Escritoras negras trilham legado de Carolina de Jesus em crítica social
Autoras de poesias e contos, Kimani, Mari Vieira e Esmeralda Ribeiro se dedicam à escrita como denúncia social e seguem os passos da escritora da favela do Canindé
São Paulo|Fabiola Perez, do R7
No dia 20 de novembro de 1958, a escritora Carolina Maria de Jesus abria seu diário nas primeiras horas do dia para os primeiros registros. “Olhei o céu. Parece que vamos ter chuva. Levantei, tomei café e fui varrer o barraco.” As páginas em que a catadora de papel da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, escrevia relatos pessoais e histórias sobre o dia a dia de pessoas comuns que viviam e sobreviviam na luta contra o que chamava de escravidão moderna, a fome, ganharam notoriedade no Brasil e no mundo ao se transformarem no livro “Quarto de Despejo”. Nesta sexta-feira (20), mais de seis décadas depois, cada vez mais escritoras negras seguem o legado de Carolina Maria de Jesus e se dedicam à escrita como forma de resistência, arte, protesto e denúncia social.
“Por que eu vejo os meus morrendo todos os dias?” Este é um dos versos da poesia Sinhá, a preferida de Cinthia da Silva Santos, 27 anos, conhecida como Kimani. “É a história de uma mulher que serve todos os dias aos patrões. Minha poesia fala sobre ser uma mulher negra, periférica, do racismo, dos lugares comuns e verdades coletivas que eu proponho que sejam repensados”, afirma Kimani.
"Minha poesia fala sobre ser uma mulher negra%2C periférica%2C do racismo%2C dos lugares comuns e verdades coletivas que eu proponho que sejam repensados"
Ana Horizonte é a personagem preferida de Marilene Vieira Costa, de 44 anos, professora e escritora. A jovem veio da cidade fictícia de Horizonte, que pelo sol intenso obrigava a vida a “uma secura brava”. No conto, a personagem sente uma mistura de pena e medo da patroa. Mari Vieira, como prefere ser chamada, conta que, assim como a personagem, também trabalhou como empregada doméstica. “Penso muito na ideia de colocar no centro das histórias personagens que estão à margem da literatura tradicional”, diz.
Contos e versos como esses poderiam facilmente ter sido escritos por Carolina Maria de Jesus. Com uma linguagem simples, objetiva e envolvente, a catadora de papel nascida em Minas Gerais registrava em seus cadernos detalhes de seu cotidiano. “Achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela (a filha) calçar”, “já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna”, “ontem comemos mal. E hoje pior.”
Em determinados momentos, eram desabafos pessoais. Em outros, angústias coletivas. “Tem hora que me revolto com a vida atribulada que levo, tem hora que me conformo. Eu cato papel, mas não gosto. então eu penso: faz de conta que estou sonhando.” Aos pretendentes à política, a escritora avisa: "o que povo não tolera é a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la.” No dia 13 de maio de 1958, Carolina, que também trabalhou como empregada doméstica, registra o mote de sua escrita: “eu lutava contra a escravatura atual: a fome.”
De acordo com pesquisadora da Universidade Federal do ABC e coordenadora do curso “As pensadoras negras”, da escola As Pensadoras, Karina de França Silva Valle, os livros de Carolina Maria Jesus oferecem diversos caminhos para se conhecer o país. “A obra dela permite um novo olhar para o Brasil, sobretudo, em relação as desigualdades”, afirma.
“Por meio de Carolina alcançamos o entendimento das opressões e temos possibilidades de interpretação de mazelas sociais. É uma escritora que pode ser lida pelo viés da literatura, da história, da geografia e dos estudos raciais, ela tem uma dimensão transversal nos ambientes escolares e do ensino médio. Não precisamos chegar na graduação para ter contato com essas obras.”
Em entrevistas que concedeu à época, a Carolina dizia que a escrita era a forma que encontrava de driblar a fome. “Em 1948, começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos resistindo debaixo das pontes”, afirmou. “É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”
Consumir obras de autoras negras não é modismo%2C o mercado editorial estava muito fechado%2C existia a falsa impressão de que autoras negras não vendiam" Karina de França Silva Valle%2C publicitária e pesquisadora da UFABC
Segundo Karina, que é mestre em educação, arte e história da cultura, a escritora ganhou amplitude significativa nos últimos anos. “Houve uma procura maior pelas obras dela e de outras autoras negras, como Conceição Evaristo, Cidinha da Silva”, diz. “São mulheres potentes com um compromisso existencial. Consumir obras de autoras negras não é um modismo, o mercado editorial estava muito fechado, existia a falsa impressão de que livros de autoras negras não vendiam.”
Kimani, menina dócil
O legado de Carolina Maria de Jesus se intensificou nos últimos anos. Hoje, é possível ver em mulheres negras de diferentes gerações traços da obra da escritora. Kimani tem 27 anos e é campeã do Slam Brasil, o Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. Em língua africana, seu nome quer dizer menina dócil. A jovem nascida no Grajaú, bairro da zona sul de São Paulo, afirma que cresceu influenciada pela leitura dos pais.
“Com seis ou sete anos comecei a escrever minhas próprias poesias, gostava de rimar e de combinar palavras.” Em 2017, participou da primeira oficina de escrita e, segundo ela, nesse momento, despertou para um outro tipo de poesia. “Me identifiquei muito com a escrita sofrida, de denúncia, de luta e esse contato com as pessoas do grupo me permitiu entrar nessa literatura marginal”, afirma.
Durante a oficina de escrita, Kimani teve contato com Carolina Maria de Jesus e outras autoras negras. “Ela foi uma dessas poetas pretas com quem entrei em contato, assim como Maria Firmina dos Reis. Muitas são preteridas até hoje, as pessoas da minha bolha conhecem, mas a literatura branca, formal, não conhece. Elas são nossas referências”, afirma.
A pesquisadora Karina afirma que tudo muda quando uma mulher negra se vê como uma potência. “Vive-se em uma sociedade em que se diz que pessoas negras não são capazes e permanentemente são feitas tentativas de desumanizar negros e negras”, explica. “Isso muda quando se vê a produção do conhecimento por meio da escrita de mulheres negras. Por isso, divulgar esse trabalho intelectual é fundamental.”
Neste ano, antes da pandemia, Kimani representou o Brasil na batalha das poesias na França. Mas o caminho para ultrapassar as fronteiras não foi fácil. “Cresci no ensino público, fiz faculdade de Gestão de Recursos Humanos, depois comecei psicologia, mas parei por conta das batalhas”, diz. “Só quando cheguei ao cursinho, entendi o déficit de educação que eu tinha em relação a outras pessoas. Cresci na periferia, sendo uma das pretas da sala e preterida por isso.” Filha de uma técnica de enfermagem e um pai taxista, Kimani diz que nunca passou fome, mas “na vida de periféricos, tudo é sempre contado”.
Kimani teve apoio dos pais para se dedicar à poesia. Ainda assim, não consegue viver da escrita. “Trabalhar como autônoma é muito difícil. No ano passado, comecei a trabalhar nessa produtora de áudio e estou gravando minhas músicas. Tenho uma renda mensal durante o mês e tudo o que eu ganho de apresentações vem para completar”, afirma. Além de voltar à faculdade, Kimani pensa em levar seus versos para jovens da Fundação Casa de São Paulo. “Quero fazer rodas de conversa, oficina com esses jovens para que eles não tenham o sistema prisional como um destino certeiro.”
Mari contadora
A professora e mestra em crítica literária Marilene Vieira Costa, de 44 anos, é escritora e criadora da personagem Ana Horizonte. Mas poderia ser Mari Contadora. Isso porque o desejo da escrita vem da infância e hoje escreve contos para as revistas literárias Ruído Manifesto e Cadernos Negros. Nascida no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Mari Vieira não tinha acesso a livrarias ou bibliotecas. “A descoberta da leitura aconteceu na escola, gostava muito de ler e com o tempo cresceu o desejo de saber como eram compostas aquelas histórias”, diz.
Filha de mãe branca empregada doméstica e pai negro mestre de obras, Mari deixou o Vale aos 17 anos para cursar o ensino médio em São Paulo. “Sempre escrevi, no colégio, na faculdade. Mas a figura dos escritos era muito endeusada. Após terminar o curso de mestrado em 2017, na tentativa de fazer doutorado e já cansada pela busca de publicações que aceitassem seus contos, Mari se aproximou da editora da revista Cadernos Negros, no intervalo de uma aula que frequentava na USP (Universidade de São Paulo). “Meus olhos brilharam tanto que a coordenadora, que não me conhecia, perguntou se eu escrevia e pediu que mandasse alguns contos. Fiquei eufórica e escrevi dois contos em 12 dias.”
Um deles é o conto “Fia, a mãe e a avó”, que narra as relações amorosas e afetivas familiares de mulheres. “É um entrelaçamento que parte do seio familiar. Fala sobre ancestralidade”, diz. O segundo conto, por sua vez, de Ana Horizonte, aborda relações de trabalho, inseguras, de uma empregada em relação à patroa. “Essas abordagens colocam as mulheres negras no centro da narrativa para valorizá-las e provocar discussão, empatia e a subjetividade do leitor”, diz. “Se pessoas de classe média conseguirem parar um instante para refletir sobre isso já consegui cumprir meu objetivo.”
A falta de conhecimento sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, segundo Mari, que também é cofundadora do coletivo de autoras negras Flores de Baobá, é uma consequência do racismo estrutural, termo usado para reforçar o fato de que há sociedades estruturadas com base na discriminação, que privilegia algumas raças em detrimento de outras – no caso do Brasil, favorece brancos em detrimento de negros e indígenas.
"Carolina eleva a autoestima%2C tem sensibilidade e é uma observadora incrível do povo%2C da favela%2C dos políticos e dos locais em que passava para catar papel" Mari Vieira%2C professora e escritora
“Carolina é fundamental, ela eleva a autoestima, tem sensibilidade e é uma observadora incrível do povo, da favela, dos políticos, dos locais em que passava para catar papel”, diz. Além disso, Mari acredita que a escritora pode ser considerada uma das vozes da população negra no Brasil.“Na busca de me achar nos livros, encontrei estereótipos negativos. Por isso, Carolina tem essa potência de legitimar as vivências negras”, afirma. É pouco provável que uma escritora negra não tenha Carolina como fonte de inspiração. É muito diferente quando um escritor parte da sua vivência para compor.”
Os relatos de Carolina e os contos de Mari Vieira abordam pessoas subvalorizadas. “É preciso ter um olhar de sensibilidade à pobreza e aos pobres. Acredito que ela tenha esse legado.” Hoje, Mari não trabalha como escritora. Ela ainda precisa da renda que ganha como professora para pagar as contas. “A inserção de escritoras negras no mercado ainda é bem difícil, por isso, o fortalecimento do coletivo é importante.”
Para Karina, da UFABC, as ações afirmativas foram políticas públicas importantes para assegurar que autoras e autores negros tivessem a segurança necessária para escrever. “Com elas, pudemos denunciar, nos colocar politicamente diante da sociedade e potencializar talentos que já eram fortes por meio da chancela acadêmica”, explica. Mari afirma que, quando uma autora negra se sobressai, é como se apenas uma voz fosse suficiente para falar por todas. “É importante diversificar e entender que negros e negras não são iguais. A ideia da literatura única é uma estratégia de silenciamento do racismo.”
Esmeralda e o despertar para a literatura
Formada em jornalismo, a editora da revista Cadernos Negros, Esmeralda Ribeiro, de 62 anos, coleciona histórias. Não apenas nas edições que passaram por suas mãos, como suas próprias narrativas. A pesquisadora de literatura afro-brasileira e feminina, integrante do grupo Quilombhoje e do coletivo Flores de Baobá, nasceu na zona norte da cidade e sempre estudou em escola pública.
Da infância, lembra de ir aos fins de feira para aproveitar restos de frutas e alimentos e de uma professora branca que a agrediu. “Fiz uma prova à lápis e quando entreguei ela me deu um tapa no rosto. Ela não teve a sensibilidade de me ajudar ou pedir para alguém me emprestar uma caneta”, lembra. “Isso me fez desenvolver uma timidez absurda. Não conseguia encarar e olhar as pessoas. Cheguei a repetir de ano.”
"Hoje%2C por meio da escrita%2C estamos recuperando nossos espaços. Somos frutos da insistência de Carolina como escritora" Esmeralda Ribeiro%2C editora da publicação Cadernos Negros
O gosto pela escrita surgiu primeiro por meio da leitura. “Minha mãe tinha uma cadeira de balanço, eu sentava e ficava imaginando coisas. Aquilo foi me agregando possibilidades na escrita”, diz. Na década de 1980, com a morte do pai, Esmeralda criou a primeira poesia. Chama-se “Era sábado”. Naquele período, a hoje editora conta que sua vida deu uma guinada. “Entrei na faculdade, fui fazer comunicação, gostava muito de ir em sebos e, por meio de uma amiga, conheci um dos organizadores do Cadernos Negros, uma publicação que alternava contos e poesias”, afirma. Do primeiro encontro, surgiram convites para reuniões no Aristocrata Clube para discussões literárias. “O mundo foi se abrindo: comecei a fazer a leitura de poesias. Era como se fossem os atuais saraus. Ficávamos até de manhã lendo poesia.
Naquela época, despertou também em Esmeralda a consciência para às práticas racistas das quais era vítima. “Descobri que sempre sofri racismo e que as questões raciais perpassam toda a nossa vida”, diz. A ideia de se chamar “Cadernos Negros”, segundo ela, foi inspirada nos diários de Carolina de Jesus.
A partir da 6ª edição, os cem escritores que participavam da publicação começaram a divulgar os trabalhos em bailes e eventos culturais da época. Hoje, a 42ª edição concorreu ao Prêmio Jabuti, referência entre os prêmios literários do país e da América Latina. “Carolina sofreu formas agressivas de racismo e nós enfrentamos diariamente manifestações veladas”, afirma. “Hoje, estamos recuperando nossos lugares e espaços.”
Esmeralda conta que até os 18 anos também não conhecia a obra de Carolina. “Até então não tinha esse despertar. Depois, conheci a mulher apaixonada pela escrita e pela literatura que ela foi, mesmo em condições adversas”, diz. “Somos frutos dessa insistência de Carolina como escritora.”