Em média, a cada 40h uma criança morre por violência policial em SP
Taxas de homicídio, latrocínio e lesão corporal para meninos negros chegam a ser 2 vezes maior do que a taxa para não negros
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
"Mataram o menino e inventaram que ele estava tentando roubar." A frase dita por testemunhas se refere ao caso do jovem Vinícius Luiz da Silva Cruz, morto aos 15 anos durante uma abordagem policial, em outubro de 2018 no bairro do Jaraguá, na zona norte de São Paulo. Ele é uma das 1.253 crianças que perdem a vida nos últimos seis anos em decorrência de intervenção policial. O caso, que ocorreu há quase três anos, ainda é investigado pelo DHHP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa) de São Paulo.
Leia também
De acordo com um relatório divulgado nesta terça-feira (23) pelo Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, realizado em parceria com a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) e a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), entre 2015 a 2020, foram registradas 21.335 vítimas de homicídio, latrocínio e lesão corporal. Dessas, 1.912 eram crianças e adolescentes, ou seja, tinham até 19 anos - o que corresponde a 9% do total de mortes do período.
Entre as 5.153 mortes decorrentes de intervenção policial registradas nesse perído, 1.253 eram de crianças e adolescentes – ou seja, 24% do total de vítimas de mortes decorrentes de intervenção policial tinham 19 anos. O estudo mostra que o número de mortes por homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte entre crianças e adolescentes no estado de São Paulo caiu 32% e o número de mortes de crianças e adolescentes por intervenção policial, 49%. Ainda assim, foram 3.165 mortes neste período. Somente em 2020, 373 meninos e meninas paulistas tiveram suas vidas interrompidas de forma violenta no estado.
O relatório reúne dados sobre mortes violentas de crianças e adolescentes a partir de informações dos boletins de ocorrência, disponibilizados pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Os números mostram que, entre os anos de 2015 e 2017, os números se mantiveram estáveis, e que a queda de mortes violentas de crianças e adolescentes (de até 19 anos) ocorreu a partir de 2018. Em 2017, 14% de todas as vítimas de mortes violentas no estado tinham até 19 anos, em 2020, foram 9%.
“Os números são assustadores principalmente se levarmos em conta a proporção populacional dos adolescentes entre 12 e 19 anos. Os jovens acabam sendo as principais vítimas da violência policial”, afirma Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos da infância e juventude e membro do Grupo Tortura Nunca Mais. “As tropas alimentam isso, existe uma influência dos comandos contra adolescentes.”
Há um falso discurso de uma suposta impunidade de adolescentes. Por isso%2C ao invés%2C de prendê-los%2C muitos desses jovens acabam assassinados
Segundo o advogado, é comum que muitos policiais digam que adolescentes apreendidos não são punidos. “Na verdade, são punidos com base no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), inclusive com a privação de liberdade, mas há um grande comprometimento das tropas com a defesa da redução da maioridade penal”, explica. “Isso favorece a violência policial. Há um falso discurso de uma suposta impunidade de adolescentes. Por isso, ao invés, de prendê-los, muitos acabam assassinando esses jovens.”
O relatório aponta ainda que o grupo mais vulnerável são adolescentes e jovens, negros, do sexo masculino, entre 15 e 19 anos. As taxas de homicídio, latrocínio e lesão corporal para meninos negros são maiores em todas as faixas etárias e, para adolescentes entre 15 e 19 anos, chega a ser duas vezes maior do que a taxa para não negros.
Os dados mostram que a desigualdade racial se acentua em relação às mortes decorrentes das forças policiais. No estado de São Paulo, o risco de um adolescente negro ser morto em uma ocorrência policial é duas vezes maior do que um adolescente de outra raça: entre adolescentes de 15 a 19 anos, a taxa de 2,4 mortes por 100 mil para não negros aumenta para 5,6 por 100 mil para negros.
No estado de São Paulo%2C o risco de um adolescente negro ser morto em uma ocorrência policial é duas vezes maior do que um adolescente de outra raça
Em relação à localidade, o estudo revela que a capital concentrou 26,5% das mortes de crianças e adolescentes por homicídio, latrocínio ou lesão corporal ocorridas no estado entre 2015 e 2020. Em relação às mortes decorrentes de intervenção policial de adolescentes, quase metade (46%) de todas as que ocorreram no estado nesses seis anos ocorreram na cidade de São Paulo.
A demora na investigação é, segundo o advogado especialista em direitos da criança e do adolescente, um estímulo à impunidade. “Cada inquérito de violência policial de homicídio permanece por dois ou três anos parados no DHPP. Em São Paulo, o homicídio é altamente compensatório já que não ocorrem punições e as investigações não avançam. A centralização dos inquéritos tem gerado mais impunidade do que enfrentamento à violência policial”, afirma o advogado. “Existe apoio político à violência policial e de uma parte da sociedade que não compreende que a violência atinge em um dia suspeitos e no outro atinge inocentes.”
Redução histórica
Apesar de as mortes violentas envolvendo crianças e adolescentes continuarem acontecendo, a chefe do escritório da Unicef em São Paulo, Adriana Alvarenga, afirma que houve uma redução significativa. “Ela não é abrupta, é fruto de uma redução histórica, que ocorre há 20 anos. Mas qualquer vida de cada um dos 3.161 adolescentes e crianças vítimas de violência importa. É um número muito alto que requer medidas imediatas."
De acordo com ela, é preciso que todo o estado se responsabilize para evitar diferentes tipos de violência que incidem sobre essa faixa etária da população. “A morte acaba sendo o ponto final de um ciclo de violências que ocorrem desde a infância”, diz. "É preciso uma solução de longo prazo que envolva não só a segurança pública, mas políticas públicas integradas, como a presença nas escolas, proteção, conscientização das famílias e o aperfeiçoamento das abordagens policiais."
A morte acaba sendo o ponto final de um ciclo de violências que ocorrem desde a infância
Para ela, além de uma nova formação e revisão do relacionamento entre agentes policiais e adolescentes, é preciso priorizar as investigações de casos envolvendo a morte de crianças. “É preciso que se investigue com prioridade e profundidade”, diz. “Em mais de 20% das mortes de São Paulo não são identificadas a idade vítima, isso já indica a falta de informações."
Para que um adolescente não tenha sua vida interrompida, segundo ela, é preciso que a violência nas comunidades seja amplamente discutida. “A polícia também precisa fazer parte disso. É preciso que haja um encontro entre esses públicos. Nosso desejo que temos é que todo policial seja um provedor de segurança e não de repressão, e a redução no número de morte de intervenção policial com crianças e adolescentes mostra que isso é possível.”
"A segurança pública tem que assumir a responsabilidade sobre estes números, mas ela sozinha não resolve o problema", afirma a deputada Marina Helou (Rede), presidente do Comitê. “Para que políticas de prevenção se desenvolvam e para que nosso estado não perca nenhuma vida, são necessárias articulações intersetoriais. Os números mostram que ainda tem muito a ser feito. Ainda existem muitas crianças e adolescentes assassinados no estado. Precisamos entender como prevenir cada uma dessas mortes. Quanto mais informações tivermos, mais políticas públicas adequadas poderemos criar, é uma necessidade transversal”, diz.