Na contramão de estatuto, 7 a cada 10 projetos sobre adolescentes querem endurecer punições
Instituto revela que propostas para crianças e adolescentes que cometem infrações têm viés punitivista e vão na contramão do ECA
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
Sete em cada dez projetos no Congresso Nacional que envolvem crianças e adolescentes que cometeram atos infracionais conflitam com os princípios estabelecidos pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), legislação que visa à proteção integral de crianças e adolescentes, assegurando a efetivação de seus direitos fundamentais.
O levantamento do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo), encomendado pelo Instituto Alana, mostra que 244 das 338 proposições (ou 72%) relacionadas ao tema — desde a criação do ECA, em 1990 — seguem um viés punitivista. Segundo a pesquisa, a maioria delas é sobre o aumento do tempo de internação nas unidades socioeducacionais e a redução da maioridade penal.
Debate travado na Câmara desde a promulgação do estatuto, 32 anos atrás, como destaca Thaisi Bauer, coordenadora do Grupo de Trabalho de Socioeducação do movimento Agenda 227, reduzir a idade mínima para a imputação de pena é uma medida preocupante, por dois motivos principais: o impacto orçamentário aos estados e o fato de que, segundo Bauer, os adolescentes vão ser cada vez mais lesados.
“Isso fere o princípio da prioridade absoluta (em políticas públicas e ações de governos), a garantia de direitos de crianças e adolescentes, e que sejam livres de abuso, da violência. São propostas contrárias aos princípios do ECA”, diz Bauer.
Na avaliação de Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos humanos e segurança pública, propostas como essas são “demagógicas e oportunistas” e têm fins eleitoreiros.
“São propostas elaboradas por quem parece desconhecer as informações sobre a criminalidade juvenil”, afirma o advogado e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que ressalta que a reincidência criminal em sistemas socioeducativos é inferior à do sistema prisional.
Reduzir a maioridade penal e colocar mais adolescentes em presídios geraria, para ele, maior violência e criminalidade juvenil.
“Ao invés de os adolescentes ficarem em unidades para até 60 jovens, com escola, atendimento de saúde, cursos profissionalizantes, atendimento social e psicológico, iriam para presídios superlotados, com 2.000 presos onde deveriam estar 600, sem escola, trabalho e qualquer tipo de atividade. Ficariam em verdadeiras universidades do crime, locais que o estado não controla, e, sim, as facções criminosas”, conclui Alves.
O estudo destaca, também, a ausência de transparência e de sistematização de informações sobre os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e a falta de dados sobre o funcionamento do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) e de periodicidade nas avaliações de entidades e unidades socioeducativas.
Se temos tortura nas unidades já sem a presença de armamentos letais%2C e já verificamos essa situação%2C imagina se os agentes estiverem armados
No caso do Sinase, de acordo com o estudo, não há números apresentados pela administração pública há três anos, e falta de um retrato atualizado do sistema nos últimos seis anos.
As propostas analisadas desde a promulgação do ECA tramitam no Congresso Nacional — em sua maioria, na Câmara dos Deputados. O restante, no Senado.
Alguns desses projetos têm avançado rapidamente, destaca Thaisi Bauer: “O projeto dos agentes socioeducativos integrados à segurança pública passou em três comissões só neste ano. A tramitação avançou, embora o projeto estivesse parado antes das eleições.”
Agentes de unidades socioeducativas integrados à segurança pública
Um dos exemplos de propostas de caráter punitivista citados pelos pesquisadores é o projeto de lei n° 3358, de 2019.
Entre outros de mesma finalidade, o PL considera de natureza policial a atividade de agentes penitenciários e também a dos socioeducativos, transformando esses últimos em integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública.
“Essa tentativa de mudança seria apagar completamente o Sinase, sistema pensado diretamente para a exceção das medidas socioeducacionais. Queremos garantir que o caráter educativo permaneça, fazendo alusão aos princípios do ECA e do Sinase aos adolescentes e jovens que estão nesses espaços”, afirma Thaisi Bauer.
Outros projetos, como o PL 6438/2019, requerem a posse de armas pelos agentes socioeducativos e demais servidores públicos.
Ariel de Castro Alves se põe contra as duas medidas. Ele avalia que a inclusão desses profissionais na área de segurança pública pode gerar mais casos de maus-tratos nas unidades de internação. Episódios corriqueiros, segundo o advogado.
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“Os agentes socioeducativos devem ser socioeducadores e não carcereiros ou policiais. Devem atuar como educadores sociais, de forma pedagógica e visando à inclusão social dos adolescentes, e não como repressores”, afirma Alves.
O uso de armas de fogo nas unidades, prossegue, poderia gerar tragédias em casos de conflitos e rebeliões, com mortes de internos e funcionários: “Os funcionários podem, inclusive, ser rendidos pelos internos e as armas seriam usadas contra eles.”
São propostas elaboradas por quem parece desconhecer as informações sobre a criminalidade juvenil
Thaisi Bauer também afirma que práticas de violência e tortura contra os adolescentes nas unidades são comuns e já levaram alguns à morte.
“Se temos tortura nas unidades sem a presença de armamentos letais, e já verificamos essa situação, imagina se os agentes estiverem armados. Essas situações podem ser mais corriqueiras e tirar o caráter pedagógico, deixando só o punitivista”, afirma a coordenadora da Agenda 227.
A organização destaca, em nota, que PLs como esses desvirtuam o que deve ser a função do agente socioeducativo e ferem vários dispositivos do ECA. Eles se apresentariam, portanto, “como um risco à garantia dos direitos e a própria integridade dos adolescentes em cumprimento das medidas socioeducativas”.
Propostas do movimento
A Agenda 227, movimento em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes como prioridade absoluta no centro do debate eleitoral, apresentou a candidatos presidenciáveis 148 propostas de políticas relacionadas aos direitos dessa população.
Dessas, sete são sobre crianças e adolescentes que cometeram atos infracionais. As medidas, segundo o texto da organização, “vão no sentido de garantir proteção a essa parcela da população, com oportunidades e condições dignas de vida”.
Os projetos envolvem a regulamentação da carreira dos agentes socioeducativos, de forma a garantir que sua atuação se baseie nas práticas pedagógicas e ressocializadoras, impedindo que o profissional seja vinculado à segurança pública.
Outras medidas visam impedir a superlotação das unidades socioeducativas; assegurar o direito à vida e à liberdade; o acesso de adolescentes que sofrem ameaças de morte a serviços e políticas públicas; garantir os princípios da excepcionalidade e brevidade da internação provisória e fortalecer o caráter pedagógico das medidas, contando com um programa nacional de educação e aprendizagem nas unidades.
Crítico às propostas que tramitam no Congresso Nacional, Ariel de Castro Alves considera que a preocupação deveria se direcionar ao cumprimento de leis como o ECA, “cobrando políticas públicas e orçamentos que garantam a prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes, conforme prevê a Constituição Federal”.
As fiscalização das unidades onde os adolescentes estão custodiados é mais um ponto defendido pelo advogado: “visando, assim, à prevenção ao envolvimento com a criminalidade, por meio da educação e oportunidades de trabalho, aprendizagem e profissionalização.”