Sem sinal: como bairro ‘esquecido’ de São Paulo vive a pandemia
Internet escassa ou até inexistente afasta Marsilac ainda mais do resto da capital paulista, gerando novos problemas e agravando os antigos
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
“Se à noite tem crime, não podemos ligar para a polícia. Se você quer ligar pros bombeiros para salvar alguém, não dá tempo”. É com este exemplo que Luis Eduardo Gomes da Costa, presidente da SOS Marsilac, descreve a “grande pedra no sapato” dos moradores do distrito ao extremo sul de São Paulo: a falta de sinal de telefonia e de internet, fonte de problemas antes e durante a pandemia do novo coronavírus.
Leia também
Enquanto os casos de covid-19 crescem em larga escala no restante da cidade, o distrito de Engenheiro Marsilac vive uma realidade diferente. Localizada entre o bairro de Parelheiros e o município litorâneo de Itanhaém, a extensa região permanece como uma ilha – foram apenas três óbitos, segundo última atualização quinzenal da prefeitura. Porém, mesmo esquecidos e distantes do caótico cenário paulistano, seus habitantes enfrentam dificuldades muito particulares e complexas.
Veja também: Na Brasilândia, novo coronavírus "é só mais um motivo para morrer"
À população local, de pouco mais de 8.000 habitantes, a falta sinal de telefonia e internet afeta quem precisa do auxílio emergencial e crianças e jovens que precisam estudar à distância, cujas famílias ainda percebem no bolso a falta de merenda após o fechamento das duas escolas estaduais que existem ali.
Mãe de Vitor Henrique, 16, e Vinicios Hebert, 15, Luzaine Ferreira da Silva sente na pele os efeitos da falta de estrutura durante a pandemia: os R$ 55 do programa Merenda em Casa só chegaram para Vitor, mas não para Vinicios. Pela falta de sinal, os jovens também não conseguem acessar os estudos pela internet. “Meu filho estava pensando em fazer o Enem, mas esse ano está praticamente perdido. Os alunos vão para o próximo ano sem qualidade e aproveitamento”, diz.
Luzaine está desempregada há cinco anos, e neste momento viu o auxílio emergencial como um fôlego para as finanças da família. Porém, já teve problemas com a segunda parcela: descobriu que já tinham sacado o valor no centro de São Paulo, e fez um boletim de ocorrência. Agora esperará por até 30 dias para a resolução – ou não – do problema. A situação piora: para sacar os valores e resolver os novos problemas, ela tem de se deslocar até Santo Amaro, que embora também seja na zona sul, é longe o suficiente para tirar de seu dia cerca de três horas.
Segundo relatos de Luzaine sobre a vizinhança e de membros da SOS Marsilac, os problemas com o saque do auxílio emergencial e a acessibilidade ao ensino à distância têm sido rotina por todo o distrito.
“Eu fico triste, é desrespeitoso. [Estou] sem recursos para trabalhar, ainda com todas condições difíceis que temos, e sem auxílio. Para mim, por ser mulher e ter 42 anos, é difícil me empregar. Fico indignada com esse mundo que estamos vivendo. É muita injustiça e descaso com as pessoas”, afirma a mãe.
Tão costumeiro tornou-se o problema que à população de Marsilac, sem sinal também de soluções, coube apenas driblá-lo quando possível. Há, por exemplo, horários específicos do dia em que é possível acessar a internet e fazer ligações – em poucos locais do distrito e sem qualidade, entretanto.
Veja também: Risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior do que em brancos
Para conseguir falar com Gomes, presidente da SOS Marsilac, a reportagem do R7 esperou por dias até seu encontro com Roberto, também membro da associação. O atento Roberto também se deu ao trabalho de avisar os momentos mais propícios do dia para o contato com a moradora: “a Luzaine está online. Aproveita [o sinal para falar com ela]”.
Por que o sinal é tão ruim – e como resolver
Tampouco os altos índices de isolamento social – mais de 70%, nas últimas medições, em abril – são para se animar: a baixíssima quantidade de antenas de celular – apenas duas – provavelmente torna os dados imprecisos, o que impossibilita um panorama claro sobre o local às autoridades e as consequentes ações efetivas no combate à pandemia.
Como comparação, a Vila Leopoldina, área nobre da zona oeste paulistana, com população (39.485) quase cinco vezes maior que Marsilac, tem 34 torres – 17 vezes mais que o distrito da zona sul.
Veja também: Covid-19: rastreamento de celulares coloca privacidade em risco?
O engenheiro de telecomunicação Julian Portillo conta que, no local, a única operadora com torres oferece cobertura muito precária. “Quando não há torre ou sinal, você não consegue fazer o monitoramento e saber se há aglomeração. A cobertura é praticamente inexistente, e pode mascarar o monitoramento. Nas regiões periféricas em geral, onde se tem menos torres ou quase inexistentes, o monitoramento indicará um dado impreciso pela quantidade de torres”, afirma Portillo.
Presidente da Abrintel (Associação Brasileira de Infraestrutura para as Telecomunicações), Luciano Stutz pontua que este é um problema antigo nos bairros periféricos paulistanos, que se agravou ainda mais na pandemia, com o aumento do uso da rede após a quarentena. Stutz afirma que um dos principais impedimentos para resolução imediata do problema é a Lei Municipal de Antenas (nº 13.756, de 2004), que é considerada muito antiga e restritiva em relação às novas tecnologias do setor. “Basta imaginar que é uma lei de 16 anos atrás, anterior ao advento do 3G”, comenta.
Na avaliação do mandatário e da associação, a falta de infraestrutura em regiões periféricas é um amplificador de desigualdades, exemplificado pelas situações com o auxílio emergencial e ensino à distância. O problema é de nível nacional: segundo estudo do IBGE de 2018, 46 milhões de brasileiros não têm acesso à internet.
Há sete anos, foi proposto um projeto de lei (PL 751/2013) pela modernização da Lei de Antenas da capital, mas até agora sem aprovação. Posterior ao ‘PL das Antenas’ veio a CPI das Antenas, com finalidade de auxiliar na solução de problemas relativos à prestação de serviços, sugerir novas regulamentações e revisar os critérios de instalação de antenas na cidade. Tampouco teve conclusão até o momento.
“A conectividade é fundamental para manter a dinâmica social e econômica. A Lei de São Paulo precisa ser atualizada urgentemente para refletir as novas tecnologias e realidade urbana da cidade. Com o isolamento social, espera-se que a Câmara Municipal possa priorizar a aprovação da nova lei”, diz Stutz, que cita Santo André e São José dos Campos como exemplos de municípios que já atualizaram suas legislações. “São Paulo pode não participar da implantação inicial do 5G no Brasil, ou não ter uma rede boa dessa tecnologia, se não alterar sua lei”, conclui.
A reportagem procurou pela Prefeitura de São Paulo e pelo SindiTelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviços Móvel Celular e Pessoal). Ambos se posicionaram favoráveis à modernização da Lei de Antenas. O sindicato ainda afirmou, em nota, que “a atual lei está desatualizada, o que dificulta a expansão das redes, especialmente em regiões periféricas”. Em efeitos práticos, o que resta, portanto, é que a CPI prossiga seu cronograma e que na Câmara Municipal se discuta a atualização da lei.
Além da pandemia
Embora a pandemia tenha agravado as dificuldades dos moradores de Marsilac, quem ali vive já tinha e ainda tem muito a dizer sobre outros problemas vividos na região além da própria falta de sinal.
Presidente da SOS Marsilac, Gomes relata que há mais de 300 famílias sem água tratada: “Já faz muito tempo. De três em três dias eles vêm nos procurar por ajuda”.
Veja também: Bairros da periferia de SP somam mais mortes por covid-19
O bairro de Luzaine é um entre os locais. Ali, não há saneamento básico nem água potável. “Pegamos um pouquinho da água que tem de uma mina aqui e dividimos com outras pessoas. Já foi feito estudo no posto de saúde do Emburá (bairro em Marsilac) e disseram que é água contaminada. E usamos essa água pra tomar banho e fazer comida”, conta.
O transporte também é uma barreira para quem mora no distrito. Dali até o centro de São Paulo, num trecho de entre 50 e 60 km o trajeto leva três horas. Moradores de cidades da Grande São Paulo, por exemplo, podem demorar pouco mais de uma hora por meio dos trens CPTM para deslocamentos com distâncias parecidas.
“[O poder público] é muito ausente no bairro. Tem vários lugares que as pessoas andam até oito quilômetros para pegar ônibus e trabalhar”, afirma Gomes.
A ausência do poder público denunciada pelos moradores e membros de associações colocou no bairro a pecha de ‘esquecido’, e pode ser observada em outros aspectos.
Segundo o último Mapa da Desigualdade da cidade, produzido pela Rede Nossa São Paulo, não há no distrito centros culturais, espaços ou equipamentos públicos de cultura. Também não há cinemas, museus e teatros e acervos de livros. Equipamentos públicos de esporte, tampouco.
Veja também: Situação crítica em Sapopemba (SP) encoraja ações de moradores
“Por ser um bairro patrimônio [ambiental] do Estado, tradicional nesse sentido, teria que ter mais uma atenção, principalmente na comunicação. Lá a comunicação está um caos. Como vai acompanhar a programação da escola, sem internet?”, questiona o presidente da SOS Marsilac.
O hospital mais próximo fica em Parelheiros, também na zona sul, e os atendimentos de ambulância, quando há sinal para chamá-los, levam de duas a três horas para chegar, relatam os moradores. “Quando está lá, já demora. Mas nem sempre está”, diz o responsável pela associação. Em Marsilac, ainda segundo o mapa, a idade média da população ao morrer é de pouco mais de 57 anos. Em Moema, região nobre, 80,6 anos. “Quando é coisa ruim, entramos na estatística. Quando é verba, não chega um real pra nós. É má distribuição de renda”, afirma Gomes.