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Decisão de entregar companheiros de luta armada foi tomada após viagem a Cuba, diz Cabo Anselmo

Leia a terceira parte da entrevista com José Anselmo dos Santos, agente duplo da ditadura

Brasil|Alvaro Magalhães, do R7*

José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, afirma que, depois de sua prisão em 1971, decidiu colaborar com a repressão conscientemente, pois havia se desiludido com o regime socialista após as passagens por Tchecoslováquia e Cuba. Anselmo afirma também que, mais do que um agente duplo, se considerava um prisioneiro do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Ele conta como ocorria sua colaboração, tanto na localização de militantes como na análise de interrogatórios de presos.

Confira a entrevista:

R7 - Como foi esse início dessa vida como agente duplo?

José Anselmo dos Santos – É. Eu já tinha a intenção de cair fora desde que estava em Cuba. Por causa do que eu vi, por exemplo, na minha passagem pela Tchecoslováquia, a experiência que tive por lá, na minha passagem por Cuba, durante os dois anos. E é gozado o seguinte: eu estive em Cuba nos dois anos e meio, mais ou menos, em que aqui se davam os maiores embates e assaltos [a banco promovidos pela guerrilha para financiar a luta armada]. Aquela coisa quente da guerrilha urbana eu não vivi. Cheguei aqui quando estava quase tudo acabado. Agora, veja, eu tinha já a intenção: ‘Bom, eu vou ser preso. E quando for preso, eu vou abrir o jogo’. Quando eu cheguei aqui, o que eu vi nessa nação? As pessoas na rua, trabalhando, pleno emprego, a liberdade, aquele negócio todo. Tinha até jornal falando contra o governo já. Quando eu vi aquele negócio, eu disse: ‘Algo está errado’. Daquela ideologização, daquela coisa vivida em Cuba... Era da água para o vinho. Então, eu já tinha essa intenção. Na hora em que fui preso, bom, fiquei calado no início porque tinha uma identidade falsa e eles não sabiam ainda quem eu era. Depois da primeira sessão de porrada, eles já sabiam quem eu era. Aí, partiram para a segunda sessão de porrada. E, no terceiro dia, eu fui levado para a presença do doutor Fleury [Sérgio Paranhos Fleury, um dos principais atores da repressão]. E disse: ‘Olha, não precisa mais, não. Está tudo bem. Agora eu colaboro com vocês. Eu vou ser informante de vocês. Não tem problema nenhum’.

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R7 - Então a iniciativa partiu do senhor?

Anselmo – Não, não, não. Desculpa, não é isso. Não é que a iniciativa partiu de mim. Ele disse: ‘Você colabora e tudo bem’. Eu disse: ‘Está bom, colaboro e tudo bem. Como é essa colaboração? Quais são os termos dessa colaboração?’. ‘Bom, você vai fazer o ponto e, depois do ponto, nós seguimos a pessoa. Deixa que tomamos conta. É só isso’ [‘fazer o ponto’ é a gíria para os encontros, que ocorriam geralmente na rua, entre os integrantes da luta armada para troca de informação e material].

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R7 - No livro, me pareceu haver uma tensão sobre essa época em que o senhor era agente duplo[...]

Anselmo – [interrompe] Você diz agente duplo. Na minha consideração, eu simplesmente era um prisioneiro dando informações para negociar minha própria liberdade. Uma liberdade que, depois, eu vim a reconhecer como mito. Hoje, até você está sendo vigiado 24 horas por dia. Basta ter um celular...

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R7 - Mas é justamente essa tensão a que eu me refiro. Há momentos, em que o senhor atribui o seu papel de colaborador ao fato de ter sido torturado, de permanecer o tempo todo sob vigilância. Em outros momentos, o senhor se coloca como uma pessoa consciente que desejava combater o comunismo.

Anselmo – De fato. Os policiais fizeram aquilo porque não sabiam, não estavam dentro da minha cabeça para saber que eu já havia tomado essa decisão. Agora, eles que estavam com o preso, eles que colocariam os termos. Eu esperei que eles colocassem. Eu poderia dizer: ‘Não. Eu não vou fazer isso’. Ia continuar preso? Ia continuar levando cacete? Quando eu conscientemente já sabia...

R7 - Minha questão é a seguinte: Essa colaboração com a polícia, o quanto se deve à sua consciência e o quanto se deve à prisão, à tortura, à vigilância etc.?

Anselmo – A prisão, a tortura etc. foi somente assim uma ponte. Agora, conscientemente, desde Cuba eu sabia: ‘Eu não foi continuar fazendo isso. E, se a polícia me prender, eu falo’.

R7 - Sobre a suspeita de o senhor era, desde antes de 1964, agente da CIA [...]

Anselmo – [interrompe] Ô! Você sabe, rapaz? Eu até tenho que cobrar os dólares desse último mês, porque eu não recebi ainda. Barbaridade! Eu não vou responder a isso porque é tão... [silêncio]

R7 - Na época em que estava à frente da associação dos marinheiros, em nenhum momento o senhor chegou a passar informações sobre o que se passava ali a seus superiores?

Anselmo – Não. Tudo o que eu fazia ali era público. O único encontro que eu tive com um almirante também tinha um outro companheiro da diretoria do lado. O resto era público, era notório.

R7 – Após o senhor aceitar colaborar, foi sempre [investigador, hoje delegado] Carlos Alberto Augusto que seguiu o senhor?

Anselmo – Desde o princípio.

R7 - E, após o ponto, os policiais do Dops se encontravam com o senhor?

Anselmo – Sim, claro.

R7 - Logo em seguida?

Anselmo – Logo em seguida. Eu fazia o ponto e deveria ir a um ponto de encontro onde eles estavam me esperando. Às vezes até voltava de ônibus.

R7 - E o senhor se encontrava com Fleury pessoalmente?

Anselmo – Eu ia para a prisão. Tinha uma cela que eu estava lá e me tiravam de lá para fazer o ponto.

R7 - Prisão no Dops?

Anselmo – No Dops.

R7 - Uma outra parte desse trabalho do senhor como agente duplo era a análise dos interrogatórios do Dops. Como era feito isso?

Anselmo – Como você descobriu isso?

R7 - Fui lendo por aí.

Anselmo – Lendo?

R7 - É, lendo.

Anselmo – Hum... É, está dito sim. O doutor Tuma me chamou algumas vezes, o pessoal que estava trabalhando com ele, para analisar as coisas que as pessoas diziam. Porque havia nomes conhecidos dentro daquele negócio. Conhecidos da VPR, etc. ‘Você conhece esse? Conhece esse? Conhece esse?’ Gente que havia estado em Cuba, tal, essa coisa toda. Então eu dizia: ‘O que ele está dizendo é verdade’, ‘o que ele está dizendo não é’, ‘isso aqui, eu acho que não é assim’. Esse era o tipo de coisa.

R7 - Isso era com Romeu Tuma?

Anselmo – Isso foi algumas poucas vezes com o doutor Tuma, lá no quinto andar, onde era a inteligência do Dops.

R7 - Era o próprio Tuma que te fazia perguntas a respeito dos interrogatórios?

Anselmo – Não, o Tuma não. Os rapazes que trabalhavam com ele. Eram três. Tinha um escrivão e dois rapazes que eram, sei lá, estagiários.

LEIA A QUARTA PARTE DA ENTREVISTA: A morte de Soledad, a traição de Fleury

E leia também:

Parte 1: Marighella, a Revolta dos Marinheiros e a fuga facilitada

Parte 2: A prisão em 1971 e a tortura

Parte 5: Os outros militantes presos ou mortos

Parte 6: A cirurgia plástica e a participação nos atos anti-Dilma

Parte 7: A 'consciência tranquila'

Volte à abertura da entrevista

*Colaborou Victor Labaki, estagiário do R7

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