Presos têm jejum em períodos de 12 a 17 horas em SP, revela Defensoria: ‘Pena de fome'
Inspeção constatou intervalos entre refeições a partir de 14h em mais da metade das penitenciárias; órgão enviou dados à ONU
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
Alimentos em pouca quantidade, refeições pouco nutritivas — com proteína de origem animal insuficiente — e não balanceadas, ausência de frutas, verduras e legumes, sem variedades e com impurezas, como insetos e pelos. Mais de 14 horas de intervalo entre a última refeição de um dia e a primeira do seguinte. Esse é o cenário das pessoas privadas de liberdade nas penitenciárias paulistas inspecionadas pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Do relatório completo, divulgado em abril deste ano, a partir de vistorias realizadas durante a pandemia, os dados sobre nutrição foram enviados em maio para a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura), agência da ONU (Organização das Nações Unidas) dedicada à erradicação da fome no mundo.
O documento intitulado “Pena de fome” denuncia, em oito páginas, os detalhes sobre a alimentação nas 27 unidades inspecionadas pelo Nesc (Núcleo Especializado de Situação Carcerária). Em mais da metade delas, os presos eram obrigados a realizar um jejum compulsório.
Em um trecho da carta, os órgãos signatários destacam que houve negligência por parte das autoridades para garantir o fornecimento de água e alimentos adequados. “Os detentos estavam muito mais magros que antes [da pandemia], com aspecto de doentes”, escrevem.
As inspeções realizadas pela Defensoria apontaram situação de extrema insegurança alimentar em duas penitenciárias — CDP (Centro de Detenção Provisória) de Limeira e CDP de Americana — e quantidade insuficiente de proteína em 31% das refeições do CDP e CR (Centro de Ressocialização) de Limeira.
Os demais presídios vistoriados também não cumprem os padrões de segurança alimentar, uma vez que não possuem nutricionista para preparar e definir as refeições — exceção feita à Penitenciária Feminina da Capital.
“Através das normativas provamos por A + B o que eles compraram, e fizemos cálculos para mostrar que [a refeição] não tem quantidade, [há] pouca proteína. Comem arroz, feijão e salsicha, ou linguiça”, afirma ao R7 o defensor público Mateus Oliveira Moro, que ainda cita flagrantes de leite vencido, pão esverdeado, garrafas de leite no sol para produzir coalhada, entre outros.
Cinco refeições para os presos seriam o cenário ideal, segundo resolução citada por Moro. “E eles têm apenas três. Se aumentasse para quatro, pelo menos, ficaria mais humano”, diz o defensor.
Além dos dados coletados, a vistoria também ouviu relatos das pessoas privadas de liberdade: a alimentação não é servida em quantidade suficiente em 85,2% das unidades, segundo as pessoas presas, e em 92% não há variedade nas refeições.
Acrescenta-se a isso o fato de que, em cerca de sete em cada dez dos estabelecimentos inspecionados, os presos disseram ter encontrado impurezas na comida, como lembra Moro: “Às vezes pedaços de pedra, rabos de rato, segundo relatos dos presos”.
O resultado de todo o cenário de insegurança alimentar, prossegue, é o adoecimento precoce no cárcere.
“Se só come carboidrato e salsicha, é isso que acaba acontecendo. Se fala que acima dos 80 anos se pode ter prisão domiciliar. Talvez fosse o caso de pensar pessoas de 60. Quando estivemos nas inspeções, [notamos que] essas pessoas têm aparência de ter muito mais [idade] pelo estado de saúde”, completa.
Sem jumbo, presos emagreceram muito
A proibição das visitas ao longo da pandemia e as regras posteriores para familiares que desejavam ver os presos também tiveram impacto na alimentação e na saúde deles.
Isso porque, como constatou a Defensoria, o chamado "jumbo", a cesta em que são levados produtos alimentícios, de higiene pessoal e vestuários, era parte essencial das refeições.
Mesmo após o retorno das visitas, o jumbo ainda não pode ser entregue, comenta Mateus Moro. O que passou a se permitir foi o envio de mantimentos por Sedex.
No entanto, diferentemente do que ocorria com as cestas entregues diretamente aos detentos, produtos não processados não podem ser enviados pelos Ccorreios, e muitas famílias não possuíam condições de arcar com os custos do Sedex. Somam-se a isso os relatos de familiares que não tinham esclarecido o que podia ser enviado e o que não seria permitido.
“Ficou um gap de oito ou nove meses sem visitas, e quando voltaram as famílias disseram que estavam muito mais magros e doentes. O kit de higiene e roupas do estado também não dá. Sem os jumbos, eles ficaram com menos comida, além de pasta de dente, roupas e outros produtos. Até hoje não voltaram”, afirma Moro, que ressalta que “a pandemia piorou o que já era ruim”.
No caso dos jumbos, o defensor critica o Estado por terceirizar às famílias a responsabilidade de gestão dos recursos das pessoas presas, utilizando o exemplo de São Paulo. A maior parte da população vive na região metropolitana e cidades próximas, cita ele, e a maior parte dos presídios está no interior.
“Ou seja, embora a lei de execução penal, que tem 37 anos, indique que a pessoa cumpra a pena perto da família, para se readaptar ao meio social, isso não acontece. O Estado manda a pessoa para outra cidade a 10 km de Mato Grosso do Sul, por exemplo”, comenta Moro, que prossegue:
“Imagine as pessoas presas, pobres e miseráveis; suas famílias, mesmo pobres, gastam o que não têm para pegar um ônibus, viajar 11 horas para levar kits de comida, higiene e roupas, insuficientes pelo governo. O Estado terceiriza aos familiares a gestão dos recursos das pessoas presas.”
É nesse contexto, segundo o relatório, que as facções criminosas atuam, em trecho que atribuem a relatos de agentes penitenciários. Nas prisões paulistas, o PCC (Primeiro Comando da Capital) supre a ausência do Estado e fornece materiais de higiene e limpeza nas prisões, aponta a Defensoria.
“Se o Estado não dá e nem a família consegue, quem vai dar? A facção criminosa. Você pode entrar réu primário, tendo cometido um crime sem grave ameaça, e pode sair integrando uma facção”, reflete Mateus Moro.
Racionamento de água
A prática do racionamento de água, à qual a Defensoria classifica de “ilegal e desumanada”, foi constatada em 70% das penitenciárias vistoriadas. Em 21% delas, por exemplo, a água era oferecida em um período de menos de uma hora por dia.
O órgão cita as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, as chamadas Regras Mandela: entre elas, o item 1 da regra 18 estabelece que, a fim de que se mantenham todos os reclusos limpos, devem ser-lhes fornecidos água e artigos de higiene necessários à saúde e limpeza.
“Essas pessoas não têm agua nem comida. Autoridades colocam eufemismos no papel, como redução da água. Mas, nas inspeções, quando andamos pela penitenciária, como no extremo oeste, em Presidente Prudente, quase em Mato Grosso do Sul, é um calor infernal”, relata Mateus Moro, que cita outro exemplo, em São Vicente, no litoral paulista.
Ali, descreve, os defensores encontraram celas com 12 camas e 43 pessoas durante a pandemia, sem itens de higiene como água e sabonete.
“Faltam comida, água [...] quando vemos celas superlotadas, o cheiro que sai desses lugares é a banalização do mal. São tecnologias de tortura. Não ter alimentação e água é uma tecnologia sutil e desumana”, completa.
Outro lado
Em nota, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) garantiu prezar pelas condições de habitabilidade e salubridade de suas unidades.
A pasta afirma que o intervalo de jejum entre a última refeição de um dia e a primeira do seguinte é menor que o apontado pela Defensoria, destacando que ao menos café, almoço e jantar são servidos nas unidades prisionais diariamente. A quantidade de três refeições por dia foi alvo de críticas dos defensores.
A secretaria disse ainda que a alimentação é balanceada e segue um cardápio estabelecido e elaborado por nutricionistas, e negou que haja racionamento de água em suas unidades: “Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água por pessoa por dia”.
Relatório completo
O relatório da Defensoria revelou que 81,5% — ou 23 — das 27 unidades inspecionadas durante a pandemia estão com superlotação. A ocupação chega a 230,5% nas penitenciárias masculinas.
Entre os problemas detectados, destaques para a disseminação de doenças, falta de atendimento médico e de infraestrutura — como a ausência de ventilação, colchões, roupas, energia e saneamento — e alimentação de péssima qualidade.
Segundo o órgão, as condições já eram de precariedade antes da chegada da Covid-19 ao país, e pioraram mais ainda depois de 2020.
No CDP (Centro de Detenção Provisória) de São Vicente (SP), por exemplo, os agentes constataram 43 presos dividindo o espaço de uma cela cujo limite era para 12 pessoas, ou seja, espaços propensos para a disseminação do coronavírus.
Sobre o relatório, a SAP não comentou os números, disse que “a população carcerária registra sucessivas quedas de superlotação nos últimos três anos” e alegou que a atual gestão entregou oito novos presídios e tem outros cinco em construção.