Especialistas destacam o risco de agravamento rápido da gripe aviária
Há meses, a doença vem preocupando cientistas e autoridades da saúde pública dos EUA
Saúde|Apoorva Mandavilli, do The New York Times
Quando a gripe aviária atingiu o gado leiteiro há um ano, parecia possível que se espalhasse apenas por alguns rebanhos isolados e desaparecesse tão rapidamente quanto surgira. Em vez disso, o vírus infectou mais de 900 rebanhos e dezenas de pessoas, resultando em uma morte – e o surto não mostra sinais de diminuição.
Mais de uma dúzia de especialistas entrevistados afirmou que uma pandemia não é inevitável, mesmo agora. Mas uma série de eventos nas últimas semanas indica que a possibilidade já não é remota. As diretrizes ineficazes, os testes inadequados e os longos atrasos na divulgação de dados – ecos dos erros cometidos durante a pandemia de Covid – desperdiçaram as oportunidades de conter o surto.
Em um exemplo emblemático da desorganização, alguns rebanhos leiteiros em Idaho, que foram infectados pela gripe aviária na primavera setentrional, apresentaram sintomas leves pela segunda vez no fim do outono, segundo a apuração feita pela reportagem. Em meados de janeiro, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda, sigla em inglês) declarou que nenhuma infecção nova em rebanhos do estado havia sido identificada desde outubro. Mas as autoridades estaduais mencionaram publicamente casos mais leves em novembro.
Segundo os especialistas, não é surpresa que um segundo surto de infecções cause sintomas mais brandos em bovinos, e que essa pode ser uma notícia boa para os fazendeiros. Mas as reinfecções sugerem que o vírus, chamado H5N1, poderia circular nas fazendas indefinidamente, encontrando oportunidades para evoluir para uma forma mais perigosa – um cenário de “alto risco”, disse Louise Moncla, bióloga evolutiva da Universidade da Pensilvânia, acrescentando: “Poderíamos facilmente acabar com a circulação endêmica do H5 em rebanhos leiteiros sem sintomas, dificultando uma detecção rápida ou simples.”
De acordo com ela e outros cientistas, é impossível prever se o vírus desenvolverá a capacidade de se espalhar entre as pessoas, muito menos quando. Mas a preocupação é que, se a gripe aviária encontrar a combinação certa de mutações genéticas, o surto pode se intensificar rapidamente. “Ainda não estou alarmado a ponto de fazer as malas e me isolar nas montanhas, mas houve mais sinais nas últimas quatro a seis semanas de que esse vírus tem a capacidade de desencadear uma pandemia”, afirmou Richard Webby, especialista em influenza do Hospital Infantil Saint Jude.
As autoridades federais também alteraram de maneira sutil seu tom ao discutir o surto, enfatizando agora a rapidez com que a situação pode mudar. “Para o público geral, o H5N1 representa um risco baixo em relação a outras ameaças que enfrenta hoje. Mas com certeza isso pode mudar. Trata-se de um vírus perigoso”, disse Nirav Shah, diretor adjunto principal do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês).
Especialistas em saúde enfatizam que há precauções que os norte-americanos podem tomar: não tocar em aves ou outros animais doentes ou mortos; fazer o teste caso haja sintomas semelhantes aos da gripe; e não consumir leite ou carne crus, nem os oferecer aos animais de estimação.
Se um surto maior surgir, o estoque federal de vacinas conta com alguns milhões de doses, embora essa imunização possa precisar ser atualizada para corresponder à forma evoluída do vírus. De qualquer maneira, as autoridades teriam de se apressar para produzir o suficiente para a população. O CDC recomenda o tratamento com o antiviral Tamiflu, mas os estudos mostraram que o medicamento não é muito eficaz no alívio da doença.
A influenza costuma afetar crianças e idosos, enquanto as pandemias de influenza, por vezes, atingem mais duramente os adultos jovens. Mas a desconfiança gerada durante a Covid pode fazer com que os norte-americanos evitem precauções, pelo menos no início.
Ao contrário da Covid, que causou estragos com sua chegada repentina, os vírus da influenza começam geralmente em uma espécie animal específica ou em certas regiões geográficas. Quando o H5N1 surgiu no Leste Asiático há quase três décadas, afetava sobretudo as aves. Nos anos seguintes, infectou pelo menos 940 pessoas, quase todas com contato próximo e prolongado com as aves infectadas; cerca de metade dessas pessoas morreu. Mas desde janeiro de 2022, quando foi detectado em aves aquáticas selvagens nos Estados Unidos, o vírus contaminou mais de 136 milhões de aves comerciais, domésticas e selvagens, ajudando a elevar o preço dos ovos. Também atingiu dezenas de espécies de mamíferos, incluindo gatos selvagens e domésticos, guaxinins, ursos e leões-marinhos.
Há pelo menos um ano, o H5N1 tem infectado o gado leiteiro, que não era conhecido por ser suscetível a esse tipo de influenza. Em algumas vacas, os efeitos foram duradouros, reduzindo a produção de leite e aumentando as chances de aborto espontâneo. E em 2024 o vírus infectou 67 americanos, em comparação com apenas um nos anos anteriores, em 2022. As fontes dessas infecções não são todas conhecidas; uma pessoa pode ter transmitido o vírus para outra em sua casa.
Muitos desses eventos são passos clássicos rumo a uma pandemia, comentou James Lawler, diretor do Centro Global de Segurança em Saúde da Universidade de Nebraska. Mas ele ressaltou: “Em vez de desencadear ações aceleradas e ampliadas nos níveis federal, estadual e local, cada alerta novo foi simplesmente ignorado.”
As infecções em rebanhos leiteiros, que surgiram pela primeira vez no Texas, pareciam estar diminuindo no último verão setentrional. Mas, no fim de agosto, a Califórnia anunciou seu primeiro caso. Os números no estado logo aumentaram drasticamente, levando o governador Gavin Newsom a declarar emergência de saúde pública em dezembro. “Foi um alerta para mim. Algo como: ‘O.k., isso não desapareceu.’ Nos últimos meses, a sensação é de que o ritmo se intensificou”, afirmou Manisha Juthani, comissária do Departamento de Saúde Pública de Connecticut.
Vários outros fatos recentes aumentaram o nível de alerta entre os especialistas. No início de dezembro, cientistas relataram que, em ambiente laboratorial, uma única mutação ajudou o vírus a infectar células humanas com mais eficiência. E, no fim do ano passado, duas pessoas – uma menina canadense de 13 anos e um morador da Louisiana com mais de 65 anos – adoeceram gravemente. Antes, a maioria das pessoas infectadas pelo H5N1 não apresentava sintomas severos. O paciente da Louisiana, que tinha problemas de saúde e cuidava de aves doentes e moribundas, morreu no início de janeiro. A menina foi colocada em suporte de vida em decorrência da falência de órgãos, mas acabou se recuperando. Os cientistas ainda não sabem como ela foi infectada; seu único fator de risco era a obesidade.
Ambos contraíram uma versão nova do vírus que é distinta daquela presente no gado leiteiro e que agora está amplamente disseminada entre as aves. Nos dois casos, o vírus adquiriu mutações ao longo da infecção que podem torná-lo mais capaz de infectar humanos. “Está claro que os vírus novos estão surgindo no reservatório de aves silvestres. Tem sido um desafio controlar todas as diferentes ameaças’, disse Moncla.
Alguns especialistas consideram particularmente preocupante o fato de que o vírus parece estar presente em fontes alimentares, como o leite e os alimentos crus para animais de estimação. Gatos domésticos morreram em vários estados, levando ao recolhimento de pelo menos uma marca de ração e a novas diretrizes federais sobre a qualidade desses produtos. “A questão do alimento cru para animais de estimação me parece bem alarmante”, comentou Jeanne Marrazzo, diretora do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas. A pasteurização elimina o vírus ativo, assim como o cozimento da carne em altas temperaturas. Ainda assim, nenhum desses processos é perfeito, observou Marrazzo: “Não há como monitorar a produção e a esterilização para garantir que o suprimento de alimentos seja seguro cem por cento das vezes.”
No ano que se passou desde o início do surto, as autoridades federais anunciaram novas medidas para prevenir ou se preparar para uma possível pandemia. Mas cada uma delas tem falhas graves, segundo especialistas. O Usda demorou a iniciar os testes de vacinas contra o H5N1 para bovinos, deixando as empresas interessadas sem direção. Marrazzo disse que o departamento divulgou as informações genéticas das amostras do vírus, mas sem especificar onde ou quando foram coletadas – detalhes que ajudariam os cientistas a acompanhar a evolução do patógeno. Também não está claro quantos rebanhos foram reinfectados ou lutam contra as infecções que já duram meses.
Em Idaho, alguns rebanhos contaminados na primavera setentrional pareciam ter se recuperado, mas voltaram a apresentar sintomas mais leves em novembro. “Com base nos dados que temos até agora, não há indícios de novas infecções ou reinfecções em rebanhos previamente afetados, mas sim de uma eliminação incompleta da infecção original”, escreveu um porta-voz do Usda em resposta por e-mail. Mas especialistas independentes afirmam que a trajetória dos sintomas sugere uma segunda onda da doença.
O programa do Usda para testar o leite a granel começou em dezembro – quase um ano depois do início do surto – e ainda não inclui o estado de Idaho. A parceria com empresas privadas pode acelerar o programa. A Ginkgo Bioworks, companhia que trabalhou com agências federais durante a pandemia de Covid, já avalia aproximadamente metade do suprimento comercial de leite do país em busca de bactérias, antibióticos e outras substâncias. “Se a inclusão do H5N1 na lista seria um processo simples, por que não adicionar esses testes à infraestrutura que já temos?”, questionou Matt McKnight, gerente da divisão de biossegurança da empresa.
No mês passado, o governo Biden anunciou um novo financiamento de US$ 306 milhões, sendo cerca de um terço destinado à vigilância, aos testes e à conscientização de trabalhadores rurais. Mas essas pessoas, em algumas regiões, como o Panhandle do Texas, ainda desconhecem o que é a gripe aviária, como ela se espalha e por que deveriam se preocupar, observou Bethany Alcauter, diretora de pesquisa e programas de saúde pública do Centro Nacional de Saúde do Trabalhador Rural, acrescentando que, como resultado, muitos ainda não usam equipamentos de proteção, inclusive em salas de ordenha, nas quais se acredita que o vírus esteja se propagando.
Os testes em humanos têm sido voluntários, o que levou à subnotificação de infecções. Poucos trabalhadores rurais aceitaram fazer o teste, temendo autoridades de imigração ou represálias dos empregadores. “Se você não procura, não encontra, certo? Não se trata de confinamentos ou restrições de atividades, mas sim de proteger cada indivíduo, dando a ele as informações necessárias”, disse Deborah Birx, que atuou como coordenadora de resposta à Covid na Casa Branca durante o governo Trump.
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