Anorexia e bulimia podem matar. Tire suas dúvidas sobre os distúrbios alimentares
Especialistas respondem às principais questões sobre essas doenças
Saúde|Giorgia Cavicchioli, do R7
Se olhar no espelho e ver uma imagem distorcida da realidade, enxergando-se acima do peso de verdade, pode ser uma evidência muito forte de anorexia e a bulimia. Apesar de perigosos à saúde, ambos os transtornos alimentares ainda são subestimados e geram muitas dúvidas. Para te ajudar a desvendar as principais questões, o R7 conversou com a psicóloga Renata Pazos, especialista em abordagem corporal, e com o psiquiatra Sérgio Tamai. Veja a seguir!
Qual a diferença entre anorexia e bulimia?
Psicóloga: Tanto a anorexia nervosa quanto a bulimia são transtornos psicopatológicos. No entanto, a primeira tem um quadro marcado pela restrição alimentar em que o objetivo da pessoa é perder peso ou chegar à maior magreza possível. A pessoa com anorexia vai restringindo a ingestão alimentar, come pouco ou quase nada.
Do ponto de vista psíquico podemos relacioná-la a funcionamentos mais rígidos, modos mais restritivos e unilaterais, ao controle excessivo, entre outros. A bulimia nervosa também é caracterizada pela busca de emagrecimento, mas não na mesma intensidade que acontece nos casos de anorexia. A pessoa com bulimia em geral não consegue manter a restrição alimentar, e sendo assim, apresenta uma alternância entre a tentativa de não comer ou comer pouco alternada à perda do controle com episódios de compulsão alimentar. A compulsão traz mais fortemente sentimentos de culpa, arrependimento, e punição além do desconforto físico e psíquico. Compensatoriamente a pessoa pode buscar se livrar dos alimentos ingeridos induzindo o vômito por exemplo. Psiquicamente os transtornos de bulimia também relacionam-se a funcionamentos rígidos e unilaterais mas aqui também aparecem indivíduos em que mais fortemente às questões do descontrole se tornam um fator significativo de sofrimento.
Psiquiatra: As pessoas com essas doenças escondem a verdade. Quando se tem anorexia é mais fácil de as pessoas perceberem. Porque é visível. O diagnóstico da bulimia é mais difícil. Geralmente, o diagnostico é quando o médico especializado percebe algumas coisas. Dentistas conseguem detectar isso. Pessoas com essa doença têm um desgaste do esmalte do dente por causa do ato de vomitar. Ou é descoberto por um gastro, porque provoca uma inflamação da mucosa do esôfago por causa do vômito. É muito raro um bulímico procurar ajuda de um psiquiatra.
Só tem anorexia/bulimia quem é acima do peso?
Psicóloga: Não há absolutamente nenhuma razão para afirmar isso. Qualquer pessoa com qualquer peso pode desenvolver um quadro de anorexia ou bulimia. É evidente que existem outros fatores associados a esses transtornos que podem facilitar que essas psicopatologias acometam determinadas pessoas, mas afirmar que apenas pessoas acima do peso apresentam esses transtornos alimentares, não.
Normalmente é a pressão de pessoas próximas para o alcance de um padrão que desencadeia o transtorno?
Psicóloga: Acho bastante relevante dizer que, apesar de estarmos falando em transtornos que acometem milhares de pessoas, temos que ter cuidado com generalizações. É sabido que cada indivíduo irá relacionar-se com a vida de acordo com as próprias vivências, histórias, repertório e elaborações. É perigoso tentar individualizar e buscar um “culpado” ou responsáveis para esses quadros psicopatológicos pois eles relacionam-se a questões de ordem individual, mas também coletiva. Dito isso, posso afirmar que o “padrão de beleza” imposto pela sociedade em que estamos inseridos exerce um papel avassalador na psique das mulheres (nos casos de anorexia, bulimia e obesidade). Se considerarmos que a mente busca explicar as coisas de modo mais padronizado, segmentado e ordenado fica compreensível a busca “essa ou aquela” causa dos transtornos, mas não existem causas exclusivas para tal. Existem vários fatores que somados levam ao desenvolvimento desses quadros. Os principais são fatores biológicos, fatores psíquicos, fatores familiares e em especial as questões socioculturais aqui diretamente relacionadas à associação da beleza com a magreza. Sempre houve, ao longo da história, relatos de ideais corporais, mas nunca foi tão impossível atingir esse ideal como é atualmente. Nesse sentido, considerando os fatores biológicos, psíquicos e familiares acabam sendo as pessoas mais suscetíveis a desenvolver esses transtornos e a internalizarem esse discurso dominante. Também vale dizer que existe um fator muitíssimo relevante quando discutimos as questões de padrões de beleza: existe hoje o mercado do emagrecimento – uma indústria que fatura muito em cima dessa insatisfação de imagem.
Psiquiatra: Normalmente, ela tem essa tendência. O fato de ter pessoas com uma demanda no sentido de controle pode ter importância na gênese e na manutenção. A tendência genética vai determinar o curso da doença. Uma vez deflagrado, independente de deixar de existir, a pessoa vai continuar mantendo o padrão mesmo que ninguém mais exija aquilo.
Só atinge mulheres na adolescência e pré-adolescência?
Psicóloga: Não exclusivamente. O começo é tipicamente na adolescência mas pode aparecer na vida adulta também. A anorexia e a bulimia acometem em esmagadora maioria (90%) as mulheres. A relação entre esses transtornos alimentares e a fase de vida da mulher (a adolescência e a pré-adolescência) têm certa relevância e estão mais intimamente relacionados ao desenvolvimento do corpo, da autoimagem e ao desenvolvimento psíquico dessas garotas. A adolescência é uma fase em que existe uma possibilidade muito maior de ser tragado por esses discursos dominantes, se considerarmos que há um estado muito “fluido” relacionado ao corpo, à própria identidade, à própria imagem, etc. A adolescente está se encontrando naquele corpo que se transforma o tempo todo, e tende a muitas vezes não compreendê-lo, criticá-lo. Ela ainda está se encontrando na mensagem que esse novo corpo representa e pode passar para o mundo. Nesse sentido é muitíssimo importante que cada vez mais as meninas sejam empoderadas de e em sua feminilidade, e acredito que o feminismo é um caminho valiosíssimo nessa fase da vida.
Quem tem anorexia também tem bulimia?
Psicóloga: Não necessariamente, como citado acima. São quadros distintos.
A anorexia/bulimia pode matar?
Psicóloga: Sim, algumas pesquisas apontam a anorexia nervosa como a doença psiquiátrica que mais mata. É uma doença crônica que tem cura, mas são precisos anos para recuperação completa, no caso da anorexia apenas 50% dos casos, 30% seguem curso crônico e aí até 20% chegam a morte. Já na bulimia a mortalidade é estimada em torno de 4%.
A pessoa para de comer quando tem anorexia?
Psicóloga: Algumas pessoas podem chegar à restrição alimentar absoluta em casos graves de anorexia nervosa.
Laxantes e água em excesso normalmente são formas de eliminar mais comida?
Psicóloga: Existem relatos de pessoas que utilizam/compartilham de determinados “métodos” compensatórios para eliminar o excesso de comida ingerido em casos de compulsão alimentar, mas é preciso ter cuidado ao afirmar isso também para entender qual o sentido da ingestão excessiva de água e uso de laxantes.
A indução ao vômito, nos casos de bulimia, pode causar problemas de saúde?
Psicóloga: Sim.
A anorexia/bulimia pode ser considerada uma compulsão ao contrário?
Psicóloga: Não acho adequado afirmar nada em base de oposição pois isso causa confusão e mistura as coisas. Como citado anteriormente, no quadro de bulimia nervosa existem episódios de compulsão alimentar e, muitas vezes, a indução ao vômito. Mas também é possível haver indução ao vômito sem episódios de compulsão.
Psiquiatra: As pessoas com a doença têm uma sensação de prazer ao ver pessoas magras. Dá uma sensação de bem estar e de prazer. Não é que tem ojeriza pela gordura. É uma tendência a buscar a magreza. Quando a pessoa é viciada na magreza.
Homens podem ter anorexia/bulimia? Quando?
Psicóloga: Sim, sempre. Assim como as mulheres.
A anorexia/bulimia causa queda de cabelo e fraqueza de unhas?
Psicóloga: Sim.
Dieta em excesso pode se tornar anorexia/bulimia?
Psicóloga: Acho importantíssimo discutir a questão da normatização das dietas de restrição alimentar em busca de um padrão de beleza específico. Quando nos referimos à dieta, podemos estar falando um plano de alimentação elaborado por um nutricionista, por exemplo. Nesse caso o uso da palavra “dieta” já nos levaria para outro tipo de associação e discussão. Se estamos falando em dieta restritiva, não acredito que haja algo que seja “em excesso” ou “falta” a questão central. Mas é importante que seja considerado além da questão do peso, a relação daquela pessoa com a comida, com o alimentar-se e todo o seu significado literal e também simbólico. Aqui abro um parênteses importante: a necessidade urgente de discutir a gordofobia como ponto essencial relacionado às questões de padrão de beleza.
Psiquiatra: O quanto as doenças podem ser genéticas ou sociais? Existem pessoas que têm pais que têm anorexia e elas têm mais tendência de ter esse problema. A gente sabe que isso pode ser deflagrado por conta dessa influência. Elas têm uma atração pela magreza e se elas vivem no meio que isso é valorizado, isso se torna importante.
Uma vez anoréxica(o)/bulímica(o), pra sempre anoréxica(o)/bulímica(o)?
Psicóloga: Como foi dito anteriormente, existem casos de cura, mas relembrando: qualquer generalização é redutível e perigosa principalmente quando estamos falando de questões psicopatológicas/psíquicas. Nos transtornos alimentares existem dificuldades no tratamento que relacionam-se à atual facilidade de acesso à todo tipo de informações sobre os transtornos pela internet. Muitas vezes as adolescentes podem encontrar inclusive sites que ensinam as meninas com anorexia e bulimia a como enganar os pais, profissionais de saúde, etc. São os conhecidos sites “pró-anorexia e pró-bulimia”. É importante considerar os aspectos simbólicos envolvidos nos processos de adoecimento. Atitudes coletivas influenciam também de maneira inconsciente o comportamento humano, mas é sempre preciso levar em consideração a história particular de cada indivíduo para que possa haver um contato mais individualizado no tratamento e cura desses pacientes.
Psiquiatra: Depende da pessoa. Ela pode evoluir para uma melhora ou pode ter um quadro de melhora e depois passar a ter um comportamento semelhante. Depende muito da pessoa.
Por fim, a psicóloga faz uma reflexão sobre o assunto:
Psicóloga: Acho relevante também refletir sobre o lugar social em que a mulher que desenvolve esses transtornos está “colocada” sob os aspectos sócio-culturais previamente citados. Antes de mais nada vale perguntar: de qual mulher estamos falando? É uma mulher branca, cisgênera, heterossexual, classe média? Ou uma mulher transexual, lésbica, negra, classe baixa? Avaliar esse contexto aponta para um olhar mais profundo sobre o machismo que vai norteando e delimitando determinados padrões, e assim, cercando a mulher à qual estamos nos referindo. Isso psiquicamente produz um peso e um “lugar” que ela pode ocupar de diversas maneiras, vide as atuais manifestações acontecendo em vários lugares do Brasil e o Junho Feminista. Acho interessante pensar na mulher que encarna, que corporifica esses padrões impostos pela sociedade a ponto de chegar à morte. E novamente aponto a relevância em discutirmos as questões relacionadas à gordofobia cotidianamente validada pelo mercado do emagrecimento que vai desde os tratamentos, dietas, academias, alimentos até medicamentos para produzir esses corpos, essas vidas cada dia menos autênticas, menos vivas e mais padronizadas. Aqui cito uma frase que gosto muito, mais ou menos assim: “Se amanhã todas as mulheres acordassem amando seus corpos, pense quantas industrias iriam falir”.