“Eu achava que era um defeito de fábrica meu. Dizia a mim mesma que era bobagem, que eu precisava superar isso ou que todo mundo lidava com as mesmas coisas, só que [de uma forma] melhor.” Esse era o mecanismo que a professora Bruna Zocaratto, de 40 anos, costumava usar para lidar com o fato de se sentir “estranha”. Mas foi somente em 2023, aos 38, que o diagnóstico de autismo ajudou a explicar os desafios que, ao longo da vida, pareciam indecifráveis para ela.Desde a infância, Bruna tinha problemas com a textura dos alimentos e apresentava sobrecarga sensorial com barulhos altos. Ela também relata que se sentia esgotada após interações sociais e precisava se isolar para recarregar as energias. Esses e outros comportamentos a faziam se sentir diferente dos demais, e o motivo disso era uma pergunta sem resposta.Até que em 2023, Bruna recebeu uma proposta para se tornar coordenadora de curso no local onde trabalha, o que desencadeou um descontrole emocional, como ela descreve. Após conversar com sua terapeuta, foi levantada a possibilidade de ela estar no espectro autista. Três meses após realizar uma avaliação neuropsicológica, ela teve o diagnóstico de autismo nível 1 de suporte.“O que me levou a buscar [o diagnóstico] foi esse medo inicial de me tornar coordenadora, o que fez com que eu chorasse muito, tivesse crises muito grandes de ansiedade. Eu recebi com muita tranquilidade o autismo, porque eu desconfiava, tendo em vista alguns comportamentos meus”, diz.Bruna relata que esses traços não eram percebidos pelas pessoas antes, pois ela sentia necessidade de camuflá-los para se encaixar no mundo. Para ela, foi preciso mascarar a hiperfixação em tópicos muito específicos, já que ficava facilmente entediada com temas fora de seu interesse. Ela conta que também escondia seu hand flapping, movimento repetitivo com as mãos, e se retirava para lugares fechados e isolados para evitar fazer na frente dos outros.“Eu acabava imitando alguns comportamentos das pessoas para me encaixar. Eu deixava de gostar de coisas que eu gostava e passava a gostar do que outras pessoas gostavam como forma de ser aceita pelo grupo. Tentava evitar contato visual, ia a shows com barulho, o que me causava um incômodo muito grande”, lembra.Esse mecanismo é chamado de “masking”, mascaramento em português, e consiste em suprimir os sinais e sintomas do TEA (Transtorno do Espectro Autista) como tentativa de conseguir funcionar em sociedade, segundo a neuropsicóloga Roberta Ladislau. Ela explica que é como um sistema de defesa para que a pessoa autista consiga socializar e evitar o desconforto.Embora também seja utilizado por homens, esse tipo de camuflagem é mais comum em mulheres, o que leva muitas a identificarem o TEA na vida adulta ou a serem subdiagnosticadas. Ladislau afirma que estereótipos e questões culturais sobre as expectativas de comportamento para cada gênero explicam a maior incidência desse fenômeno no grupo feminino.“Culturalmente, as mulheres têm muitos comportamentos que são socialmente reforçados, relacionados à introspecção, à timidez, ao silêncio e a se esforçar para se encaixar no mundo. Assim, comportam-se de forma mais reservada desde a infância e podem ser vistas como meninas mais ‘quietinhas’ e que ‘não dão trabalho’. Por outro lado, parece haver uma permissão cultural para o comportamento disruptivo dos homens/meninos, que, quando ocorre com mulheres, é menos compreendido ou tolerado”, explica.Ladislau diz que os traços do autismo e o mascaramento deles, além do diagnóstico tardio, podem aflorar outros transtornos. Esse foi o caso da cirurgiã-dentista Marianna Rabello, que desenvolveu fibromialgia, ansiedade e depressão crônica, além de um burnout por precisar camuflar seus comportamentos.“Antes do diagnóstico, eu me cobrava demais para me adequar à sociedade e ia além do meu limite. O masking constante era extremamente exaustivo. Tudo isso me levou ao colapso, à exaustão autista”, relata.A servidora pública Vivian Ruziscka também precisou lidar com ansiedade, crises de pânico e depressão. Além disso, ela identificou sinais de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) quando começou a criar rituais para “evitar um mal maior”. Fatores como a sobrecarga mental e sensorial desencadearam esses sintomas.“Não eram só os outros que duvidavam de mim, eu também concordava com eles e duvidava de mim mesma. De tanto a gente ser desacreditado, a gente internaliza isso. Eu finjo estar bem, mesmo em situações que qualquer pessoa estaria arrasada. Eu nunca finjo estar doente, pelo contrário, me cobro aparentar estar sempre bem, largar minha dor e cuidar do outro, e nunca sobrecarregar os outros com os meus problemas”, diz.O diagnóstico tardio é desafiador e cansativo, pois uma vez que a pessoa não tem clareza sobre os sintomas, tudo parece confuso e assustador, como avalia Ladislau. A neuropsicológica afirma que a compreensão das estereotipias e de outros mecanismos para lidar com a sobrecarga sensorial e a desregulação emocional fazem muita diferença na qualidade de vida das pessoas que estão no espectro.“Quando há intervenção precoce, muitos desses sofrimentos podem ser evitados, pois há um direcionamento adequado para o treino de habilidades sociais, para a regulação emocional e para as demais demandas de cada caso. A compreensão do que está acontecendo contribui para a sensação de conforto e pode ser vista como um importante fator de proteção à saúde mental das pessoas com TEA”, pontua.Apesar de tardio, o diagnóstico trouxe autoconhecimento e alívio para Bruna, Marianna e Vivian. Elas afirmam que puderam identificar o motivo de se sentirem tão diferentes e, assim, se aceitarem como são.Para Marianna, descobrir que está no espectro autista foi um “divisor de águas”, pois ela passou a se sentir pertencente a um grupo de pessoas e percebeu que existiam outros que compartilhavam as mesmas experiências. Ela afirma que o diagnóstico precoce teria feito diferença em todos os momentos, e a vida dela teria sido mais leve e feliz.“Foi uma jornada de autoconhecimento, explicações do porquê eu era diferente, explicações do porquê eu me comportava, pensava e sentia diferente da maioria das pessoas. Com isso, me aceitei como eu era, parei de me cobrar tanto, o masking diminuiu, a depressão melhorou, passei a ter melhor qualidade de vida. Foi um alívio, foi libertador”, conta.Vivian afirma que agora pode ter mais compaixão consigo mesma. Para ela, a tristeza e o sofrimento causados por se sentir inadequada, sozinha e “estranha” não seriam tão fortes se tivesse descoberto mais cedo. “É um aprendizado difícil. Essa é minha maior dificuldade hoje: ser menos exigente comigo e me permitir falhar, assim como faço com os outros, sem que isso me torne uma pessoa horrível”, ela conta.Para mulheres que desconfiam estar no espectro, Bruna aconselha que confiem nos instintos e não deixem de buscar respostas. Ela as encoraja a não sentirem medo ou insegurança em questionar, pois todos merecem entender quem são.“Mesmo [o diagnóstico] sendo tardio, ele acaba sendo esclarecedor. É como se a gente colocasse os pingos nos is e descobrisse que, de fato, a gente não é estranha. Tem um transtorno por trás que faz com que nós sejamos singulares, assim como todo mundo é”, completa.*Sob supervisão de Leonardo Meireles