Mundo terá que conviver sempre com surgimento de novos vírus
Epidemia de novo coronavírus na China pode servir de lição, mas não será suficiente para que não haja outros surtos no futuro, afirmam médicos
Saúde|Fernando Mellis, do R7
O mundo vive a terceira epidemia de um novo tipo de coronavírus (nomeado provisoriamente de 2019-nCoV) em menos 20 anos — a primeira e a atual iniciadas na China.
Um renomado médico chinês estimou que o surto atual deve durar menos de seis meses. Ao fim deste período, a experiência adquirida pelo governos chinês e de outros países será suficiente para evitar outras epidemias desse ou de novos vírus?
Especialistas dizem ao R7 que não, mas o aprendizado pode salvar vidas, ao combater os surtos com mais rapidez e eficiência no futuro.
Há um ano, cientistas chineses alertaram sobre a possibilidade de uma nova epidemia de coronavírus no país.
Essa preocupação era compartilhada também por outros cientistas ao redor do mundo, como é o caso do professor Rodney E. Rohde, especialista em doenças infecciosas e microbiologia clínica, da Faculdade de Saúde da Universidade Estadual do Texas.
"Muitos de nós na saúde pública, serviços de saúde e áreas relacionadas estamos constantemente 'gritando', como nós, como país e comunidade mundial, precisamos ser mais proativos versus reativos para esses eventos."
Ele aposta na prevenção como forma de evitar que epidemias tomem proporções maiores, tornando-se pandemias.
"Como microbiologista clínico e de saúde pública de doenças infecciosas, duvido que sempre evitemos novos surtos. No entanto, podemos definitivamente nos preparar e ser mais proativos do que reativos."
A infectologista e virologista Nancy Bellei, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), avalia que é ainda é cedo para falar em aprendizados com a epidemia atual, mas destaca o surgimento de novos vírus é algo sempre esperado.
"Uma coisa que a gente tem que aprender é que nós vamos conviver com a emergência de vírus novos a todo momento. Você tem patógenos que circulam na espécie humana e na espécie animal. O que a gente viu é que cada vez mais o progresso tecnológico faz com que a gente possa detectar rápido e conseguir difundir as informações de forma muito rápida."
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Animais
O comércio ilegal de animais selvagens vivos na China é apontado por especialistas como um ingrediente chave para o surgimento de epidemias no país.
"A cultura alimentar chinesa sustenta que os animais recém-abatidos são mais nutritivos e essa crença pode aumentar a transmissão viral", afirmaram cientistas chineses em um artigo publicado no ano passado. Em muitos locais, o animal é sacrificado na frente do cliente.
"Ainda não acredito que a lição sobre 'mercados de animais vivos' tenha sido aprendida. Acredito que as autoridades governamentais e de saúde pública precisam examinar atentamente esses tipos de mercados de animais para diminuir as chances de um 'salto' de novos micróbios [oriundos de animais] nas populações humanas", afirma Rohde.
As epidemias anteriores de coronavírus — SARS (síndrome respiratória aguda grave), na China, em 2002, e MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), na Arábia Saudita, em 2012 — tiveram origem em animais.
Nesta semana, pesquisadores chineses afirmaram que o coronavírus que infecta humanos teve compatibilidade genética de 99% com o encontrado em pangolins, um animal selvagem traficado no país.
A possível origem da epidemia é justamente um mercado de frutos do mar e que vendia ilegalmente animais vivos em Wuhan, região central da China. O local foi interditado no dia 1º de janeiro.
Uma suposta lista de preços do mercado de Wuhan (veja abaixo) começou a circular nas redes sociais após a epidemia. Nela, aparecem valores de animais como filhotes de lobo, cobras, salamandras gigantes, pavões, ratos, jacarés e raposas vivas.
A oferta incluía também o abate dos animais escolhidos ou a carne congelada, como a de camelo. Tudo isso "entregue à sua porta", dizia o anúncio.
Moradores das proximidades do mercado confirmaram ao jornal South China Morning Post a comercialização de animais exóticos.
"Havia tartarugas, cobras, ratos, ouriços e faisões", disse a vizinha do centro de compras. Um vendedor de frutas acrescentou que esse tipo de prática ocorria "há muito tempo".
Autoridades chinesas encontraram o coronavírus que infectou humanos em amostras coletadas no mercado após a interdição. As amostras que deram positivo estavam na ala oeste, onde havia mais comércio de animais vivos.
Vírus como o coronavírus podem sofrer mutações e conseguir fazer o que os cientistas chamam de "jumping", ou pulo, em português, de animais selvagens para humanos.
Pode haver, inclusive, animais hospedeiros intermediários, como se suspeita em relação ao pangolim. No caso da SARS, a civeta (um felino selvagem) foi infectada por morcego (hospedeiro natural do coronavírus) e transmitiu para humanos.
"Ainda não sabemos o caminho desse vírus. Mas é claro que se você vai comprar proteína animal em um mercado onde o animal é sacrificado, onde tem uma série de animais vivos no mesmo ambiente, com secreções e muito mais... isso propicia eclosão de patógenos novos ou já existentes", observa Nancy.
Especialistas ouvidos pelo Wall Street Journal nesta semana explicam que o caminho mais fácil para um vírus infectar um ser humano é comendo o animal infectado.
No entanto, a manipulação de sangue fresco contaminado ou a exposição à urina, fezes ou saliva também podem facilitar o salto de um vírus para humanos.
Logo após o início da epidemia, médicos chineses cobraram rigor e banimento da venda de animais selvagens no país.
Informação e cooperação
Embora reconheça que a China tem feito esforços para conter o avanço da epidemia, ao adotar medidas consideradas duras, como isolamento de cidades inteiras, a professora da Unifesp afirma ter dúvidas sobre a disponibilidade das informações sobre o novo vírus.
"A China não está esclarecendo o que acontece em Hubei [província mais afetada pelo vírus]. Não tem um site oficial, como tem o CDC [órgão de controle de doenças dos EUA], até mesmo o Brasil. Nós não temos até o momento acesso a dado real do impacto em Wuhan desta epidemia."
Por outro lado, o professor da Universidade do Texas, elogia a rapidez com que a China identificou o vírus.
"Aplaudo os chineses (e quaisquer outros) pela rápida disseminação de informações genéticas sobre o novo coronavírus. Isso é fundamental para o entendimento de possíveis reservatórios do vírus (por exemplo, morcegos) e para a preparação mais rápida de uma possível vacina ou antivirais."
Rohde diz que em momentos como o atual, é importante que a comunidade internacional trabalhe em conjunto.
"Já fizemos isso antes com a eliminação da varíola; podemos fazer isso de novo. Aprendemos o suficiente com lições passadas para interromper 2019-nCoV ou o próximo surto de doença? Não se engane, haverá outro surto. As experiências deste serão humildemente estudadas por todos os envolvidos; somente continuando a aprender com cada surto de doença podemos nos tornar uma comunidade global de saúde mais bem preparada."