo ‘informações confiáveis sobre o tema’”.
Crise habitacional
Para além dos danos sanitários, os pesquisadores consideram que a Covid-19 ampliou a crise habitacional em São Paulo, e citam um estudo da Rede Nossa São Paulo, que aponta que aproximadamente nove em cada dez paulistanos veem um aumento sensível da população em situação de rua na cidade.
A pandemia ainda causou outros impactos, de ordem social e econômicos, e um deles é a moradia, pondera Aluízio Marino.
“Temos uma crise habitacional extrema, aluguéis cada vez mais caros, as pessoas sem condições de viver de forma decente, pois não têm como arcar com todos os custos que a vida demanda. E na pandemia tiveram de escolher ou pagar aluguel ou comer”, afirma o pesquisador.
Com esse aumento da população vivendo na rua, prossegue Marino, as demandas para essa população ficam ainda mais complexas, como o acesso a moradia, água, alimentação de qualidade, banheiros públicos, habitação, assistência e saúde.
Para os responsáveis pelo estudo, os dados nele apresentados “demonstram que durante dois anos de pandemia não foram adotadas todas as medidas possíveis e disponíveis para entender os impactos da Covid-19 sobre a população em situação de rua. Em outras palavras, que a invisibilidade dos óbitos da população em situação de rua, em certa medida, parece ter sido uma escolha”.
Os pesquisadores sugerem procedimentos para um monitoramento mais eficaz sobre a população em situação de rua na capital paulista, como incluir nos formulários médicos e registros de óbitos uma pergunta que identifique a condição de moradia do paciente (ou vítima), com opções de respostas como “situação de rua” e “centros de acolhida/albergues”.
“A ausência de procedimentos específicos para o monitoramento da saúde da população de rua é uma das facetas da invisibilidade histórica enfrentada por esse público. Por outro lado, a sistematização e divulgação de dados sobre essas pessoas é o primeiro passo para enxergar suas demandas e construir soluções que respondam a essas questões. Portanto, é fundamental que o poder público adote medidas urgentes”, escrevem os autores da pesquisa.
Vítimas retratam perfil da população na rua
O perfil dos 96 mortos pela Covid-19 retrata a população de rua paulistana, aponta a pesquisa: a maioria (77%) é formada por homens – em situação de calçada, 94% –, sendo metade identificados nos formulários como pretos ou pardos – em um estado onde, diferentemente do país como um todo, a maioria (64%) da população é branca, segundo números do (Seade Sistema Estadual de Análise de Dados).
Outros 45% foram identificados como brancos, e 5% tiveram a cor de pele ignorada no preenchimento por parte dos profissionais de saúde.
Entre as vítimas, 6% nunca estudaram, 35% concluíram o ensino fundamental, 9% cursaram o ensino médio e 4% possuem um curso superior. Em 45% dos casos, esse campo foi ignorado.
Marino pontua que, de modo geral, o perfil dos mortos entre a população de rua reflete também os óbitos de toda a população pela doença: eram todos adultos e idosos, sendo 78% acima dos 50 anos.
Houve, também, a prevalência de fatores de risco e comorbidades, uma vez que em ao menos 75% dos casos a vítima possuía ao menos uma condição debilitante.
“Esses números demonstram, além da invisibilidade, a total falta de noção de algumas pessoas que defendiam a ideia, a partir de números subestimados, que a população que vive na rua seria supostamente resistente ao coronavírus. O que não temos, na verdade, é a noção [em números] do que de fato aconteceu”, diz Marino.
Posicionamento
A reportagem procurou pela Prefeitura de São Paulo para responder a respeito dos dados e críticas feitas pelo estudo. Até o fechamento do texto, não houve resposta.