Menos de 4 em cada 10 paulistanos percebem que as mulheres fazem maior parte do trabalho doméstico
Pesquisa aponta que 37% dos entrevistados acreditam que afazeres são divididos igualmente entre homens e mulheres
São Paulo|Fabíola Perez, do R7
A pandemia de Covid-19 trouxe à tona um aspecto central da vida de homens e mulheres: o trabalho. Não apenas as atividades remuneradas que migraram dos ambientes empresariais para as versões remotas, mas, sobretudo, os afazeres domésticos. Nesse sentido, a mudança imposta pelo isolamento social escancarou o tamanho da sobrecarga enfrentada pelas mulheres.
Contudo, a pesquisa “Viver em São Paulo – Mulheres”, realizada pela Rede Nossa São Paulo, divulgada nesta quinta-feira (3), mostra que menos de quatro em cada dez paulistanos percebem que a maior parte do trabalho doméstico é realizada por mulheres. De acordo com a pesquisa, 34% dos entrevistados consideram o trabalho doméstico uma responsabilidade de homens e mulheres, mas acreditam que as mulheres fazem a maior parte das tarefas.
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O levantamento revela ainda que 37% dos entrevistados acreditam que os afazeres domésticos são divididos igualmente entre homens e mulheres. Em 2020, esse percentual era de 45%. O trabalho reprodutivo, explica a advogada Isabela Del Monde, sócia da Gema Consultoria em Equidade e colaboradora do Me Too Brasil, inclui todas as atividades realizadas pela manutenção da vida, mas elas não são remuneradas.
“Costumo dizer que nenhum CEO se senta em uma cadeira sem que tenha tido a camisa passada por mulher”, afirma. “Há séculos esse trabalho realizado por mulheres não é considerado como tal. São anos reproduzindo a ideia de que atos como lavar, passar, cozinhar e cuidar dos filhos não são um trabalho em si, e sim um ato de amor que todas as mulheres deveriam performar por serem supostamente cuidadosas e naturalmente dóceis. E não há nada de natural nisso.”
A pesquisa da Nossa São Paulo mostra que, completado o segundo ano da pandemia, a percepção de que os afazeres domésticos são divididos igualmente entre homens e mulheres recuou, equiparando-se à percepção de que que mulheres desempenham a maior parte dessas atividades.
São anos reproduzindo a ideia de que atos como lavar%2C passar%2C cozinhar e cuidar dos filhos não são um trabalho em si%2C e sim um ato de amor que todas as mulheres deveriam performar por serem supostamente cuidadosas e naturalmente dóceis. E não há nada de natural nisso
“Os dados demonstram como está preservada a ideia de que esses afazeres não são um trabalho”, diz a advogada. “Desobriga-se um pai de exercer os papéis de cuidado e manutenção da vida, criando o mito de que as mulheres estão mais predispostas, e quando as mulheres não desempenham esses papéis são consideradas ruins.”
A desigual divisão do trabalho do trabalho entre homens e mulheres pode ser observada também nos números que revelam que 14% dos paulistanos entrevistados acreditam que os afazeres domésticos são responsabilidade apenas das mulheres. Em contrapartida, somente 4% dos entrevistados acreditam que essas atividades são responsabilidade somente dos homens.
“As pessoas podem estar respondendo a algo que lhes parece correto, porém, não é em 37% dos lares que os afazeres são divididos igualdade entre homens e mulheres. Trata-se de uma percepção moralmente correta”, afirma Del Monde.
O cenário de isolamento da pandemia explicitou ainda mais essa desigualdade. “Muitas mulheres tiveram de sair de seu emprego para cuidar da família”, recorda a advogada. “Ainda há a ideia de que se uma carreira deve ser privilegiada é a do homem e a abnegada é a da mulher.” Del Monde ressalta que, no caso de mulheres que tiveram de se afastar do mercado de trabalho há ainda a perda da renda. “Isso é a mesma coisa que perder a autonomia, a independência”, afirma ela.
Ainda há a ideia de que se uma carreira deve ser privilegiada é a do homem e a abnegada é a da mulher
A pesquisa mostra também que o entendimento de que os serviços domésticos são divididos igualmente recuou tanto entre homens quanto entre mulheres. Entre elas, aumenta a sensação de que fazem a maior parte dos afazeres, ainda que sejam responsabilidade de ambos.
Segundo o estudo, 47% dos entrevistados homens percebe que os afazeres são divididos igualmente. Já entre as mulheres, apenas 29% percebem uma divisão igualitária. Outro dado é que 25% dos homens percebem que as mulheres fazem a maior parte do trabalho, e 41% das mulheres entendem que elas fazem a maior parte.
A advogada Marina Ruzzi, fundadora do primeiro escritório do país de advocacia para mulheres, afirma que não se trata somente de dividir os afazeres domésticos. “Tem a carga mental das tarefas que recai sobre elas. Além disso, elas ficam também com a responsabilidade de delegar e conferir se algo foi feito. Ainda hoje existe a percepção equivocada de que ‘o homem está ajudando’”, diz. No contexto da pandemia, Ruzzi destaca que as restrições impactaram mulheres de diferentes formas. “As mais pobres fazem uma dupla jornada, e as mais ricas contaram com uma rede de apoio.”
Elas ficam com a responsabilidade de delegar e conferir se algo foi feito. Ainda hoje existe a percepção equivocada de que ‘o homem está ajudando'
A divisão sexual do trabalho, explica ela, estrutura a sociedade. “Antes havia uma naturalização de que a mulher é que deveria exercer determinadas tarefas, como fazer comida e outros afazeres”, diz. Embora tenha tido uma mudança de maior conscientização de que as mulheres integram a força laboral, muitos pontos ainda não foram discutidos. “Um deles é a maternidade. A mulher fica consumida pelos afazeres e pela amamentação, e isso gera certa naturalização de que esse apega é irreversível.” Os homens, diz a advogada, têm todas as condições de se encarregar desses afazeres, como dar banho, comida e cuidar da educação.
Vale lembrar que a divisão sexual do trabalho não apenas reparte as atividades como também hierarquiza essas tarefas. “Quem acaba abrindo mão do emprego fora é a mulher, quem leva os filhos ao médico são as mulheres.” Dados do Censo Escolar, realizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), mostram que há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento.
Sobrecarga e aumento dos divórcios
A advogada Marina Ruzzi, que também trabalha na área de direito da família, afirma que, desde o início da pandemia, explodiram os pedidos de divórcio relacionados à sobrecarga das mulheres. “Atendo 15 casos por mês, e todos tratam em menor ou maior grau da divisão sexual do trabalho e do trabalho doméstico”, diz. “Ao fazer o cálculo do pagamento da pensão, é necessário colocar o valor das horas despendidas com o trabalho doméstico, uma vez que isso impacta o desenvolvimento profissional das mulheres.”
Essa repartição de tarefas ainda não é bem compreendida também entre as mulheres. “Isso porque é algo muito arraigado à sociedade”, afirma Ruzzi. “Mas, aos poucos, elas também passam a observar essas questões com mais clareza.” Na pandemia, segundo Ruzzi, elas começaram a relatar de forma clara que o motivo do divórcio estava atrelado à divisão do trabalho doméstico. “Como algumas pessoas estão em home office, fica explícito quanto homens e mulheres têm as mesmas condições de fazer tudo.”
Aulas online: mais uma responsabilização
O fechamento das escolas e creches foi um dos pontos que mais impactaram o trabalho das mulheres durante a pandemia. “Essas instituições sempre foram fundamentais para que as mulheres conseguissem ocupar postos de trabalho. Com o fechamento, ficou evidente toda uma construção que retira mulheres das esferas sociais e políticas”, afirma Isabela. “O apoio às crianças, nesse período, teve de ser concomitante às outras atividades desempenhadas por elas.” Com isso, a advogada ressalta que recebeu muitos relatos de perda de renda e, consequentemente, de uma vida mais precarizada.
Ao fazer o cálculo do pagamento da pensão%2C é necessário colocar o valor das horas despendidas com o trabalho doméstico%2C uma vez que isso impacta o desenvolvimento profissional das mulheres
Ruzzi também acredita que as aulas online contribuíram para a divisão desigual dos afazeres domésticos. “Muitas relatavam que ajudavam os filhos porque o companheiro não tinha paciência. No entanto, não eram pedagogas. É preciso dividir”, diz. “Mais uma vez, percebe-se que a maternidade escancara essa desigualdade.” Outras mulheres, divorciadas, atendidas pela advogada relataram que a visitas aos filhos tinham que ser na própria casa, uma vez que elas ficavam encarregadas de cozinhar e cuidar das crianças visitadas pelos pais.
A especialista em gênero vê o recuo na percepção de que o trabalho doméstico é dividido igualmente como positivo. “Mas não pode parar por aí, as mulheres estão exaustas e precisam que os companheiros dividam as tarefas de forma proporcional para que a casa siga funcionando”, afirma. “Antes da pandemia, elas podiam se socorrer entre si, recorrer a outras mulheres da família. Mas, com a Covid, essas redes não puderam mais ser acionadas.”
Quando um homem lava a louça ou cozinha, diz Del Monde, não significa que a repartição ocorra de forma mais igualitária. “Isso revela quanto há uma baixa percepção entre eles sobre toda a dinâmica que uma casa envolve. Existe uma gestão efetiva do trabalho doméstico que envolve planejamento e manutenção”, explica. “Os afazeres domésticos têm de ser compreendidos não como uma atividade única, mas como um sistema com as mesmas lógicas do trabalho produtivo.”