Médicos de SP denunciam contratos precários no hospital do Anhembi
Admitidos como PJs não têm garantias e são afastados sem salário se pegam covid-19: 'Pacientes e médicos perdem. Só quem ganha são as organizações'
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
Médicos do hospital de campanha do Anhembi, na cidade de São Paulo, têm sido admitidos em condições precárias de contrato e trabalho. Uma série de relatos e denúncias recebidos pelo R7 referem-se, principalmente, à falta de garantias trabalhistas, como assistência de saúde – se contraem covid-19, são afastados sem remuneração e não sabem se voltarão –, mas passam também pela falta de equipamentos profissionais e até por riscos aos pacientes.
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“Tivemos colegas que ficaram doentes e foram retirados. Não temos segurança financeira ou de saúde, nem fornecem testes. Somos afastados sem remuneração: se trabalha, ganha. Se não trabalha, não ganha”, contou, sob condição de anonimato, uma médica que trabalha no hospital.
Médico e presidente do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo), Victor Vilela detalhou problemas que os profissionais da saúde têm vivido e afirmou que estes modelos de contratação são um padrão das OSs (organizações de saúde) que gerem hospitais de campanha: “A situação precária de vínculos faz com que eles possam morrer na linha de frente. Não têm a garantia mínima de realização de trabalho”.
Segundo ele, a principal forma dos vínculos segue um modelo comum: profissionais são forçados a assinarem como ‘sócios minoritários’, com lucros e dividendo das empresas como pagamento, ficando sem garantias trabalhistas.
A médica denunciante confirma: “se fico doente hoje, até o fim do mês eu sou retirada da escala e não ganho nada. Fico com uma mão na frente e outra atrás”. Soma-se a isto, relata Vilela, o fato de que muitos médicos deixam de avisar quando têm sintomas leves de covid-19 por medo de demissão.
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O modelo hegemônico relatado por Vilela é o praticado pela empresa gestão de saúde OGS. No hospital do Anhembi, a organização contratada pelas terceirizadas SPDM e Iabas, que também tiveram problemas recentes no mesmo local, tem como função a admissão dos médicos que ali trabalham.
Há, inclusive, profissionais de outros estados do Brasil que vieram a São Paulo sem saber dessas condições. “Tivemos uma colega que veio de Rondônia e ficou quase dois meses. Ela deu sorte que nesse tempo não adoeceu. Uma outra, que veio de Belo Horizonte, foi embora no começo porque estava desenvolvendo sintomas”, conta uma das médicas.
Entre maio e junho, o Simesp enviou ao menos três ofícios ao MTP-SP (Ministério Público do Trabalho) e à Prefeitura de São Paulo aos quais a reportagem teve acesso, com denúncias a respeito das condições empregatícias precárias dos médicos que trabalham no hospital do Anhembi.
Outro problema no hospital, relatado por Victor e confirmado por duas médicas, é que a OGS fica com os contratos e os médicos, sem cópias. “Ficam sem nenhuma opção, assinam o contrato que fica com a OGS. Os médicos podem ser podados e amarrados por essa forma de organização da saúde”, afirma Victor.
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Há também queixas sobre os hospitais do Ibirapuera e do Pacaembu, administrados pelas organizações Seconci e Einstein, respectivamente. A respeito do hospital do Ibirapuera, o único estadual e administrado pela organização Seconci, a situação é parecida com a do Anhembi, relata Vilela. “Lá, há várias empresas quarteirizadas que contratam os médicos, com uma forma de vínculo parecida com a do Anhembi”, diz. As questões de insuficiência de EPIs e sobrecarga de trabalho também se repetem, em menor escala. A secretaria estadual de saúde, responsável pela gestão no Ibirapuera, nega as queixas.
O hospital de campanha do Pacaembu, administrado pelo grupo Einstein, é, segundo Vilela, o que está em melhor situação: é o próprio grupo que faz as contratações diretamente - sem quarteirizadas. As admissões vêm de profissionais com carteiras assinadas, que estavam em outras unidades de administração do grupo, ou com vínculos PJ.
Hierarquia ‘de cima pra baixo, de fora pra dentro’
Uma das situações mais delicadas vividas pelos médicos do hospital do Anhembi se dá pelas hierarquias no local. Os profissionais não sentem-se confortáveis para confrontar decisões da direção por medo de represálias.
“A gente já teve colegas expulsos da escala por contestarem alguma coisa. É uma situação muito estranha”, conta uma das denunciantes, que prossegue:
“Somos médicos, com CRM, diploma, alguns com muitos anos de experiência. E aí tem uma hierarquia de coordenadores, que teoricamente são pessoas para coordenar, não pra mandar. O pessoal levou uma relação de chefe e residente lá pra dentro. É uma hierarquia que vem de cima pra baixo, de fora pra dentro [do hospital”.
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Há, como ela relata, duas alas no hospital – a verde, com pacientes estáveis, e a amarela (ou vermelha, entre os médicos), de UTI/estabilização, setor para casos críticos. Transferir um paciente cujo quadro se agravou é tarefa difícil, comenta. “Temos que ‘pedir penico’ para passar o paciente da verde à vermelha. Às vezes demora muito tempo pedindo. Vai muito do tato do coordenador: tem uns que fazem a ponte, mas tem outros que você tem que implorar pra transferir o paciente”, lamenta ela, que diz que uma colega de trabalho teve suspensão de suas escalas por, em uma situação como esta, confrontar os coordenadores.
De acordo com ela, há, ainda, “um certo assédio do tipo ‘se vocês não estão satisfeitos, colocamos outras pessoas em seus lugares’”.
Uma segunda médica, que também prefere não ser identificada, relata as mesmas situações e acrescenta que, muitas vezes, para evitar problemas com a coordenação, “somos obrigados a fazer um suporte que foge do que seria o preconizado nas enfermarias, para cumprirmos o nosso compromisso de cuidado com esses pacientes”.
Porém, continua, isso gera inseguranças para o médico e para o paciente, que poderia ter sua doença conduzida de forma mais adequada. Na prática, ela diz, o que enfrentaram foi a dificuldade de transferência desses pacientes para os leitos de estabilização.
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“Certamente o paciente merece e precisa ser reavaliado antes de se confirmar a transferência, mas o que vemos é uma espécie de dificuldade extra e de resistência por parte desses coordenadores em transferir os casos que exigem mais cuidados para esses leitos, mesmo que eles atendam aos critérios de fluxo interno”, conta.
EPIs
Victor Vilela relata que, embora o sindicato oriente os médicos a denunciarem os problemas, houve profissionais que, quando apontaram à falta de EPIs (equipamentos de proteção individual), acabaram afastados. Negado pelas organizações de saúde, o problema é comumente relatado pelos médicos dos hospitais de campanha.
Alguns médicos se queixaram da ausência de equipamentos mesmo em casos de urgência e intubação de pacientes, nos quais a chance de contaminação por covid-19 é ainda maior. A insuficiência de materiais faz com que os médicos usem, por exemplo, o mesmo avental o dia todo. Como explica Vilela, a situação acaba atingindo até os pacientes:
“Esse uso até impede os médicos da contaminação, mas faz com que levem o vírus de um paciente para outro, se transformando em vetores. E, no hospital de campanha, há casos suspeitos e não confirmados. Então, o que costumamos falar é que ‘se não tinha covid-19, quando chegar lá com certeza vai ter’. Perdem os pacientes e perdem os médicos. Só quem ganha são as organizações com seus contratos milionários”.
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O relato coincide com o que conta uma das denunciantes, que comenta sobre uma visita feita por sindicatos e uma infectologista, alertando aos médicos sobre a necessidade de trocas de avental a cada paciente.
“Ninguém nos falou disso [até aquele dia]. Só agora, nessa semana (a última), que tem anúncios escritos em todos os pontos, que temos que trocar os aventais. Mas não nos foi passado nem como deve ser feita essa troca, nem um videozinho”, comenta ela.
Há responsabilidade da Prefeitura?
Se as admissões dos médicos são função de empresas quarteirizadas, contratadas por outras organizações terceirizadas, qual pode ser a responsabilidade do poder público? A Prefeitura, encarregada da contratação das terceirizadas, tem culpa neste processo?
Segundo Flavio Batista, professor de direito do trabalho na USP (Universidade de São Paulo), a terceirização de algumas atividades ao longo do tempo tornou-se permitida, principalmente em casos de atividades que não sejam propriamente do Estado, ou em contratações temporárias de emergência – como as da pandemia do novo coronavírus.
No entanto, prossegue Batista, “o fato é que o ente público que terceiriza mão-de-obra tem a obrigação de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista, sob pena de ser corresponsável pelas violações que esses trabalhadores sofrerem”. Se houver a fiscalização adequada dos serviços prestados, o poder público não será responsabilizado, conclui.
Como se posicionam o poder público e as organizações
SPDM (hospital de campanha do Anhembi)
Em nota, a SPDM afirmou que, no setor do hospital do Anhembi que é de sua administração, as denúncias não procedem. Escreve, ainda, que a OGS assinou um termo de adesão seguindo o manual de conformidade administrativa e ética da SPDM, e que fiscaliza a terceirização dos médicos por uma diligência antes dos pagamentos mensais.
Destaca, também, possuir protocolos para garantir a idoneidade das instituições contratadas, afirmando que “é delas a responsabilidade legal com seus respectivos colaboradores”, e que estas contratações de OSs não representam terceirização, segundo o TCU. A SPDM também diz que o setor gerido por ela no hospital do Anhembi tem à disposição os EPIs conforme a necessidade de cada profissional.
Iabas (hospital de campanha do Anhembi)
Perguntado a respeito dos contratos precários e dos problemas relatados sobre os EPIs, o Iabas escreveu, em nota, que não há falta de EPIs no hospital do Anhembi, e que todos os equipamentos utilizados são adequados às especificações da Anvisa.
Sobre as contratações, o Iabas afirmou, apenas, que contratou a OGS para fornecer mão de obra médica, e que a escolha se deu pelo amplo universo de profissionais dos quais a empresa dispõe. No entanto, não teceu comentários relacionados à precarização e à falta de garantias trabalhistas.
OGS (hospital de Campanha do Anhembi)
A OGS, empresa contratada pelas terceirizadas SPDM e Iabas para realizar as admissões dos profissionais no hospital de campanha do Anhembi, e citada mais de uma vez como principal responsável pela precarização nos contratos de trabalho, também foi procurada. Até o fechamento deste texto, não houve resposta.
Prefeitura
Em nota, a SMS (Secretaria Municipal da Saúde) diz que mantém contrato de gestão com as Organizações Sociais de Saúde (OSS) Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (IABAS) e a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) para administrarem o Hospital Municipal de Campanha do Anhembi, e que são as OSs as responsáveis por fiscalizarem todos os serviços contratados para o funcionamento da Unidade. A pasta escreve ainda que não há falta de EPIs, e que os profissionais que trabalham no HMCamp do Anhembi trabalham com equipamentos condizentes com as atividades que exercem.
Governo do Estado
Responsável pelo hospital de campanha do Ibirapuera, administrado pela OS Seconci, o Governo do Estado de São Paulo afirmou que as denúncias a respeito do local não procedem, e que as contratações estão dentro das legislações civil e trabalhistas.
“As escalas e plantões são organizadas de forma a planejar uma rotina adequada para as equipes e garantir atendimento a todos os pacientes internados”, escreve a pasta estadual da saúde. Destaca, ainda, que a unidade está abastecida com EPIs para garantir a proteção dos profissionais, que estão na “linha de frente” do enfrentamento à covid-19.